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sábado, novembro 12, 2022

Kherson e o tudo o mais que dificilmente compreendo

 


Há muitos assuntos relevantes, cada um em seu patamar. E eu não sei bem em que patamar hoje quero estar. E este 'querer' não tem a ver com afinidade mas com capacidade. Poderia até ter vontade de me abeirar de vários. Mas sei que não iria conseguir. 

Longe vão os tempos em que ficava bem com meia dúzia de horas de sono e, se falo em meia dúzia, até estou a pecar por excesso. Não há muito ia pelo menos uma vez por mês passar o dia em reuniões nas instalações da empresa a norte. Levantava-me às cinco e tal, saía de casa às seis depois de me ter deitado à uma ou duas. E, muitas vezes, com receio de não acordar com o despertador, quase não conseguia pregar olho nas escassas horas de cama. E, no entanto, estava fresca e aguentava um dia inteiro de reuniões, coffee breaks, almoço, viagens. Chegava a casa tarde, voltava a deitar-me tarde e no dia seguinte já estava fresca e a pé às sete e tal e pronta para outro dia.

Agora já não é bem assim. Nos últimos meses passei duas noites no hospital com a minha mãe (felizmente, saindo ela de lá bem) e, em ambos os casos, longas horas a pé (prefiro estar cá fora a andar de um lado para o outro do que estar no meio da apinhada sala de espera). E fiquei francamente cansada. Comparando com a minha resistência dos tempos dos esticões aquando das idas do meu pai às urgências não há comparação. Agora o meu corpo vai-se mais abaixo. Fico a sentir-me quase de gatas.

Ou seja, sinto necessidade de descansar, tenho vontade de ficar a dormir até mais tarde. 

E, por isso, chego a esta hora ou ao fim da semana e sinto que me falta a energia para falar de muitos assuntos. 

- As alterações climáticas e a nossa cultura e a nossa organização enquanto sociedade que nos leva a fazer uma vida assente no consumo de produtos produzidos a milhas, em viagens de avião a preço de uva mijona, em espaços industriais ou de serviços que se situam longe das zonas residenciais, em hábitos que são pouco saudáveis -- seria um dos temas em que hoje gostaria de falar sobretudo porque não vejo que estejamos colectivamente conscientes da inflexão que tem que ser feita, sobretudo porque não estou a perceber bem o rumo que isto está a levar.

- O Twitter, essa plataforma que meio mundo utiliza, nomeadamente políticos, empresários e tutti quanti foi tomada de assalto por um maluco encartado que despediu uns milhares e depois disse que os ia readmitir, depois que ia cobrar a certificação das contas verdadeiras e que ia fazer e depois desfazer,  montes de ideias ideias peregrinas, agora, perante a debandada geral, está nas bocas do mundo pelo risco de falência -- e esse seria outro dos temas sobre o qual também gostaria de falar. 

[A day of chaos brings Twitter closer to the brink]

[Two weeks after Elon Musk completed his acquisition of Twitter, the future of the company has never looked less certain. In the past week alone, one of the world’s most influential social networks has laid off half its workforce; alienated powerful advertisers; blown up key aspects of its product, then repeatedly launched and un-launched other features aimed at compensating for it; and witnessed an exodus of senior executives]

Sobretudo porque há em tudo isto muita coisa que não percebo, a começar naquilo que, pelos vistos, não oferece dúvidas aos milhões que tuitam. 

- Claro que também me apeteceria falar dos milhares de despedimentos do Facebook/Instagram e do que um dia aí virá para desgosto de quem se viciou na exposição pública da vida privada. Sobretudo porque um dia será muito claro que, para além dos fenómenos de adição ou de depressão, estas plataformas são um risco real para a democracia.

- Marcelo e as gaffes diárias (ou será horárias?) e a sua compulsiva necessidade de comentar tudo, seja de que natureza for, a qualquer hora, em qualquer contexto levando aos seus cada vez mais frequentes excessos, enganos, tons inapropriados, palavras deslocadas e/ou escusadas, tiradas infelizes, ideias trocadas e gatadas -- seria outro tema a que gostaria de deitar mão, em especial num dia em que, uma vez mais, se saiu com uma que logo mereceu reparos, correcções e sorrisos. Sobretudo não percebo se o senhor não está bem de vez ou se é achaque passageiro.

- Ou Matt Hancock, o bacano ex-ministro da Saúde inglês, demitido depois de ser apanhado abraçado e a apalpar o rabo a uma colega numa altura em que o distanciamento era obrigatório, e agora deputado, que está agora a participar num reality show, deixando os ingleses divertidíssimos e os conservadores em estado de rebuçado -- e disso eu apetecia-me mesmo falar. Sobretudo porque não percebo bem qual a dele e porque, para dizer a verdade, gostava de ver como reagiríamos se um qualquer nosso ex ministro e ainda deputado se metesse numa destas, a comer insectos e a conviver com cobras.

- E tantos mais temas... 

Mas não dá. O corpo está a pedir-me caminha.

Contudo, ainda assim, para que a vossa visita a esta vossa casa não seja completamente em vão, vou tentar falar de Kherson. Um bocadinho, que não dá para mais. E falo contente, claro. Como não...? Claro que fico contente. As imagens de felicidade dos ucranianos, a jovem a tocar violino na curva da estrada... Claro que tenho que me sentir contente. São momentos épicos.

Desde o dia um, quando -- petrificada e revoltada -- caí na real e constatei que a Rússia tinha mesmo invadido a Ucrânia, tive para mim que Putin não estava apenas a assassinar muitos inocentes e a arrasar um país, estava também a cavar a sua própria sepultura. 

Putin manda destruir prédios, pontes, escolas, teatros, hospitais, manda chacinar uma população e eu olho para o que a comunicação social mostra e o que vejo é a derrocada do regime corrupto e ditatorial de Putin, o que vejo é um perdedor, um desgraçado. E vejo também a incrível força anímica do povo ucraniano, um povo necessariamente vitorioso. 

Contudo, o que se passou com Kherson é qualquer coisa que não entendo bem. É uma vitória ucraniana, certamente. Mas se isso corresponder ao que parece, uma pesada e humilhante derrota russa, a situação será ainda mais caricata. Custa-me a crer que as forças do Kremlin sejam tão nabas e estejam tão desgovernadas como parece porque, se o que está a acontecer é mesmo o que se vê, então tudo isto será mesmo fruto de um delírio absurdo de um homem maluco e de uns quantos cobardes que vivem à sua sombra. No terreno, no dito teatro de guerra, o que parece é que tudo não passa de bandos de patifes deixados à solta, de bandidos descomandados, violadores, ladrões, esfomeados, ou simplesmente jovens espantados e desnorteados, sem uma estratégia que os guie. E, se assim é, como se explica que o mundo assista estarrecido a este circo bárbaro sem ser capaz de impedir o assassino de prosseguir?

