Geralmente sento-me aqui, página em branco pela frente, e, sem pensar, começo a escrever. As palavras descem até ao teclado através de uma ligação directa entre o cérebro e os dedos (isto é, sem preparação mental prévia e, depois, sem moderação, sem filtros, sem censura interna).
Hoje isso não está a acontecer e, sendo coisa inédita, disso vos dou conta.
A razão deste bloqueio é dupla. A primeira é que acho que deveria, antes, falar das eleições francesas. Apesar de François Hollande ser uma criatura pouco carismática, quero porque quero que ele ganhe, especialmente para ver se alguém desequilibra a preponderância alemã que anda a inquinar toda a Europa. Deveria - mas estou com outra ideia na cabeça. A segunda razão prende-se, justamente, com essa ideia: quero falar de dois livros que adquiri a semana passada. Na minha cabeça os autores têm personalidades que, em alguns pontos, se tocam mas, depois, se tentar fundamentar com um mínimo de racionalidade, não encontro justificação cabal. Pego nos dois livros, tento encontra-lhes pontos de intersecção que o demonstrem e o escasso tempo de que disponho não me permite desenvolver um estudo aturado que possa dar razão à minha ideia.
Talvez a ideia se baseie apenas na minha intuição, coisa que uso em abundância e que desculpo depois de ter estudado que a intuição é apenas uma antecipação do raciocínio lógico, um short cut.
Música, por favor
Divino Sospiro - A quel leggiadro volto (ou molto?) de F. A. de Almeyda
O Mundo dos Vivos de Pedro Mexia e Levantar o Céu de José Mattoso (sobre algumas das minhas écharpes primaveris - - e não torçam o nariz se faz favor porque não é pecado gostar muito de écharpes... ) |
Pedro Mexia e José Mattoso. Têm tudo a ver um com o outro? Pelo menos, alguma coisa? E o que poderei invocar para defender esta tese...? Ou será mais prudente nem tocar nisso e passar directamente aos dois livros...?
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Pedro Mexia (n. 1972) é licenciado em Direito, é jornalista, crítico literário, escritor de crónicas e poesias (mas também teatro, letra de música, etc), autor de blogues conceituados, um dos quais tem presença aí ao lado sob o cognome que lhe atribuí de 'A labiríntica biblioteca, isto é, a vida' e que se refere a Lei Seca (ultimamente em onda minimalista), é participante em programas de rádio, televisão, é figura muito presente em encontros, debates de cariz literário, etc.
As suas intervenções revelam sempre competência, estudo, maturação sobre o tema sobre o qual se pronuncia.
E a sua escrita demonstra uma permanente busca pela honestidade em estado puro, uma compreensão total da verdade que se imagina imaculada, frequentemente tendo implícita uma decepção, um desencanto, uma melancolia.
Apetece dizer-lhe mil vezes que não há verdades absolutas, que não há honestidades imaculadas, que não há afectos impolutos - que busca, pois, o inexistente. Mas isso seria uma intrusão na sua intimidade e não é isso que aqui pretendo fazer.
Mas o que acho é que na sua escrita está implícita uma procura pela pureza, pela limpidez, pela verdade e, nisso, acho que há em Pedro Mexia uma ascese que se lhe tornou intrínseca. Uma ascese talvez laica, não faço ideia, nem isso é relevante. Mas não me custaria nada imaginá-lo em isolamento, estudando, escrevendo, meditando.
Este livro, 'O mundo dos vivos' tem prefácio de outro escritor que muito admiro e que tem assento permanente aqui no Um jeito manso, Manuel António Pina.
Diz Manuel António Pina que se aprende com Pedro Mexia acerca de vários assuntos, entre os quais da conturbada e incansável arte da vida, da complexa, e não raro sórdida, natureza dos homens e das sociedades humanas. E acrescenta: e aprende-se com inesperado prazer.
Assim é, de facto.
Este livro é uma edição Tinta da China (como sempre, uma bela edição) e reúne crónicas publicadas originalmente no suplemento P2 do Público entre Abril de 2007 e Dezembro de 2010 e no suplemento Actual do Expresso entre Maio de 2011 e Março de 2012.
Os temas são, pois, o mais variados possível, desde episódios ou referências a Lindsay Lohan, a Dominique Strauss-Kahn, passando por Leonard Cohen, Milan Kundera ou Kate McCann.
Penso que é notória a evolução, cada vez o acho mais introspectivo. E cada vez mais a análise melancólica, racional, pura.
Penso que é notória a evolução, cada vez o acho mais introspectivo. E cada vez mais a análise melancólica, racional, pura.
Pela oportunidade do tema, transcrevo alguns excertos da crónica Sarko: É bom que Sarkozy tenha ultrapassado a hipocrisia habitual dos políticos franceses, mas não considero um avanço civilizacional ver um presidente da França que discute o tema da 'felicidade' com os jornalistas, como se fosse uma costureirinha. Gosto de o ver acompanhado daquela mulher esbelta, altiva, enigmática, de feições salientes e olhos azuis felinos, mas preferia um pouco mais de contenção.
(...) Outsider pelo percurso político, Sarkozy é também um outsider pelo feitio. Enérgico e frenético, chama-lhe Speedy Sarko. A própria mãe admitiu: 'Nicolas é um fox-terrier que corre por todo o lado a ladrar'. Mas essa hiperactividade só é interessante quando resulta em acções concretas. E Sarkozy tem estado mais virado para a necessidade de agradar do que para a urgência de decidir. Tornou-se titubeante e inconsistente e ninguém o elegeu para isso.
