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domingo, outubro 06, 2024

Eu não sou Marina Abramović

 


Quando é que foi mais feliz?

- Quando nasceram os meus filhos e, talvez ainda mais, quando nasceram os meus netos.

Qual é o seu maior medo?

- Que aconteça alguma coisa de mal a algum dos meus filhos ou netos ou ao meu marido (ou a mim)

Qual a pessoa viva que mais admira e porquê?

- Qualquer cientista (motivado e, de preferência ousado e persistente). Também admiro as pessoas que amam a liberdade e a democracia e que, mesmo sob ameaça, continuam a defender aquilo em que acreditam e que conseguem transformar as suas convicções em palavras e actos. Todas as pessoas que arriscam a vida em busca de uma vida melhor, mesmo arriscando a vida, nomeadamente as que vêm em barcos frágeis, apinhados, em busca de um sonho, tantas vezes improvável. Todas as pessoas que vivem em contexto de guerra e que, mesmo assim, continuam a fazer uma vida normal, conservando a capacidade de sorrir. Todas as pessoas que atravessam períodos em que a vida ameaça fugir-lhes, como as que recebem a notícia de cancro ou de doenças degenerativas, e arranjam energia para enfrentar os tratamentos e para continuar a acreditar na recuperação. Mais ainda se isto se passar com os filhos. Também admiro muitas as pessoas que trabalham muitas horas ou em condições difíceis, em particular as mulheres com filhos, que têm que se levantar muito cedo e deixar os filhos por vezes sabe-se lá com quem e andar em vários transportes públicos, e que chegam tarde a casa, cansadas, muitas vezes num país que não é o seu, com hábitos que não são os seus. Os imigrantes. Enfim. Admiro muitas pessoas.

Qual a sua característica de que menos gosta?

- Não ter apetência pela prática de desporto (ou exercício físico a sério). E não ter boa voz.

Qual o seu momento mais embaraçoso?

- Quando, num dia de verão, em que tinha uma saia branca, de tecido fino, e, depois de ter estado horas numa reunião, quando me levantei, ir um colega atrás de mim, ruborizado, dizendo-me que tinha uma coisa um bocado íntima para me dizer e, a custo, muito aflito, dizer-me que eu tinha a saia manchada. E eu, ao espreitar, ver uma mancha enorme, enorme, de sangue. Escusado será dizer que nunca mais usei saia ou calças brancas quando estava ou temia vir a estar com o período.

Não incluindo a casa, qual a coisa mais valiosa que comprou?

- Os meus livros

Qual o seu pertence mais apreciado?

- Talvez mesmo os meus livros

Qual a sua principal conquista?

- Ter conseguido ter uma vida profissional motivante e bem sucedida sem nunca ter sacrificado a minha disponibilidade para a família, em especial para os meus filhos

Descreva-se em três palavras

- Normal, tranquila, bem disposta

De que gosta menos na sua aparência?

- Nada em particular, não ligo muito a isso pois sou como sou e não equaciono modificar-me. Portanto, o que não tem remédio, remediado está.

Quem é que gostaria que interpretasse o seu papel num filme sobre a sua vida?

- A nível internacional, Cate Blanchett. A nível nacional, talvez a Margarida Vila-Nova.

Qual o seu hábito mais desagradável?

- Deitar-me, todos os dias, tarde de mais.

O que a assusta na velhice?

- Poder vir a sofrer de limitações severas ou ver o tempo a esgotar-se numa altura em que ainda me apeteça muito viver

O que queria ser quando crescesse?

- Comecei por desejar ser cabeleireira. Mais crescida, queria trabalhar numa empresa, ou melhor, em ambiente empresarial. Uma ideia um bocado vaga. Mas era isso.

Escolheria fama ou anonimato?

- Anonimato, claro.

Qual a última mentira que disse?

- Disse a uma pessoa que achei que estava velha e acabada que estava muito bem

Qual o seu prazer mais culpado?

- Ver a telenovela A Promessa (não vejo uma única telenovela portuguesa desde que me lembre pois, se calha passar por lá de raspão, acho uma chachada que não se aguenta, não as suporto nem um minuto; e, no entanto, gosto de ver A Promessa)

A quem gostaria de pedir desculpa e porquê?