A partir daqui, será que é a isto que se vai assistir: debandada geral dos russos, deixando tudo para trás, maquinaria, munições (para além de rastos de barbaridade)? Um dia, mais cedo do que pensamos, acordaremos com a notícia do fim do regime de Putin? Acordaremos, em breve, felizes com a notícia de paz na Ucrânia?

Ou isto não é exactamente o que parece...? Poderemos ainda ser surpreendidos com alguma outra cartada de violência e destruição?

Que Putin vai ser apeado e que a Ucrânia sairá vitoriosa e será reconstruída e será um dos mais felizes países europeus disso não tenho dúvida. O que não sei é se será em breve ou se, até lá, ainda muito mais sofrimento vai acontecer. Isto de Khersen deixa-me um bocado confundida. 

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Ilustrações, de novo, de Pawel Kuczynski na companhia de Nicolas Altstaedt que interpreta Bach/ Cello Suite nr. 1 in G – Sarabande

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Um bom sábado

Saúde. Tudo de bom. Paz.

sexta-feira, novembro 11, 2022

Ceninhas do meu dia a dia
[E dois momentos do humor: o do Klebão e o do supositício ex banqueiro Carlos Costa]

 


Só para dizer que, há uns três anos, na empresa, mudaram de empresa de cartões de refeição. Fiquei com saldo de dois euros no cartão antigo(e sei porque me enviam o saldo). Em relação ao seguinte, como mudei eu de empresa, passei a ter um cartão novo e do velho não sabia o saldo. A última vez que tentei usar no supermercado (para quem não saiba, estes cartões tanto podem ser usados em restaurantes como em supermercados) não consegui pagar, saldo insuficiente. 

Em relação ao primeiro, ainda não usei pois nunca mais me apareceu uma conta de dois euros. Em relação ao segundo, fiquei também com ele em stand by até perceber como saber o saldo e tentar encaixar uma conta nele.

Até que, no outro dia, no supermercado, a pessoa à minha frente, por sinal uma brasileira anafada, extrovertida e com um cabelo num louro ostensivamente irreal, ao pagar decretou: 'É pa parcelá'. Fiquei sem perceber. Parcelá? Já estou como o Bolsonaro, sem perceber. Seria 'parcelar? Mas parcelar a conta do supermercado? Contudo, o rapaz da caixa não estranhou: 'Quanto no primeiro cartão? E ela: 'Dezassete e meio'. Passou o cartão. A seguir passou o segundo. Fiquei bege. Afinal dá para pagar a conta do supermercado com dois cartões!? Como é que nunca me tinha lembrado de tal? Como é que nunca me tinha apercebido disso?

Mas, assim sendo, problema resolvido. Só tinha que descobrir o saldo do segundo que, pelas minhas contas, ainda teria dinheiro que se veja.

Então, hoje ao ir ao supermercado, tive uma ideia peregrina: ir primeiro à máquina do multibanco e ver se me dava o saldo do cartão. 

Enfiei o cartão. Ainda mal tinha introduzido o código já aquilo me estava a mostrar opções. Mas uma coisa atípica. Apenas duas opções 'Outras Operações' e 'Mb way'. Tentei  'Outras operações'. Em vez de me aparecer a opção 'consulta de saldos', não senhor, fui parar ao ecrã anterior. Tentei o Mb way. E, aí, nem saldo nem dinheiro nem nada. Zero. A máquina disse-me que, por razões de segurança, me ia reter o cartão e que contacte eu o banco. 

Fiquei siderada. Sou avessa a situações destas, sinto-me impotente, indefesa, fico a temer que o mundo me sugue, que um meteorito me caia em cima e me esmague para todo o sempre.

Mas, pronto, a vida continua. Fui fazer as compras. Pouca coisa e, sem saber como, cinquenta e dois euros. Isto está bonito, está. Imagino o sufoco para quem tem miúdos em casa e um ordenado curto ou para quem tem uma reforma baixa e medicamentos e despesas inadiáveis. 

Quando fui pagar, ao procurar o cartão normal, vi na carteira o outro cartão de refeição e constatei que, na máquina, me tinha enganado. Usei o cartão dos dois euros. Foi esse que, afinal, foi engolido. Ou seja, coloquei o código do cartão mais recente. Não percebo porque não assinalou que o código estava errado. Só sei que agora tenho que ligar para o banco e depois hei-de ter que ir buscá-lo. Ou deixá-lo lá ficar pois não sei se vale a pena grandes maçadas por dois euros.

Quando cheguei a casa, peguei no outro, o dito mais recente, aquele de que não sabia o saldo, e pus-me a vê-lo com olhos de ver. Vi que tem números de telefone. Nunca tinha reparado. Liguei. E fui guiada pelo atendedor automático: introduza o código. Depois: se quiser saber o saldo, digite 1. Digitei e aquilo disse-me o saldo. 29€.

Mas isto para dizer que andei este tempo todo sem saber como descalçar a bota e, afinal, era de caras: bastou ligar e fiquei logo a saber o saldo. E ando há anos a ir ao supermercado e desconhecia que dá para parcelar e pagar com dois cartões.


Às vezes acredito mesmo que devo ser de outro planeta, que não vejo e não ouço o mesmo que a maioria dos terrestes pois ignoro o que a maioria das pessoas sabe de cor e salteado. Ou então sou uma terrestre altamente limitada. É o mais provável, acho eu.

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As fantásticas ilustrações são da autoria do fantástico Paweł Kuczyński e lá em cima os Ok Go que, talvez por serem tão doidos eu acho o máximo, interpretam Here it goes again. 

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E, por falar em cartões, em especial os que parece que não têm saldo ou de que não se sabe se a culpa é do cartão, da máquina, do cu ou das calças, aqui fica o Klebão.

Aproximação segundo a Porta dos Fundos

Nunca foi sobre crédito ou débito, é sobre conexão, sobre estar junto em todos os pratos, em cada acompanhamento. É aquele acalento na alma na hora de pedir a conta e o coração chega a errar as batidas até a maquininha chegar. Ame seu garçom em praça pública!


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Já agora, o grande momento de humor do dia: o socialmente ainda respirante Carlos Costa parece estar a ver se ressuscita e, ao que consta, vai publicar um livro onde parece que faz de tudo a ver se se limpa. Está bem abelha. Aselha mais aselha não se conhece. Enquanto estava no posto armou-se em macaquinho tricéfalo: um não via, outro não ouvia, outro não falava. Os bancos a caírem como tordos, meio mundo a ficar a arder, e ele, tataranha, a fazer de conta que não sabia de nada e que, além disso, não era nada com ele. E agora, ao que parece, vai sair à pena com um livro em que parece que se põe a sacudir para cima de um e de outro. 