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Se a música do Divino Sospiro já acabou, então, esta agora, por favor
Violeta Parra - Gracias a la vida
Passo agora para José Mattoso.
José Mattoso (1933) é historiador, professor e investigador especializado em história medieval portuguesa.
Foi monge durante 22 anos, Frei José de Santa Escolástica Mattoso, vivendo na Abadia de Singeverga. Em 1970 voltou à vida laica. Casou duas vezes. Tem numerosa obra publicada, sempre de irrepreensível qualidade. Alguns dos livros conheceram inusitados êxitos editoriais. Recebeu já vários prémios e distinções, entre as quais o Prémio Pessoa.
As suas intervenções são sempre claras, lúcidas, inequívocas. Tem uma voz própria, uma opinião que se faz ouvir sempre que a ocasião o justifique.
Ouvi-o há dias numa entrevista. Dizia que agora quer, sobretudo, reflectir, meditar. O mundo mundano, as vozes ruidosas e vazias incomodam-no. O fluxo dos seus pensamentos requer a quietude.
O livro de que estou aqui hoje a falar, 'Levantar o céu', saíu agora, e é uma edição Temas e Debates/Círculo de Leitores, com uma capa muito bonita, contendo uma iluminura da autoria da monja e mística alemã Hildegarda de Bingen.
Na introdução, José Mattoso explica o título. Levantar o céu é o nome que os mestres de chi kung (uma variante de tai chi) dão a um dos seus principais exercícios. Consiste, fisicamente, em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra e viradas para cima, isto é, para o 'Céu'. (...) Na cultura chinesa, Céu (yiang) designa aquilo que vem do alto, que dá força e energia, que constitui o princípio activo da vida, que anima a realidade espiritual da existência. Opõe-se à Terra (yin), isto é, àquilo que vem de baixo, que resiste à força e à acção, que constitui o princípio passivo da vida, que representa a realidade material da existência.
Mais à frente, José Mattoso continua: A harmonia e a paz são, é claro, situações precárias, vulneráveis, provisórias. Na nossa época parecem mais ameaçadas que nunca. Muitos fenómenos do mundo actual produzem efeitos que, se não forem corrigidos por acções de sentido contrário, ameaçam a sobrevivência da humanidade. Os mais graves resultam, em última análise, do excesso de poder nas mãos de uma pequena minoria de homens. Directa ou indirectamente, comandam as técnicas e utilizam-nas para acumular mais poder, indiferentes às consequências descontroladas do seu uso irracional.
Ao preparar-se para agradecer aos mestres e companheiros espirituais com quem aprendeu a meditar sobre o mistério da Humanidade, José Mattoso recorda a canção de acção de graças à Vida que ouviu pela primeira a Joan Baez mas que, refere, pertence a Violeta Parra. E acrescenta: agora, cada vez mais perto do fim da minha caminhada na vida, só posso, olhando para trás, dar graças por tudo o que ela me deu, ou que Deus me deu por seu intermédio.
Mais à frente, José Mattoso continua: A harmonia e a paz são, é claro, situações precárias, vulneráveis, provisórias. Na nossa época parecem mais ameaçadas que nunca. Muitos fenómenos do mundo actual produzem efeitos que, se não forem corrigidos por acções de sentido contrário, ameaçam a sobrevivência da humanidade. Os mais graves resultam, em última análise, do excesso de poder nas mãos de uma pequena minoria de homens. Directa ou indirectamente, comandam as técnicas e utilizam-nas para acumular mais poder, indiferentes às consequências descontroladas do seu uso irracional.
Ao preparar-se para agradecer aos mestres e companheiros espirituais com quem aprendeu a meditar sobre o mistério da Humanidade, José Mattoso recorda a canção de acção de graças à Vida que ouviu pela primeira a Joan Baez mas que, refere, pertence a Violeta Parra. E acrescenta: agora, cada vez mais perto do fim da minha caminhada na vida, só posso, olhando para trás, dar graças por tudo o que ela me deu, ou que Deus me deu por seu intermédio.
Bem, não vou continuar porque todo o livro é muito interessante. Transcrevo de novo as palavras do autor, para apresentar o seu conteúdo: Os textos aqui reunidos foram escritos ao sabor de solicitações variadas, a que tentei responder na medida das minhas possibilidades e segundo as minhas convicções pessoais. Uns são mais 'cívicos', outros mais espirituais; uns inspirados no senso comum, outros na mensagem evangélica; uns recorrem à História, outros a princípios intemporais. Qualquer que seja a linguagem e o pensamento que os inspira, pretendem todos contribuir em alguma coisa para 'levantar o céu'.
Em tempos de fogos fátuos, Pedro Mexia ou José Mattoso são duas pessoas que pensam em profundidade e que não se limitam a papaguear o que a vox populi espera. Com percursos de vida muito diferentes, com obras muito distintas, e, obviamente, em estágios de maturidade distantes, são contudo pessoas para quem a honestidade e a verdade são conceitos concretos e inalienáveis e isso reflecte-se nas palavras que pronunciam.
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E muito a propósito das palavras de José Mattoso, um vídeo interessantíssimo que, em boa hora, um Leitor me enviou e a quem daqui agradeço a simpatia
Jacque Fresco, lider do projecto Venus
Esta merda tem que acabar (pardon my french...)
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Hoje lá no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras vestem-se de gaivotas e voam em torno de um poema de Sophia, ao som de Renée Fleming interpretando a Casta Diva que, assim, abre a semana dedicada a Bellini. Gostava de vos ver por lá.
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E tenham, meus Caros, uma belíssima semana!