- Às pessoas que gostavam muito de mim e a quem, por falta de tempo ou falta de capacidade para manter o contacto com muitas pessoas, acabei por deixar para trás, sabendo eu que as pessoas ficaram sentidas e com saudades.

O quê ou quem é o amor da sua vida?

- Os meus filhos e os meus netos e, claro, quem esteve, comigo, na origem de tudo, o meu marido.

A que é que sabe o amor?

- A felicidade, a tranquilidade, a harmonia, à razão primeira e última para tudo.

Já alguma vez disse 'amo-te' sem o sentir?

- Não tenho por hábito dizer 'amo-te'. Não me soa bem, são sons mudos demais. Prefiro dizer 'gosto de ti'. Sempre que o digo é sentido. Mas também não sou muito de andar a verbalizar, sou mais de demonstrar.

Com que frequência pratica sexo?

- Apesar de não querer ser maria-vai-com-as-outras em relação à Marina Abramović, respondo como ela: frequentemente

Quando é que esteve mais perto da morte?

- Quando o meu carro, numa descida acentuada a caminho de uma rotunda movimentada, ficou sem travões e percebi que ia, inevitavelmente, ter um acidente que poderia ser muito grave, e que, por isso, poderia estar a viver os meus últimos segundos de vida. O carro ficou de tal forma que o seguro declarou a sua perda total. Eu, felizmente, não sei como mas escapei incólume.

O que melhoraria a sua qualidade de vida?

- Ter uma piscina onde fazer ginástica em suspensão do outro lado da rua. Haver, também, um supermercado na minha rua, para não ter que ir de carro de cada vez que tenho que comprar qualquer banalidade para casa

O que preferia ter mais: sexo, dinheiro ou fama?

- Sexo e dinheiro acho que tenho que chegue e fama não quero. Mas agora que penso nisso... talvez gostasse de ser uma escritora conhecida, com qualidade reconhecida. Talvez a isso se chame fama.

O que acontece quando morremos?

- Descansamos de forma radical. Desaparecemos. 

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  • As questões a que respondi são as da entrevista feita por Rosanna Greenstreet a Marina Abramović. 
Marina Abramović
Fotografia de Linda Nylind/The Guardian


Uma vez que as respostas interessantes são as dela e não as minhas, sugiro que cliquem aqui:

Marina Abramović: ‘Describe myself? Long hair, big nose, large ass’ de Rosanna Greenstreet

  • A fotografia do hibisco foi feita hoje no meu jardim

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Desejo-vos um belo dia de domingo

segunda-feira, novembro 02, 2020

Sempre existirão dentro de nós
[e, ainda, a despropósito, aquelas insignificantes minudências de que a vida é feita]

 


Não há um dia específico para lembrar aqueles que partiram. No outro dia a minha mãe, ao conversar comigo sobre uns amigos de juventude, ia referindo um e outro e acrescentava 'já morreu' e a seguir 'também já morreu'. Às tantas, resumiu: 'desses tempos, só já cá estou eu e ...' e referiu mais umas duas ou três pessoas. Depois acrescentou que isso lhe faz um bocado de impressão. Imagino. Penso algumas vezes como será quando eu tiver a idade dela, vendo-me cada vez mais perto do fim da linha. 

De todos os que, da minha família, se foram nos últimos tempos, guardo memórias que acarinho. Não tenho para elas um dia em especial. As memórias vêm quando vêm. Não penso neles como seres ainda com matéria que justifique uma visita. Para mim, fisicamente já não existem. Uns estão enterrados, outros foram cremados. De uns foram depositadas as cinzas, de outros havia a ideia de as deitar ao vento em lugares que lhes eram queridos. 

Por isso, o dia em que se recordam os que partiram não tem, para mim, qualquer significado. É apenas mais um dia. 