De gargalhada. Outra múmia paralítica que, volta e meia, quer fazer-se de viva. 

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Um dia bom
Saúde. Boa sorte. Paz.

quarta-feira, dezembro 29, 2021

Casas, casinhas, trabalhos, presépios, luzinhas

 




Fomos caminhar no início da noite. A temperatura agradável. Muita humidade mas sem chuva. Soube-me muito bem.

De tarde tive uma daquelas reuniões. 

Isto das reuniões por teams ou zoom tem muitas coisas boas mas tem uma coisa que, ao fim deste tempo, já me cansa. Estou sempre a dar de caras comigo. Vejo que a blusa não me assenta tão bem como gostaria, vejo o cabelo e fico sem saber se o hei-de cortar, apanhar ou deixar para lá, vejo-me com cara de poucos amigos. Podia fingir que não estou a ver-me. Claro que sim. Mas já me conheço de ginjeira. Não preciso de olhar para mim para me ver. Uma seca. 

A reunião estava a impacientar-me. Há pessoas que não atam nem desatam. Forcei-me a estar calada. Imponho-me contenção. Admito que sabem o que andam a fazer. 
Do lado de fora da janela, no pequeno pátio junto à porta, a pequena fera peluda sentou-se depois de estar a olhar para dentro, provavelmente tentando descobrir-me atrás do monitor. 
Ouvi os argumentos, as desculpas, ouvi as generalizações do costume que só servem para empatar e nunca para resolver. A noite começou a cair. De vez em quando intervinha mas discretamente. 

Até que comecei a falar sem me impedir de dizer o que queria. Falei e vi que estavam todos muito sérios a ouvir-me. Quando acabei ficaram calados. Durante uns segundos ninguém disse nada. Pensei que o que vinha a calhar era que a pequena fera enchesse o espaço que tinha sido ocupado pelo vazio com um prolongado uivo.
[E abro aqui um parêntesis. Hoje, tinha-se ligado experimentalmente um alarme parcial. Esquecido disso, às tantas o meu marido foi lá. Aquilo desatou a apitar feroz, aguda e ensurdecedoramente. Como não sabia o que estava a passar-se, apanhei um valente susto. Eu e o little teddy bear. Ao meu lado, ladrou, ladrou, andou de um lado para o outro sem sair de pé de mim. E, então, fez uma coisa extraordinária. Uivou. Mas uns uivos a sério. Parecia um lobo. Parecia que um lobo tinha encarnado nele. Em quase treze anos nunca a nossa doce cãzinha tinha uivado. Passava-se com cavalos ou com gatos, ladrava e eriçava-se e corria como se estivesse possuída. Mas uivar nunca uivou. Este foi de tal ordem que o meu marido, que estava longe, ouviu. Não sei qual foi a dele. No fim, quando o meu marido apareceu e a coisa se esclareceu, o lobo felpudo dava ao rabo e olhava para nós como se estivesse a sorrir e a pedir o nosso reconhecimento. Disse-lhe: menino lindo, tomou muito bem conta da casa. E fiz-lhe festinhas.]
Quando a reunião acabou, tive que fazer uns telefonemas. Sentia-me livre. Fiz um chá. Estava mesmo a apetecer-me um chá. Mas quando o meu marido me perguntou se queria ir dar uma volta nem pensei duas vezes. Sair. Caminhar. Já era de noite e foi ficando cada vez mais de noite. Por volta das sete já é de noite. Perto das oito é mesmo noite cerrada. Sem chover, as decorações de Natal ganham outra graça. Grande parte das casas tem os interiores à vista. Grandes vidraças e, lá dentro, árvores de Natal a piscar, paredes iluminadas, pessoas sentadas à mesa, alguém sentado em frente a um computador, pessoas a circular na cozinha. De noite, as casas iluminadas parecem cenários de filmes que somos convidados a ver. Há qualquer coisa de íntimo numa casa iluminada, vista de fora. Acho engraçado que aqui as pessoas não se importem que vejam as suas casas por dentro. 

Os meus novos vizinhos do lado também tem a casa cheia de decorações de Natal. Hoje, ao sairmos, reparei que uma das crianças estava sentada a uma mesa, escrevendo. E, à sua volta, luzinhas a piscar. Achei enternecedor. Também pensei que iam estar dias a retirar todas as aquelas decorações e iluminações; mas depois eliminei esse pensamento pois o meu sentido prático tem pouco de natalício.

Há pouco, quando aqui me sentei, estive a ler mais um pouco de 'Para quê tudo isto?'. As casas, as ausências, os afectos, as palavras. 

Tenho que ter mais tempo para poder ler mais devagar, para poder ficar parada entre as palavras. Sentar-me a ler, os olhos pousados nos silêncios. No domingo estava sentada a ler, no piso de cima, na sala grande dos livros. E vi uma rola a esvoaçar junto à janela. Batia as asas e não saía do mesmo lugar. Foram segundos. Mas foi uma visão maravilhosa. 

Quando estou a ler ali, no cadeirão junto à janela, o lobo felpudo deita-se aos meus pés e dormita. Se sente algum movimento lá fora, soergue-se mas, como percebe que dali não virá mal ao mundo, volta a dormitar. Nesses momentos é um companheiro tranquilo. Respeita o acto da leitura. 

Estar em casa é bom. Dantes pouco estava em casa. Saía cedo, regressava tarde. Agora posso usufruir da minha casa. 

Na pequena estante com portinhas de vidro que tenho à minha frente, a que tem a televisão em cima e que foi feita pelo meu pai depois de se ter reformado, há um pequeno presépio. Gosto de presépios. Há ali aquela convergência de ternura a que sempre se assiste quando as pessoas se reúnem para conhecer uma criança acabada de nascer. Não havia iluminações de Natal na gruta. Agora quase só há iluminações e pais natais. Acho que os presépios caíram em desuso. A bem dizer acho que pouca gente relaciona o Natal com o nascimento do menino Jesus. Mas não faz mal. Parece que, na realidade, nem nasceu a 25 de Dezembro e, de resto, já foi há tanto tempo que já pouca gente se lembra dele. Quantos meninos já nasceram -- em grutas ou em barcaças, os pais foragidos -- depois dele? A boa acção agora não é rezar a esse longínquo menino Jesus: a boa acção seria acolher nos nossos países tantos meninos de pais foragidos quantos pudéssemos. 


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Desenhos e pinturas de Candido Portinari ao som de Catrina Davies que interpreta Where did all the flowers go?

