Música, por favor (e, já agora, atenção às imagens, lindas)
Duo Ouro Negro - Amanhã
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Aqui a casa, chegam-me notícias do calor. Para o confirmar, desloco-me até à janela, abro o vidro e entra-me um calor africano. Há uma neblina quente sobre o rio que hoje esteve quase sempre em tons cinza, levemente verde patine, embora, à noite, um tom levemente rosado tenha aflorado às faces do céu, nas margens. A cidade parece parada, o rio parado, as cidades do outro lado são manchas envoltas numa nuvem de ar quente, imóvel.
Fez-me lembrar o mês que, há alguns anos, passei em Angola.
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A Baía de Luanda |
Sem quaisquer laços familiares que me liguem a esse País e sem antes ter estado em África, foi com espanto e empatia que viajei por várias cidades, grande parte delas encostadas à água, por estradas imensas de terra no meio da qual árvores imensas, escultóricas, se elevavam no meio do pó e do calor.
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As belíssimas árvores de Angola - imagens que nunca vou esquecer |
O tempo estava sempre quente, húmido, denso, o meu cabelo ficava empastado e, durante todo o dia, eu ansiava por me sentir debaixo de água. Quando finalmente o conseguia, nunca me parecia o suficiente, aquele calor parecia ter-se impregnado na minha pele, no meu cabelo que se colava às minhas costas.
Mas uma coisa também é certa: uma terra quente é uma terra cujo calor liberta os corpos. Via-se isso nas ruas, nas esplanadas, nas praias e senti-o eu própria. Qualquer roupa parece excessiva e os olhares tentam facilmente a aproximação.
Mas uma coisa também é certa: uma terra quente é uma terra cujo calor liberta os corpos. Via-se isso nas ruas, nas esplanadas, nas praias e senti-o eu própria. Qualquer roupa parece excessiva e os olhares tentam facilmente a aproximação.
Imagino a diferença tremenda que, em tempos, os chamados retornados sentiram quando, vindos de países imensos, quentes, de hábitos permissivos, chegaram a esta acanhada nesga, temperada, maioritariamente moralista.
Habituo-me facilmente a cada nova realidade mas, apesar de ter gostado imenso da minha curta estadia em Angola, devo dizer que tempo tão quente, tão húmido, tão pesadamente abafado, me causa algum desconforto.
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Música, de novo, por favor
Carla Bruni - Quelqu'un m'a dit
E, ao pensar nisto, veio-me à memória um outro passeio, outros locais, outros meios de transporte, outras temperaturas.
Há algum tempo, por motivos profissionais, o meu marido tinha que ir frequentemente a Paris e, sempre que possível, eu acompanhava-o.
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Avenue des Champs Élysées - as noites iluminadas da altura do Natal |
É cidade de que apenas não gosto muito nos meses de verão em que a cidade me parece algo estranha, parece que perde a graça, grande parte do que é a vida típica de Paris parece esvair-se, não se vêem parisienses, apenas imigrantes e turistas. De resto, seja nos meses de frio agudo e neve, seja no período iluminado e festivo que antecede o Natal, seja na primavera, Paris é uma cidade maravilhosa onde me sinto muito bem.
Uma das vezes em que íamos, defrontámo-nos com uma greve de controladores aéreos, não me lembro se de cá, se de lá. A viagem de carro estava fora de questão pois, pelos dias de que dispúnhamos, teria que ser feita de seguida, o que seria muito cansativo. O meu marido teve então a ideia de irmos de comboio, de Wagon Lit.
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O conhecido símbolo dos Wagons-Lits |
De início, a ideia pareceu-me insólita mas, depois, comecei a achar uma ideia fantástica. E foi.
Para quem já tenha tido a experiência, saberá do que falo. É uma viagem confortável, tranquila, idílica. A ideia de romance pode ser associada, mesmo sem recurso a grandes imaginações literárias, a uma viagem a dois a bordo de um comboio que disponha de todas as condições de conforto.
Para os distraídos: claro que não somos nós, claro que é Catherine Deneuce e Roger Van Hool, o casal apaixonado do filme La chamade |
É um conforto em casinha de brincar, é o convite à intimidade em viagem, é a partilha das visões que se vão desenhando através da janela, a paisagem como um filme variado visto com a noção da velocidade, a beleza mais breve, mais efémera que nunca, e a beleza aparece-nos com as suas consecutivas mutações, o norte de Espanha, os túneis, os bosques frescos de cedros imponentes e o maravilhoso País Basco, França luminosa a descobrir-se a seguir. Lembro-me do meu encantamento à noite e lembro-me do meu marido me acordar para ver o nascer do sol no meio de um campo florido.
Tínhamos a cama com janela, tínhamos casa de banho, tínhamos sofá (provavelmente era a cama, antes de estar montada como tal mas não estou certa), e ler um livro naquele cenário sabe tão bem. E havia um restaurante simpatiquíssimo, o serviço até com um certo requinte. Tudo mesmo muito bom.
Wagons-Lits - O restaurante |
Uma das viagens mais interessantes que já fiz. Mais tarde viríamos a repeti-la num percurso mais curto e o encantamento foi o mesmo.
Uma outra vez fiz o percurso entre Düsseldorf e Frankfurt também de comboio. É uma viagem linda que abrange a zona dos Castelos do Reno, e todo o percurso nas margens do Reno é de um lirismo, de uma harmonia, com descobertas de mais imagens fascinantes a cada suave curva em que se entra... E depois passa-se por Colónia, vê-se a extraordinária catedral. Que beleza tudo aquilo, que bom é viajar calmamente de comboio por sítios assim.
Penso que não é a primeira vez que aqui o refiro: as viagens de comboio proporcionam passeios maravilhosos. Avessa a cruzeiros, a excursões de qualquer tipo, desinteressada por praias paradisíacas ou destinos turísticos badalados, o meu ideal de férias perfeitas passa muito por coisas como estas que referi. Ou isso, ou simplesmente andar de carro, parando, passeando, sem pressa.
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Caso ainda tenham disposição para isso, gostaria muito de vos ter de visita lá ao meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras saem do rio para murmurarem junto a um belo poema do novo livro de Casimiro de Brito. Será bem melhor se for ao som da maravilhosa música de Heitor Villa-Lobos.
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Apesar da canícula, tenham, meus Caros leitores, uma bela terça feira.