A vida é isto mesmo, um daqueles tapetes rolantes em que entram uns, saem outros. Quanto tempo nos vamos aguentar em cima dele é uma incógnita. Tenho um amigo que organiza a sua vida em função de quando for mais velho, chegando mesmo a equacioná-la caso fique viúvo. Aliás, ele não o explicita, diz apenas: 'não quero isso pois, se um se for e o outro se vir sozinho, não sei como seria...'. Eu, que sou optimista militante e despreocupada, penso em função do que vale a pena. Se agora é bom, já vale a pena. Pode ser bom apenas durante uns dias, mas já vale a pena. Pode acontecer uma hecatombe e o futuro não ser nada daquilo que se pretendia mas se, enquanto durar, for bom, então, já vale a pena.

E, durante um bocado da nossa vida temos connosco amigos e família que, aos poucos, vão ficando para trás e, ao mesmo tempo, vão entrando outros. É assim. Não vale a pena pretender que seja de outra maneira.

Hoje, aproveitando estarmos no mesmo concelho, fomos de manhã à praia e encontrámo-nos lá com a parte da família que também cá mora. Todos de máscara apesar do ar livre. Os meninos andam na escola, os mais pequenos sem máscara, portanto nunca se sabe. Também é um dado adquirido que resisto mal a manter-me afastada deles. Portanto, para me protegerem, não tiram a máscara. Enquanto os pais foram correr, eu joguei ao disco com a menina, fiz buracos na areia com o mais pequeno, fiz pizas com o do meio, organizei saltos em altura e em comprimento com todos. Ar livre, aquela leve neblina que nasce junto ao mar, a companhia dos meus. Tão bom. Bom tempo, apesar de tudo. Uma temperatura branda, poucas pessoas, um areal amplo. A água estava boa mas apenas molhei os pés. Depois deles terem ido, fomos nós dois fazer uma caminhada.

De tarde, andei, de novo, de volta dos livros. Na primeira leva, houve uns maus passos. Não sei como, algumas autobiografias, biografias e correspondência que não de língua portuguesa vieram parar à estante dos autores de língua portuguesa. Provavelmente por falta de espaço nas estantes lá de cima. Em contrapartida, vários de língua portuguesa foram parar às estantes onde supostamente só devia haver autores que não de língua portuguesa. Por isso, andei abaixo e acima a trocar a questão das nacionalidades. Depois a reorganizar: uma zona para correspondências, outra para entrevistas, outra para diários, outra para autobiografia, outra para biografias. E outra para crónicas. Em baixo tudo isto mas de autores de língua portuguesa. Em cima a mesma coisa mas para não de língua portuguesa.  Também autonomizei numa pequena estante, os livros que falam de livros, que falam de literatura ou de crítica literária. E ainda vou arranjar uma prateleira específica para literatura pornográfica/humorista/picante. Constatei que tenho pouco deste género. Não sei se há mesmo pouca, se sou eu que tenho pouca. Acho que, um dia que tenha tempo, hei-de tentar compor o ramalhete.

Tive que interromper pois tinha mais que fazer pelo que esta segunda-feira terei que arranjar tempo para ver se concluo a empreitada.

Não tive foi tempo de ir arrumar as roupas que vieram no outro dia e que ainda estão em sacos. Tenho que ver bem como as separo e guardo. A roupa guardada durante muito tempo fica a cheirar a mofo, parece que fica áspera. 

Este domingo fiz uma máquina com toalhas turcas que vieram no outro dia. A maioria já tinha vindo. Estas estavam esquecidas lá num roupeiro. Apesar de estarem lavadas, não consegui guardá-las assim. Parece que a roupa perde a vida quando está esquecida. Mas tudo isto dá trabalho. O meu marido queixa-se, diz que nesta casa não consegue descansar, há sempre coisas para fazer. É verdade, tem razão. Mas é porque ainda estamos na fase de instalação. Também todas as caixas que trouxemos no outro dia, tupperwares, jarros, medidores de líquidos, coisas assim, é tudo lavado antes de ser guardada. Uma trabalheira. E decidir onde se guarda, outro desafio. Para as coisas não ficarem atravancadas, para ficarem acessíveis, para ficarem arrumadas de forma lógica... é preciso cá uma ginástica mental...