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E talvez não venha a propósito mas apetece-me partilhar o vídeo em que Catrina Davies fala da pequena casinha em que se sente livre e feliz


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Desejo-vos um dia feliz. 
É de aproveitar que o safado do 2021 está quase a dar de frosques.
Saúde. Alegria. E força nisso.

terça-feira, dezembro 28, 2021

Para 2022, alguns dos meus desejos e as antevisões do Economist

 

Estamos quase lá e creio que já ninguém se aventura a fazer grandes previsões. Com sorte, entre vacinas, reforços, sprays, comprimidos e outras gracinhas, haveremos de conseguir controlar as nossas vidas. Mas enquanto a luz ao fundo do túnel não está ao alcance das nossas mãos, mais vale batermos a bolinha baixa e assumirmos a nossa insignificância perante um enxame invisível de merdinhas, pior que praga de microscópicos gafanhotos ranhosos.

Hoje fui à farmácia à hora de almoço. No balcão, entre uma miríade de produtos, vi uma lata grande onde dizia que era um desinfectante para o ar. Fiquei sem perceber se era para matar moscas, melgas ou mosquitos. Apurei a vista pois o que fazia tal coisa no balcão de uma farmácia? Pois bem. Entre várias coisas, dizia que matava vírus. Claro que não sei se, de caminho, não mata também um bocadinho das pessoas que respiram o ar assim desinfectado mas em tempo de guerra não se limpam armas e, portanto, se a prioridade é matar coronas, que se lixem as pessoas. Dum-dum para cima de toda a gente a ver se a malta se desencarde deste sebo covídico.

Isto para dizer que eu, pouco dada a visões e, ainda por cima, com um bocado de miopia e de estrabismo, ainda pior para ver ao longe. Sei lá o que vai acontecer em 2022... E não é estrabismo, é outra coisa mas agora não me estou a lembrar. 

Ah, sim, astigmatismo. Na última consulta soube que tenho também um bocado de astigmatismo. Não sei se é coisa que costume aparecer com a idade mas a mim apareceu. Felizmente nada forte de mais já que ando sempre sem óculos... e ainda não me perdi. Melhor: quando me perco não é por não ver bem mas por ter o meu gps interior mal configurado.

Portanto, não me arrisco a avançar com palpites sobre como vai ser o 2022. Gostava era de estar cá para ver como vai ser o 2222. Isso, sim. Os malucos por números vão delirar. É ano para se fazer o pleno e para toda a gente se desforrar antes que seja tarde. 

Dormir ao relento na praia, ao pé de uma fogueira. Por exemplo. Vestir-me de noiva e pregar um susto ao meu marido. Também por exemplo. Contratar o Benedict Cumberbatch para me dizer um poema ao ouvido. Também por exemplo.

Mas, se calhar, por essa altura já cá não estou, pelo menos igual ao que hoje sou. A menos que me congelem e em 2222 me ponham no microondas a descongelar. Pode ser que descongele bem e esteja em boa forma, ou seja, que não me desfaça em água. Nunca se sabe.

Portanto, se não sou capaz de fazer conjecturas sobre o que o longínquo 2222 e o próximo ano nos trazem, posso é dizer aquilo que eu gostaria que acontecesse já para o ano que aí está quase a dar as caras. E, então, sem qualquer outra ordem senão a ocasional, resultante do que me vai ocorrendo, aqui vai:

1) Semanas de trabalho de 4 dias úteis, rotativamente. Ou seja haveria escalas de dias de descanso. Trinta horas de trabalho por semana, no máximo.

2) 26 dias de férias [já muita gente tem 25, seria apenas alargar a todos e acrescentar-lhe 1]

3) Forte incentivo (seja fiscal, seja de que forma for) a que, em férias, pelo menos duas vezes por ano, num mínimo de três dias de cada vez, sejam passados em Portugal, num concelho diferente daquele em que se vive.

4) Oferta de uma viagem por ano de comboio em Portugal a todos os cidadãos portugueses

5) Para todas as profissões que o permitam, pelo menos metade dos dias úteis em teletrabalho

6) Licença parental de 1 ano, sem perda de rendimento, repartido entre pai e mãe, conforme o desejem

7) Abertura de um número significativo de creches gratuitas com horários de 24 horas (nos locais em que tal se justifique, para que os pais que trabalham em turnos tenham onde deixar os filhos em segurança)

8) Abertura de um número significativo de espaços gratuitos de ATL 

9) Abertura de residências séniores públicas, com mensalidades ajustadas aos rendimentos, e com actividades tais com fisioterapia, ginástica, aulas sobre matérias diversas, enfermagem, cabeleireiro e manicure, etc

10) Obrigatoriedade de disponibilização de várias hortas urbanas e jardins partilhados em cada localidade com apoio de agrónomos, agricultores, arquitectos paisagistas e jardineiros

11) Disponibilização de espaços para arte pública (escultura, pintura, azulejaria, artesanato, artes tradicionais, música, dança, etc) em cada localidade

12) Obrigatoriedade de um número mínimo de aulas ao ar livre em cada ano lectivo

13) Obrigatoriedade de aulas de Sustentabilidade e Defesa do Planeta desde o primeiro ao último ano de cada curso (Medicina, Engenharia, Direito, Biologia, Urbanismo, Farmácia, Teatro, etc)

14) Obrigatoriedade de aulas de Língua Portuguesa do primeiro ao último ano lectivo de todos os cursos 

15) Obrigatoriedade de aulas de Nutrição e de Exercício Físico do primeiro ao último ano lectivo de todos os cursos 

16) Reforma compulsiva do Super-Judge Alex e do seu destrambelhado Rosarinho 

17) Criação de um canal televisivo alternativo que mostre o lado bom das coisas e arrume com a TVI, a SIC, Correio da Manhã, CNN Portugal e até com a RTP quando copia os outros

18) Criação, em cada distrito, de residências de acolhimento, escolas e estruturas de apoio para imigrantes

19) Que se descubra maneira de que todos quantos carregam nuvens negras à sua volta -- e que conseguem contaminar com má sorte quem lhes está por perto -- desamparem a loja e vão existir para bem longe, quiçá enviados para o espaço naquelas naves do maluco do Musk.

       (etc. etc. etc. )

Ou seja, não previsões mas uma lista de wishful thinkings

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Mas se eu não passo de uma pomba lesa a antever o futuro, já o The Economist não. Ali bebe-se do fino. Eles falam e é bom que a gente os ouça. Convido-vos a verem o vídeo.

O que é que o futuro nos reserva para 2022?