Estes armários da cozinha vão até ao tecto. Há, pois, muita arrumação. Contudo, só com escadote alto eu conseguirei chegar às últimas prateleiras. Por isso, aquilo que o meu marido tem posto lá para cima, é bem capaz de também ficar meio esquecido. Quando penso em voz alta sobre estes profundos dilemas, o meu marido remata sempre: se deitasses fora tudo aquilo de que não precisas já não tinhas tantos dilemas... E aí eu calo-me.

Tirando isso, o que sei é que este ano, ao estar afastada das zonas de consumo, não sei como estão as lojas. Já devem estar a antecipar o natal mas imagino que seja um bocado triste. As lojas devem estar meio vazias de fregueses e mais ainda hão-de ficar. E os proprietários e os empregados devem estar assustados. Compreendo. O comércio, com o tempo, vai deslocar-se para o online. As grandes superfícies tal como os grandes espaços de escritórios devem ter o destino traçado. Mas outras coisas surgirão. Há-de desenvolver-se tudo o que tenha a ver com a natureza, creio. E com a proximidade, onde possamos ir a pé, onde nos conheçamos todos. O regresso ao espírito de aldeia. E isso talvez seja bom. A sociedade há-de ajustar-se e adaptar-se a tendências sociais que vão surgindo. É isso: uns saem do tapete rolante, outros entram. Pessoas, hábitos. 

Ficam as memórias. Sempre as guardaremos dentro de nós.

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Rianne van Rompaey aqui é fotografada por Mikael Jansson ao som de Always on my mind numa interpretação de The Webb Sisters.

E Tom Hiddleston diz Do not go gentle into that good night de Dylan Thomas 

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Desejo-vos uma boa semana, a começar já por esta segunda-feira.

domingo, agosto 09, 2020

Flores geladas para me ajudar a ter melhores epifanias nesta noite tão quente




Há quem leia bem, sentado numa mesa de café. Eu não. Em ambiente movimentado parece que não consigo abstrair-me o suficiente do que me rodeia para me entregar totalmente à leitura. De resto, não gosto muito de ler sentada. Não me dá jeito. Prefiro ler reclinada. Não deitada: reclinada. Sempre pensei: devia ter, junto às estantes, uma coisa onde me pudesse reclinar. Agora tenho um cadeirão reclinável junto aos portugueses mas, junto aos estrangeiros, quanto muito deito-me no sofá já que os estrangeiros estão na sala de estar, nesta em que agora estou. Mas às vezes não vem muito a propósito. Primeiro, pode estar mais gente na sala e não dá jeito nenhum eu monopolizar os três lugares do sofá para me pôr a ler e, depois, aquele sofá é tão fofo e bom que, mal ali me deito, deixo-me dormir.