The World Ahead 2022: five stories to watch out for | The Economist

What will be the biggest stories of 2022? As the pandemic continues to wreak havoc across the globe, President Xi will cement his power as leader of China, tech giants will coax more of us into virtual worlds and the space race reaches new heights. The Economist is back with its annual look at the top stories of the year ahead. Film supported by @TeneoCEOAdvisory

00:00 The World Ahead 2022
00:40 China revels in democracy’s failings
04:11 Hybrid working becomes the new normal
07:48 The metaverse expands
11:26 An African fashion boom
14:12 The space race picks up

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Ilustrações de Nick Knight, 'Flora', ao som de Y La Bamba em Ojos Del Sol 

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Desejo-vos um belo dia, apesar de tudo

sábado, agosto 28, 2021

Cenas da vida doméstica

 



Tenho estado outra vez a debater-me no meu sofá novo a ver se não adormeço. A minha filha chama-lhe o sofá-valium. A gente poisa nele e cai para o lado. 

Agora, para lhe dar luta, deitei-me ao comprido de barriga para baixo. Estou a escrever assim. Se fosse brasileira agora escrevia: vê se pode...

Não pode, né? Não dá jeito nenhum. Mas em qualquer outra posição, apago.

O dia foi do escafandro. Reuniões de manhã, uma com cerca de cinquenta pessoas. Obra. Abri e fechei e, pelo meio, a ideia era assistir. Contudo, face aos ânimos que, volta e meia, se agitaram, tive que intervir. Alguns momentos de tensão que tento encarar com desportivismo a ver se as ondas que me atravessam o coração não se invertem, outra vez, deixando-o a modos que de pantanas.

Pelo meio, ouvi a porta do meu escritório doméstico a abrir-se. Era o mais novo. Pensei que ia apenas dizer-me qualquer coisa pacífica como na reunião anterior, menos crítica e menos formal, em que entrou várias vezes. Mas não. Disse: Quero fazer cocó. Certifiquei-me que estava sem som e disse-lhe: Vai dizer ao o avô. Ele saiu. Passado um bocado apareceu o meu marido à porta. Fiz-lhe sinal com a mão que se fosse embora. De volta, fez-me ele sinal com as mãos, a pedir acho que é time out, aquele gesto que em alguns deportos se usa para pedir ao árbitro um tempo de intervalo. Acho que era quando o meu filho fazia andebol que eu via isso. O meu marido também praticou pelo que lhe deve ter ficado. Fiz-lhe sinal que saísse. Disse: 'Ele quer fazer cocó'. E eu, com a mão à frente da boca a ver se ninguém percebia a situação: 'Não posso sair. Limpa-lhe tu o rabo'. E ele, ar aflito: 'Pá, interrompe por um minuto, eu o rabo dele não limpo'. Tenho ideia que nunca limpou o rabo dos filhos. Ou se o fez foi debaixo de necessidade extrema. Santa paciência. Sem olhar para ele, mão em frente da boca: 'Não posso sair daqui. Limpa-lhe o rabo. Fecha a porta'. 

Lá foi. Certamente irritado comigo, certamente apreensivo com o que o esperava.

De notar que ele já estava de férias, eu é que não. E se fosse ao contrário, jamais me passaria pela cabeça interromper-lhe uma reunião para lhe pedir que fosse limpar o rabo a um neto. Só visto.

Quando a reunião acabou, perguntei se tinha cumprido a missão. Disse que cumprir, tinha cumprido, não sabia era se bem. 

Depois da minha nora ter ido buscar o meu menino mais querido, estando eu já despachada das minhas meetings, mudei de roupa, apanhei o cabelo, fui regar as flores de trás enquanto o meu marido regava as do lado. Fiz piza para o almoço mas quem a comeu foi sobretudo ele pois eu preferi complementar a minha fatia com um resto das ervilhas com ovos do outro dia.

A seguir, pegámos na trouxa e viemos para o campo. De caminho, parámos no supermercado e abastecemo-nos. A frequência e os carregos que de lá trazemos dia sim, dia não, são do além. 

Quando cá chegámos ainda cá andavam os senhores das janelas. Pelo meio, fui vendo mails, atendendo chamadas. Quando se foram embora, a casinha toda ela mais iluminada e clara, partimos para as limpezas. Nada a ver com o estrafego das pinturas. Agora foi tudo mais civilizado. Ainda assim, aspirámos, varremos e lavámos toda a casa. Pusemos também o tapete novo na zona das bergères ao pé da lareira e, mal o pusemos, logo constatei que vai ser um forrobodó. Branquinho demais. Bonito e mesmo a condizer com a mancha cromática da zona das refeições mas no campo não se têm os pés muito limpos, especialmente com entrar e sair a todo o momento. Mas se verá. Cada coisa a seu tempo.

O meu marido voltou a pendurar os cortinados pesados que estes das janelas voltaram a retirar. Chegaram, entretanto, as cadeiras brancas que tinham ficado a estofar (de bege clarinho).

Depois dos banhos tomados, fomos jantar um gyros no prato que trouxemos.  Bem bom. Já estávamos a caminho das onze da noite. 

Ao jantar reparei que o cabelo do meu marido estava com uns apontamentos de absurdo. Todo rapado mas alguns cabelos mais compridos de lado, nas frontes, ou em baixo, na nuca. Uns cabelos desfasados da realidade. Chamei-lhe a atenção. Perguntou: Sabes o que é, não sabes? Respondi: Sei. Queres ser auto-suficiente mas não tens competência para isso. Ele corrigiu-me: Não. É que um gajo nem para cortar o cabelo tem tempo, é sempre tudo a correr para aproveitar uma aberta que não dura muito tempo. Está bem, está.  Espero que tenha trazido a máquina ou que a que cá está ainda funcione para ver se lhe aparo aquela deselegância capilar.

Amanhã de manhã a ver se faço logo uma máquina de roupa e se coloco aqui no sofá uma coberta bege clarinha que deixei ao ar. Tenho também que ir ver se desencanto um ou outro bibelot para a mesa de cabeceira do quarto que era do meu filho. E tenho que limpar melhor alguns espelhos. Com as luzes acesas reparei que alguns não estão imaculados.

E tenho dois tapetes que lavei e estão a secar lá fora, um de pano bordado e outro de pasta de lã com o abecedário bordado. Gosto especialmente deste. É um tapete afegão, artesanato puro. Comprei-o em Londres, há mais de mil anos, num dia de feira afegã. Mas com tanto uso, está já com bocados a menos. Precisa de um restauro. Tenho que pensar o que faço.

E escuso de dizer que já não estou na posição inicial. Já me doía tudo. Agora estou outra vez toda na descontra, meio estendida no sofá, a ver se não deixo o post a meio e se o meu marido não vem aqui dar comigo a meio da noite. Portanto, vou mas é já dizer um ciao e vou arrastar-me até aos meus aposentos.

Com vossa licença, estou a ir.