Pois bem: acabei de ter uma epifania. Nestas minhas mudanças, só me apetece que não fique pedra sobre pedra, tudo do avesso, vida nova, e acabou de me ocorrer pegar na chaise longue que está na sala da lareira e colocá-la junto à janela na saleta que vou forrar a estantes. Fica a biblioteca dos lusófonos -- dos lusófonos e não apenas dos portugueses, e incluirei também os poetas -- e, nela, também uma pequenina secretária, quiçá a que me trará a possibilidade de vir a escrever grandes obras (não sei quê e água benta, certo...?) e, para me reclinar a ler, a dita chaise longue. 
De cada vez que aqui falo na chaise longue recordo-me sempre do dia em que a dita veio cá para casa. Como não encontrei nenhuma tal como eu queria, resolvi mandar fazê-la. Comprei um tecido, levei uma fotografia e fui ao estofador a quem de vez em quando recorro. Por essa altura, ia havia uma festa cá em casa. Era uma época de muita festança chez moi. Não me lembro se era o aniversário da minha filha, se quê. Sei que eu tinha pedido para vir com um ou dois dias de antecedência mas ele, o estofador, perfeito de mãos, é um bocado lento de compreensão e de execução. Portanto, chegou no exacto dia da própria festa. Mas eu estava a trabalhar durante o dia. Estava a minha filha em casa. Combinei com ela onde é que era para ficar e o pagamento. Quando cheguei a casa, no meio do reboliço que era sempre preparar uma festa em pouco tempo, estava a minha filha perdida de riso. Acho que já aqui o contei. Apareceu-lhe um calmeirão à porta, e eu não lhe tinha dito que ele era um tal calmeirão, mas ga-ga-ga-ga-go para além da conta, e eu não a tinha avisado de tal, a dizer que trazia uma ó-ó-ó-ó-to-to-to-to-ma-ma-ma-ma-na-na. Ora a minha filha não fazia ideia que à dita chaise longue também se chamava otomana. Portanto, gerou-se ali à porta uma confusão agravada pelo facto do dito calmeirão não se exprimir a direito. Nem ela percebia bem o que ele dizia, tamanhas as síncopes que em que ele mergulhava entre cada sílaba da dita cuja. Primeiro que percebesse que era o estofador que ia levar a chaise longue teve que penar um bocado. Ela ria bom rir a contar-me isto e eu ainda hoje me rio só de imaginar a cena.
Aliás, os tormentos que eu já passei com aquele estofador só eu sei. Não sabe planificar os trabalhos nem calcular as necessidades de material. Uma vez disse-me que, para forrar um cadeirão grande, de orelhas, e para fazer um puff do mesmo tecido, precisava de uns certos metros. Perguntei-lhe para que largura de tecido estava ele a fazer as contas, para eu me certificar quando o fosse comprar. Primeiro que percebesse a pergunta foi o bom e o bonito. Já não me lembro qual foi, finalmente, a largura que me disse ser a habitual. Tentei que me explicasse o raciocínio para eu adaptar a quantidade caso o tecido tivesse outra largura. Esqueçam. Não conseguiu. Entre a gaguez e a dificuldade para compreender a aritmética aquilo foi conversa de surdos. Pois bem: azar dos azares, o tecido que escolhi tinha mesmo outra largura. Liguei-lhe. Não foi capaz de extrapolar. Disse-me que tinha que ensaiar. Pedi-lhe para ver com um outro tecido qualquer que tivesse na oficina pois, obviamente, não ia poder levar-lhe uma peça de tecido para ele ensaiar. No dia seguinte ligou-me. Disse-me a quantidade. Achei que não ia dar. Insistiu que sim. Eu insisti que não. Ele insistiu que sim, que ora essa, era a profissão dele, sabia bem o que fazia. Pelo sim, pelo não, levei um metro a mais. Pensei que o que sobrasse  daria para almofadas. Lá fui levar. Passados uns dias ligou-me, a gaguez extremada, enervadíssimo, a corda ao pescoço: o tecido afinal não dava e se calhar não podia aproveitar nada senão ia ficar com costuras onde não podia. Fiquei passada. Em vez de me dizer o que faltava, queria que comprasse os metros todos outra vez. Eu dizia que não fazia sentido. Aquilo tinha almofadas, tinha braços, encosto, etc, havia forçosamente costuras, tinha que poder aproveitar tudo o que já lá tinha. E ele que não era assim, que tinha que ser ao correr da fiação, que tinha que acertar o desenho. Eu passada: mas qual desenho? O tecido é liso, só com umas leves e ínfimas pintas em relevo, na mesma cor. E ele a dizer que eu não percebia, que ele assim não sabia trabalhar, tinha que pôr a peça por cima da estrutura e depois é que cortava com o desconto das costuras. E gaguejava, gaguejava, um sufoco, um tempo infinito, ele enervado, eu enervada com aquela lentidão mental. Perguntei-lhe qual a diferença: faltava mais ou menos a diferença para a quantidade que eu tinha estimado. Fui à loja. Já não tinha a quantidade toda que ele queria. Comprei um bocado a mais do que a quantidade em falta e foi isso que levei. E quase o levei ao desespero porque disse que não ia conseguir, que era impossível, que pedia muita desculpa pelo erro, que desistia do trabalho, que não ia conseguir fazê-lo sem a quantidade certa de tecido. Tentei que se acalmasse. Sugeri soluções. Mas ele que não, que era muito perfeito na maneira como trabalhava, que não fazia trabalho mal feito. Eu já passada. O tempo a passar e eu ali. Geralmente ia lá à hora de almoço. Só que, com ele, o tempo passa, passa e a coisa não desenvolve. Por fim lá estabelecemos um acordo. Costas e por baixo com o bocado que agora eu tinha trazido. E, no resto, a parte anterior. Se não fosse ao correr do fio ou outro preciosismo qualquer, paciência, ficava a imperfeição por minha conta. Contrariado, lá aceitou a incumbência.
Cá o tenho, o meu confortável cadeirão de orelhas. Não se dá por nada e creio que não se dá porque não há nada para dar. 
Agora, nestas arrumações em que tudo foi revisitado (e carradas de papel e tralha para o lixo!), apareceu um papelinho com o nome dele e o telefone. Sorte. Numa das vezes em que fiquei com o telemóvel todo limpo (habilidade de um dos meninos, coisa que nunca ninguém percebeu como é que ele conseguiu tal proeza), todos os contactos que não eram profissionais desapareceram para sempre (porque os outros foi fácil recuperar) e o do estofador tinha-se perdido de vez. Até agora.
Bem. Mas esta minha epifania de colocar a chaise longue junto à janela e perto dos lusófonos não é desprovida de escolhos. Primeiro: tem a cabeceira (ou o braço) no lugar contrário ao que, onde a quero pôr, deveria ter. E, se a viro, terei que afastá-la da parede para poder ir-lhe para cima e, para isso, acho que não há espaço pois a toda a volta terei as estantes, sobrando, à justa, espaço para a dita otomana. Acresce que, como a janela é baixa, penso que o encosto longitudinal a excederá ligeiramente em altura. Amanhã logo confirmo este aspecto.