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Imagens da Exposição sobre Alice no País das Maravilhas (Alice: Curiouser and Curiouser) no V&A até final do ano ao som de Angelina Jordan a interpretar Bohemian Rhapsody

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Já não é 6ª feira mas é como se fosse:

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Desejo-vos um belo sábado.
Sejam felizes.
(Pelo menos, tentem, está bem?)

terça-feira, maio 25, 2021

Hoje não dá para escrever à vontade. Muito menos à vontadinha

 



Se calhar, aos poucos, começo a dar mostras de querer reentrar naquilo a que quem goste de aspas poderá chamar, com dedinhos circunflexos ao lado, o velho normal.

No sábado, reincidi: haveria de voltar tentar o melhor gelado de Lisboa. E à tardinha lá fomos: duas big balls, uma de chocolate e laranja e outra de arroz doce. Ao compor o exagero, a menina perguntou: 'Canela?' e eu, sem pensar, 'sim, pode ser'. Se me tivesse perguntado se queria nozes, pinhões, passas, rum, lascas de banana, pedaços de abacate caramelizado, whatever... a tudo teria dito que sim. Tudo de que estive privada nos últimos tempos. Consolei-me. Coisa mais boa.

Hoje tinha um sms a anunciar uma promoção da Fnac. Durante o novo normal (e toca a coçar os dedinhos no ar para fazer as aspinhas) bem poderiam chover promoções de tudo e mais alguma coisa: a nada prestava atenção, tinha a alma fechada ao consumo. Hoje não: hoje fui espreitar e sabia que ia predisposta ao vício. Encomendei cinco livros e, para rematar, ainda aceitei o gift por 1€. Escolhi um sabonete literário. Não o usarei para lavagens mas, se cheirar bem, para pôr algures no quarto. Um quarto com cheirinho a sabonete parece-me o suprassumo da leveza lavadinha.

Mas o pior da minha recaída nem foi isso: no outro dia fui trabalhar presencialmente. Cheguei a casa mais cedo do que antes chegava. Presencialmente não trabalho tanto. As pessoas vêm conversar, querem saber coisas, dar opiniões, falam, falam. Mostro-me disponível mas, por dentro, contabilizo a improdutividade. Em casa, é trabalho de seguidinha. Vim, portanto, mais cedo. Pensei: vou para casa, pôr o trabalho em dia. Mas, a caminho, ao passar pelo supermercado, deu-me vontade de ir olhar para as prateleiras, com tempo, sem ninguém a puxar por mim. Então, trouxe três vasinhos com suculentas e, não contente com isso, vi uma blusinha na promoção do dia que me pareceu um graça: algodão alinhado em verde azeitona. 7,99€. Tentei repescar o raciocínio do último ano e picos: 'Preciso?'. No 'novo normal' dir-me-ia 'Claro que não'. Mas agora a resposta foi: 'Que se lixe'. E trouxe a blusinha. E, no parapeito do escritório, tenho os vasinhos. O meu marido, quando chegou, ficou passado. Flores no parapeito..., coisa mais insólita.

A semana, uma vez mais, está sobrecarregada. Só que desta vez, aos trabalhos do costume, juntei outros que agora não vêm ao caso. 

Há bocado, ao sentar-me aqui, adormeci. Tiro e queda. Isto resulta de ter acordado com um telefonema que me obrigou a puxar pelo raciocínio quando os neurónios ainda estavam em posição fetal, sonhando com coisas boas. Todo o santo dia o sono me agarrou pelas pálpebras, puxando-me para o descanso, para a horizontalidade. 

Por isso, agora estou aqui que não posso. Há os que não me compreendem e, quando lêem isto, saltam para o meio da rua, mão na anca, para me gritar: mas, ó mulher!, então porque é que escreve? E eu dou a resposta de sempre: porque sim, porque gosto, porque me descansa a cabeça, porque os dedos gostam de dançar sobre o teclado mesmo quando os olhos já dormem.

Queria escrever uma coisa toda pipi, toda misógina, mas o tema puxava para o meu lado may west e isso não é compaginável com a pancada de sono com que estou. Mas me aguardem que guardado está o bocado para quem o há-de comer.

Ao fim do dia, enquanto andava a telefonar à minha filha e à minha mãe, tirei fotografias em especial aos brincos de princesa que adejavam ao sabor do vento. 

Andam todos poéticos por aí e eu estava também a pensar que haveria de homenageá-los, em especial por um dos mais belos textos que ultimamente tenho lido. Cécias, o vento. Uma maravilha, uma maravilha. Já para não falar de quem, homenageando a repórter da natureza, teceu mais uma das suas múltiplas belas peças em que se adivinha o rasto da sua perdida penélope. E fotografei umas flores lindas que apareceram do dia para a noite para oferecer a quem ousa despedir-se da sua darling, deixando um rasto de decepção, um caminho que parece manchado de sangue.

Mas hoje não é o dia para nada disso. Ainda por cima, recebi há pouco um mail que me deixou verde. Verde no mau sentido, claro. Tive vontade de soltar os cachorros, de partir a louça, de bater com a porta. E só pensei: misógina o escambau, deveria era arranjar uma mulher para o lugar dele. Uma mulher pode ser pérfida ou burra mas tem sempre os pés na terra e mãos para amassar a massa. Quando um homem é burro é mil vezes pior, é um atraso de vida. Mil vezes o tenho dito: se mais mulheres houvesse em lugares de poder, o mundo seria outro, muito melhor. Os homens, se são poucachinhos, não atam nem desatam, mastigam mas não engolem, não dançam nem saem na pista, não procriam nem saem de cima. Um castigo. Este que me enviou o mail que me tirou do sério é daqueles que mesmo que se fossem dez iguais a ele fariam dez vezes menos do que uma só mulher, fosse ela como fosse.

Portanto, apesar das minhas boas intenções, deixo as boas ideias para um dia em que consigam espraiar-se à vontade e à vontadinha. Hoje, agora, vou mas é pregar para outra freguesia.


Fui

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Ilustrações de CarrieAnn Truitt na companhia de Stacey Kent com How insensitive

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Um dia bom

domingo, maio 23, 2021

Mariana, a Mortágua que Louçã gostava de ter como Ministra dos Porquinhos, e as suas bizarras Comissões de Inquérito em que se inquirem clientes de empresas privadas.

[E o comentário de MPDAguiar]

 



Há coisas que sabemos que não estão bem. Por exemplo, uma pessoa ir no carro e, esquecida que aquilo é um habitáculo envidraçado, pôr-se a tirar macacos do nariz é do mais embaraçoso e censurável que há. Alguém dizer quaisqueres é muito mau. Dizer há-dem também. Dar puns num local público não é lá muito bem-educado. Comer ruidosas pipocas no cinema é igualmente mau. De cuspir para o chão, então, nem se fala. Roubar creme anti-rugas na farmácia ou chocolate no supermercado, uma vergonha. Entrar à cara podre numa fila de trânsito, muito reprovável. Estacionar em segunda fila, impedindo os outros carros de saírem, é um abuso. Um homem coçar as partes pudibundas em público ou levantar a perna de lado como se estivesse com os pelos púbicos presos no elástico das cuecas também é altamente desagradável, especialmente para quem assiste e tem que fingir que não está a ver.

Tudo coisas que, pensando bem, deveriam merecer não apenas veemente censura pública como é óbvio que os seus autores estão mesmo a pedir para ser expostos debaixo dos holofotes e à frente das câmaras da televisão para levarem um valente aperto da Agente Mortágua. 

Tanta coisa a saber:

não pensou no que fazia, quando fez? 

quando é que disse? 

porque é que disse? 

ao pé de quem é que  disse? 

quando fez? 

onde fez? 

não viu que não devia fazer? 

desde quando faz? 

nunca ninguém lhe disse para não fazer? 

esqueceu-se? esqueceu-se como...? 

Claro que haverá uma ou outra ujm, os desmancha-prazeres desta vida, que dirão que a Assembleia da República não é lugar para inquirir sobre aqueles temas -- mas é certo e sabido que logo saltarão para a arena os que acerrimamente dirão que ora essa, que é ali mesmo, que é bom que saibamos quem são os espertalhões, os relapsos, os trapalhões, os porcalhões, que assim, quando os virmos por aí, já saberemos do que são capazes.

Mas eu -- lamento dizê-lo -- não concordo. 

Acho que à política o que é da política, à justiça o que é da justiça, à escola o que é da escola, à psicologia o que é da psicologia. E etc. Acho que quando aceitamos que haja uma entidade que se sinta acima de tudo e de todos e ultrapasse toda a separação de poderes e saberes para que, do alto da sua cátedra, julgue e condene tudo e todos, estamos a abrir a porta a poderes ditatoriais e, talvez sem nos darmos conta, a minar a democracia e, en passant, a estender a passadeira a todos os populismos.

A propósito do que escrevi sobre a inquisidora Mortágua, o Leitor MPDAguiar deixou o seu comentário que eu não apenas agradeço como vou permitir-me repescá-lo para o corpo aqui do blog.

E faço-o por uma razão muito simples: acredito que não basta a gente, segundo os nossos próprios princípios, achar que uma pessoa não agiu da forma mais correcta, seja em que vertente da sua vida for, para aceitarmos que uma qualquer pessoa, sem que nada a autorize a tal, se arme em justiceira, inquisidora, polícia de costumes, e, de forma castigadora, sujeite o outro a interrogatório público, a pressão, a humilhação.

Cada um deve responder pelos seus actos mas deve fazê-lo nos termos e nos locais em que a legislação o determine e não conforme nos passe pela cabeça.

Por exemplo. Um banco é uma instituição financeira, no caso uma empresa privada, que tem gestores. Os gestores respondem em última análise perante os accionistas. A gestão é auditada por entidades independentes. E há depois as entidades reguladoras.

No BES falharam algumas coisas, quiçá algumas bastante graves. Provavelmente falhou a política de crédito, provavelmente falhou a gestão de risco, provavelmente falhou a gestão de topo no seu todo. E falharam as empresas que auditaram as contas e a gestão. Falhou a CMVM e falhou sobretudo o Banco de Portugal. E falhou Cavaco que incentivou à participação popular no aumento de capital numa altura em que os sinais de alarme já tinham disparado. E falhou, de novo, o Banco de Portugal e falhou o Governo de Passos Coelho ao partir para uma suicidária resolução do banco que, mal feita e nunca antes testada, só poderia conduzir ao buraco que se viu.

Os gestores levarem uma empresa para a beira de um precipício não é inédito, acontece quase a toda a hora. Contudo, a quase totalidade das situações de crédito malparado, de incumprimentos, de insolvência, passa à margem da política -- e é natural que assim seja. 

Passa para dentro da esfera política quando está em causa um dos grandes pilares financeiros do país e, sobretudo, quando todos os reguladores e poderes que poderiam e deveriam agir estavam entregues a nabos, a totós, a nódoas que nada fizeram e que, quando finalmente agiram, foi para fazer porcaria. E passa quando o poder político chama o zé-povo a tapar o buraco.

E, aí chegados, haveria que perceber o que falhou tão estrondosamente. Era a altura da política agarrar o assunto. Muitas questões sobre as quais reflectir e decidir. Muitas. Infelizmente, aos dias de hoje, grande parte ainda sem resposta.

- Como é que ninguém deu por nada, desde os auditores aos reguladores? 

- Os mecanismos que usam são os mais adequados? 

- E como é que um grupo de ignorantes encartados chefiados por um desqualificado láparo  tem margem de manobra para, na maior leviandade, fazer a resolução de um banco daquela dimensão sem que o regulador os tenha obrigado a pensar duas vezes antes de atirarem tudo o que estava envolvido, e era muito, precipício abaixo?

- Que cenários foram estudados pelo Governo e pelo Banco de Portugal? Que estudos de impacto foram feitos? Mostrem-nos. Ou nem se lembraram de os fazer...? Ou fizeram-nos e estavam todos errados?

Isso, sim, deveria ter sido percebido pelos deputados. E não para causar um festival público mas para ver como impedir que um desastre destes pudesse ter acontecido sem que antes houvesse mecanismos de prevenção que tivessem actuado. Isso, sim, tem que ser percebido.

- Como são feitas as auditorias? Quem audita as auditorias?

- Para que serve o Banco de Portugal se não dá conta de nada? Quem vigia o que faz (ou não faz...) o Banco de Portugal?

- O que foi feito, desde então, para garantir que não volta a acontecer? 

Isto é o que interessa. E interessa para que possamos estar descansados de que isto não volta a acontecer.

O resto é puro carnaval. É poeira. É circo pour épater les bourgeois.

Se o banco emprestou dinheiro sem exigir garantias suficientes, a culpa não é do cliente, seja quem for o cliente. Se o cliente deu como garantias bens que não eram sólidos, a responsabilidade é da gestão de crédito e da gestão de risco do banco e das auditorias e dos reguladores que não exerceram as suas funções. Não é um tema político.

(Nota: E caso se suspeite que os fanfarrões que por aí andam e andaram com a boca cheia de empreendedorismo, todos cagões a darem lições de liberalismo, não passam de uns chico-espertos então que a comunicação social faça o seu papel -- a comunicação social, não a Assembleia da República.

E se o cliente, seja ele quem for, faltou às suas obrigações de forma fraudulenta, então estamos perante um caso de polícia e aí a coisa deve passar para o patamar judicial -- não para o político!)