Portanto, vamos ver se a epifania terá pernas para andar.

Quanto aos estrangeiros, terão perto de si o cadeirão reclinável que estava a fazer companhia aos portugueses. E poderei ter os estrangeiros todos na mesma ala: seja policial, seja romance, sejam diários, epístolas, biografias, seja poesia.

Os de história, política, economia política e esses que são, sobretudo, do meu marido ficarão noutro sítio, perto da sua secretária de trabalho.

Os de arquitectura, que são muitos, os de pintura ou fotografia ficarão também organizados numa estante específica.
Ah, é verdade: apareceu aquele livro de fotografia que tem uns nus que deixaram o mano do meio fora de si e que, desde então, motivam buscas pela casa toda, não apenas feitas por ele mas já secundado pelos primos. Tão bem o tinha escondido que agora fiquei surpreendida ao dar com ele no meio da filatelia.
Enfim. Temas que ocupam a minha mentezita.

Portanto, para resumir: penso que me esperam belas horas de santa e descansada leitura. Tenho aqui em carteira alguns para ler e tenho que, rapidaemente, arranjar um certo narciso que me recomendaram e que, só de saber que é 'muito bonito' e que está longe de mim, me faz ficar em estado de impaciência por ainda não lhe poder deitar a mão, espreitar, degustar-lhe a qualidade da escrita.

Tirando isso, também estou a ver se consigo ter o meu lugar de eleição para poder escrever, aquele de que acima vos falei. Isto um dia em que tenha tempo para escrever, claro.

E, por hoje, é isto. Ou melhor: não passa disto.


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As flores em gelo são obra de Marisa Culatto e as The Webb Sisters confirmam o óbvio: Always on my mind

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E a si, em particular, desejo um feliz dia de domingo

domingo, junho 28, 2020

Em dia de grandes disrupções, o pobre diabo arranja trabalho
-- tudo ao som do azul e de ti





Este sábado foi-me um dia e tanto. Não é todos os dias que acontecem tantas coisas e coisas tão disruptivas e estruturantes como me aconteceram hoje. Perdoar-me-ão por não as revelar.

Não gosto de falar, em cima do acontecimento, do que me acontece, em especial quando são coisas mesmo relevantes para mim. Poderei apenas dizer que, por um lado, consumei ainda mais o fecho da porta que no outro dia fechei. Por outro, dei um novo, grande e decisivo passo na minha vida. Avizinham-se tempos de muita agitação, certamente muito trabalho. Terei que descobrir em mim um poço sem fim de energia (e, logo agora, que me sinto tão sem energia). Mas serão também tempos de grande expectativa, de recomeços, de vida nova. E isto a nível pessoal. E, a nível profissional, também.