Os deputados estarem a chamar clientes de uma empresa privada é de uma estupidez sem precedentes. Está a entrar-se num registo pidesco. Digo-o com todas as letras: pidesco. 

E isso é muito perigoso. E tanto mais perigoso quanto parte da população acha bem que isso aconteça.

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Mas passo, então, à transcrição do comentário do MPDAguiar 

Nos termos da lei 5/93 os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração. 

Ora, se bem entendi o post da UMJ, ela insurge-se contra o facto de a deputada Mariana Mortágua parecer empenhada em apurar, por exemplo, quanto é que LFV (ou o NV) devia ao BES, e como conseguiu que lhe emprestassem dinheiro (BES sociedade de direito privado, e com accionistas privados, note-se), e que garantias deu, e para que serviu o dinheiro, e porque não pagou ( fazendo-o para mais com uma cara e uns modos de directora de escola primária dos anos 40 a tratar com alunos relapsos) em vez de se empenhar em saber porque razão é que o BES foi objecto de resolução em 2014 (Passos Coelho PM) antes da directiva DRRB. 

Isso é que era! e já agora, também seria interessante que a senhora deputada procurasse saber porque razão o então PR se arvorou em garante do BES e da tutela do BP sobre o mesmo, e porque razão causaria alegadamente tanto dano ao sistema financeiro deixar o BES falir (afinal na Islândia faliram diversos bancos e a ilha não se afundou...), e já agora, porque não foi assegurado um mecanismo de controle público sobre determinadas decisões (prémios aos gestores, por o banco "conseguir" ter prejuízos, p.ex.), em contrapartida dos "empréstimos públicos" (Costa dixit). 

O estilo Mortáguas/Martins é insofrível, e o único consolo é que de vez em quando levam um banho de humildade quando lhes cai em cima um caso Ricardo Robles, ou um caso Luís Monteiro. Mas não aprendem, pois aquelas cabeças acham que foram ungidas com todas as virtudes e são o reservatório moral, ético e jurídico da nação, sempre prontas a apontar a dedo aqueles que não correspondem a tão altos valores. 

MPDAguiar

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Conto-vos um segredo: estou aqui com uma vontadinha de escrever mais uma historinha da Serva-Mor e do seu pequeno servo... O pior é que a inspiração me está a querer levar para maus caminhos... A ver se consigo resistir

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A bicharada que aqui está a assistir às Comissões de Inquérito é da autoria de Linda Bouderbala e o que lhes vale é a companhia de Jorge Palma, apesar dele estar

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Pode ser que seja até já

segunda-feira, junho 22, 2020

Eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir





Para que serve a poesia?, perguntarão alguns. Imagino que muitos tratados já terão sido escritos sobre isso, muitas teses já terão sido expostas enunciando hipóteses, desfiando certezas. Eu não sou de sabedorias ou certezas e, nisto das poesias, sou mais de sensações. Não sei interpretar nem dissertar. Sou mais de gostar ou não gostar, de me soar ou não bem. Os meus instintos prevalecem sobre a razão -- quase sempre na vida e, na poesia, sobremaneira. Tenho que ali sentir uma toada que me toque, tem que haver a elegância da palavra subtil, tenho que sentir que o silêncio predomina, tenho que sentir que há o vagar da destilação gota a gota, e que, do que se vai produzindo, se evola o perfume e a luz dos momentos sagrados.

E, depois de o ler ou ouvir, algumas cordas em mim deverão continuar a vibrar sem perceber que isso acontece porque, sem dar por tal, me reconheci na palavra que me define ou que define o que sinto.


Cada vez estou mais exigente. E nem sei se diga exigente se experiente. Não, experiente talvez não. Talvez mais privada nos meus gostos. Coisas cá minhas. O que dantes me parecia uma combinação feliz de palavras para descrever um sentimento ou uma impressão, agora, muitas vezes, parece-me coisa banal, forjada, forçada, procura de efeito fácil.

Outras vezes, poemas de poetas aclamados que leio em versão portuguesa parecem-me exercícios de escrita descuidada, sem melodia ou emoção, tradução infantil ou apressada, agarrada a uma gramática acéfala. Por exemplo, em geral, não consigo ler poemas traduzidos por Ana Luísa Amaral ou Frederico Lourenço. Dá ideia que traduzem palavra a palavra sem terem a sensibilidade necessária para captar o estado de espírito e a intenção de quem os escreveu no original. Aliás, para não correr o risco dessas desatenções desagradáveis, evito ler poemas em português de poetas estrangeiros. Acho que não há muitos tradutores capazes de me cativarem na tradução de poesia. Talvez haja um ou dois. Casos raros, especialíssimos. Um muito em particular. Not a private dancer, a dancer for love, mas um private translator. É um trabalho de minúcia, de relojoaria, de bordado fino, um trabalho feito com desvelo e em busca da nota perfeita, a nota de som, a nota de perfume.

Pode acontecer que um poema, instintivamente, brote como água pura de entre as pedras e as palavras sejam límpidas e perfeitas. Palavras ditadas por um misterioso deus. Mas pode também acontecer que, depois de desbastada a pedra, haja ainda um fino trabalho de limar, de afagar, de amaciar. O amor dos amantes perfeitos. 


E poetas portugueses, actuais, vivos, também os não há em quantidade. Tenho o privilégio de, com grande assiduidade, ler poemas de um poeta que me encanta: tem um blog e, portanto, não sou a única privilegiada. Apetecia-me puxar para aqui alguns dos seus poemas, tecelagem amorosa, toada cristalina. Mas não o faço. Receio macular a beleza das suas palavras. Ali respiram a luz e o silêncio que habitam aquele lugar. Há nelas uma pureza branca que pousa no meu coração e que, sinto sem sombra de dúvida, ali ficam a cintilar. É o que se espera da poesia de verdade.

E talvez, no fundo, seja isso que faz com que eu goste de um poema -- sentir-lhe a verdade, que é como quem diz as suas vísceras.

E talvez seja para isso que, afinal, a poesia serve: para que nos sintamos felizes, especiais, únicos, por conseguirmos tocar a verdade, essa coisa tão íntima, de outra pessoa.


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Em vez de poemas desse Poeta especial, coloco antes um poema (do qual também extraí o título deste post) de um poeta da língua portuguesa e dito por uma pessoa que o sabe dizer com a contenção e simplicidade de que a poesia precisa:

Ausência de Viniciu de Moraes dito por Marília Gabriela

(...)
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


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Gravuras de Anna Atkins (British, 1799 - 1871) e Anne Dixon (British, 1799 - 1877)
enquanto se ouve Ayub Ogada a interpretar Kothbiro (The Constant Gardener)
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A si que aí está desse lado desejo uma boa semana.
Saúde, paz e alegria.