Há bocado, por vídeochamada, ligou-me um dos meninos. Com mais uma ideia. A desafiar-me para outra novidade. Digo que não, não e não. Isso não. Tanta revolução na minha vida e ainda agora também mais essa? Não, não e não. Mas as tropas vão-se movimentando, vão querendo preparar-me psicologicamente para mais essa. Mas a essa resisto. Não pode. Contudo qualquer coisa me diz que o caminho se está a formar para que acabe por ceder -- embora mil soldados, dentro de mim, estejam em guarda para defender a minha vontade de não.

Há bocado também os meus filhos estiveram a trocar mensagens comigo e um com o outro: mais ideias, novos desafios. Com esse alinho mas está envolto em dificuldades que, neste momento, não sei como resolver. Nem eles. No entanto, acredito que a luz se há-de fazer. Só não sei é como é que consigo acomodar tanta coisa na minha cabeça.
E só sei que espero conseguir dormir até ao meio-dia a ver se descanso. Preciso de descansar. Preciso de não ter nada que fazer, ninguém a acordar-me, compromissos em cima de compromissos, horários a cumprir, tarefas a fazer. Por exemplo, ir ao supermercado. Perto da hora de almoço fui ao supermercado. Um carrego. E o protocolo de limpar, resguardar, não usar logo. E o calor e o incómodo da máscara. Tudo coisas que me fatigam demais.
Ah, e aconteceu outra coisa. E é das importantes, devia ter-me lembrado de a contar logo á cabeça. É que sou capaz de ter descoberto o lugar onde, um dia que tenha tempo, me sentarei a escrever. E essa perspectiva enche-me de impaciência. Parece que mal posso esperar para explorar essa hipótese, para testar se resulta. 
Penso, por vezes, que ando a alimentar uma ilusão e que vou inventando pretextos para a manter como ilusão nunca posta à prova. Mas, de repente, neste tornado de revoluções que, por um lado, desabam sobre mim e, por outro, loucamente procuro, parece estar a desenhar-se o lugar perfeito para materializar essa ilusão. Parece daquelas coisas. Quase como se um passarinho viesse a voar e, de repente, pousasse junto a mim e cantasse para me dizer: é este o teu lugar. Piu-piu.
Tirando isso, nada mais.

Só consegui almoçar já passava das quatro da tarde, já estava quase a cair para o lado. E só consegui jantar depois das dez da noite, varada de fome e perdida de cansaço. Agora são quase três da manhã. A casa está silenciosa. Tenho uma pequena coluna a rodar e a fazer frio na minha direcção. Sinto-me bem.

Como não vi notícias, fui ver se as havia. Parece que não. Só coisas sem alma ou frescura. Azedas de velhas. Azeredas de tancos. Não há pachorra.

E estranho que continue a ser dado palco a um certo correio-manhãzoso, um papagaio bem falante que para aí anda com bué de upa-lá-lá de populismo. Parece que organizou uma espécie de manifestação. E, em vez de ser ignorada, foi noticiada. Presumo que tenha sido uma vacuidade disfarçada de qualquer coisa mas, sinceramente, é tema que não me assiste. Animadores de rua ou actores de stand up para mim têm que ter mais do que apenas vontade de sê-lo. Se tiverem graça presto-lhes atenção. Se não, passo ao lado. Se, em cima da falta de graça, forem trafulhas, intelectualmente desonestos e meros vendedores de banha da cobra, então, faço tudo para passar bem ao largo. Tenho mais que fazer do que atirar pérolas a porcos.


E agora que aqui trouxe obras de Fausto Zonaro ao som de Blue and You pelas The Webb Sisters, vou pregar para outra freguesia, deixando-vos com um vídeo que francamente me deixou com um big smile interior. Quando é que alguém se lembra de organizar uma manif cheia de gags de chorar por mais, de patinhos, pombinhos, gargalhadas, cambalhotas, alegria e sonho? Bem, agora com esta coisa da porcaria do corona se calhar não dá. Ou talvez pudesse dar se alguém puxasse pela cabecinha, em especial pela que supostamente tem neurónios.



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A si que aí está desse lado desejo um feliz dia de domingo.