Mostrar mensagens com a etiqueta Júlio Pomar. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Júlio Pomar. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, julho 26, 2019

Nota à Introdução





Dizer o quê? Que dos nomes da gramática retive o sujeito, o predicado e o complemento directo? Bem, o indirecto também. Já a voz activa e a passiva não sei se é coisa que encaixe na gramática ou se é outro ramo da matéria. Dividir em orações já nem me lembro do propósito. Lembro, sim, a charada das orações nos Lusíadas. Coisa para ser levada a sério tem que ter lógica, alguma matemática. Agora coisa que mais parece entretém de dondoca desocupada e que não dá para traduzir em teorema que se perceba, não pega. 

Escrever eu escrevia. Chegava à hora da redacção e eu via meia turma de cabeça no ar sem saber como pegar no título para com ele insuflar a página e já eu por ali fora, cheia de ideias, histórias a atropelarem-se para caberem todas na folha. Ler também. Muita leitura. Agora chegada à hora da gramática era uma contrariação. Sem o saber já era avessa a burocracia e aquilo era regrinha frouxa uma a seguir à outra. A minha mãe queria que eu prestasse atenção, não rejeitasse, tentasse dar importância. Qual quê.

Depois, quando os meninos foram para a escola e eu espreitava a matéria já aquilo tinha tudo mudado de nome. Os casos notáveis ou a forma de dar a volta às equações ainda estava tudo na mesma mas a gramática estava travestida, talvez para ver se tinha mais graça. Mas não. Inútil na mesma.

Agora, se calha ouvir os meninos dos meninos a falarem do assunto, é ainda pior: é língua estrangeira. Não se percebe nada mas, ao que me parece, permanece a inutilidade, a burocracia, um banho de desengraçamento em cima da beleza das palavras.

Dir-me-ão: é preciso ser muita bruta para escrever tamanha alarvidade. E estarão certos. Sou bruta mesmo. Primitiva. Podia viver nua nas cavernas, descer até ao rio e apanhar peixe à mão, subir às árvores para apanhar frutos e bagas, deitar-me na terra a ouvir o som dos bichos e ver os desenhos das nuvens. Ou podia viver num mosteiro, descalça, em silêncio, e, à hora da reza, à socapa, fugir para os claustros do mosteiro vizinho para ouvir os cânticos dos monges gregorianos e viris. 

Para quê a agramática? Para quê comezinhar a beleza singela da escrita, arranjar-lhe significados e subentendidos, minimizando-a? Não me entra. Atribuir segundas intenções ao texto, inventar-lhe sub-textos, espreitar as intimidades das palavras parece-me feio, falta de decoro, é não saber respeitar o pudor da frase. Não, comigo não, violão, não contem comigo para nada disso. 

E isto já para não falar do latim ou do grego. Grego nem nunca tentei. Latim aflorei mas não era a minha praia. Para mim, língua morta já era. Pode ser que seja a raiz e que conhecer a raiz, ou, sei lá, a semente ou a linhagem, seja importante. Não digo que não. Digo só que vivo bem sem isso. Podiam as palavras ser de geração espontânea, podia ser como se a fada do dentinho ainda por aqui pairasse e todos os dias me deixasse, debaixo da almofada, um papelinho com palavrinhas novas. Por mim, estava bem. E o grego, aquilo de estar tudo nos gregos, de ser essencial conhecer as tragédias gregas -- filho que mata a mãe, gentinha que esvazia os olhos, pai que se perde no mar mas que afinal se encontra, mulher que fica à espera feita freirinha bordadeira, órfãos incestuosos que se desgraçam a cada passo que dão (e se non è vero que estes são gregos, è ben trovato e honi soit qui mal y pense), ou ninfas, monstros ou bicharada aluada -- que é que isso acrescenta à minha felicidade? Nada.


Se fosse dada a cenas dessas, via as telenovelas portuguesas do horário nobre. E não quero saber que estejam de boca aberta perante tamanha ofensa à cultura matricial, à génese da civilização. Não quero mesmo saber.

Tudo o que seja obrigatório me incomoda. Não gosto de ortodoxias. Latim e grego são fundamentais? Passo.

Fundamental para mim é outra coisa: é não ter que ler documentos escritos por doutores que escrevem 'poder-mos' ou 'á um mês atráz' ou não ter que ouvir outros eloquentíssimos seres a dizer em que nunca foram fortes a matemática para se desculparem por não saberem quanto é dez por cento de quinhentos.

Portanto, é isto.

E também não sei porque é que estou com todo este converseio. Se quero ser casca bruta pois que o seja em privado, que não o alardeie em público. Mas é aquilo de a ignorância ser muito afoita. Perco a prudência e mostro ao que venho. Azarinho.

Tirando isso, com vossa licença, uma 'Nota à Introdução'

Pinar só co'a cabeça
É protérrima noção
Ca Literatura começa
Ter em muita aceitação.

Entrada a tola entra tudo: taco
tórax e veio.
Se não couber no buraco
Racha-se o buraco ao meio.

-- Nem rachar será preciso:
Só rasgar um bocadinho.
Como na árvore, inciso,
O nome do passarinho.



-------------------------------------------------------------------

O poema é de Mário Cesariny in 'O Virgem Negra', as pinturas de Júlio Pomar e o Cry Baby é cantado com as vísceras de Janis Joplin
_____________________________________
😜
____________________________


E queiram aceitar o meu convite e apareçam no meu Ginjal para testemunharem que não é Nem no cântico dos seios nem no soluço das pernas, coisa que proveio de David Mourão-Ferreira ao som da Carmen.

_______________________

quarta-feira, junho 20, 2018

'Entre as onze horas e a uma, obtemos muitos sorrisos' dizia a Enfermeira Beverly Whipple




Começo pelo fim: gosto de me chegar à frente, de me atravessar. Como no outro dia já contei, declararam-me (de papel passado e tudo e, por acaso, no primeiro ponto até contrariando o oftalmologista), sou de ver ao longe e movo-me bem é fora da caixa. Portanto, não querendo saber de riscos ou de ciências analíticas, às duas perguntas que se possam formular eu poderia arriscar e atirar-me já de cabeça para a dupla afirmativa. Sim e sim. Mas hoje estou de pianinho. Portanto, vou com calma.

E vou caminhando, mansinha, entre inocentes e vulvícas flores.


Retomo, então, o fio e dirijo-me para o começo. O post começa agora. E começa assim: não sou cientista. Já tinha dado para perceber, mas, para os mais distraídos, nunca é demais assegurar que as premissas estão bem entendidas: não sou cientista.

E mais: também não sou especialista, nem disto, nem daquilo nem daqueloutro. A ser alguma coisa, serei generalista, salta-pocinhas, maria maluca -- ou a bissectriz entre tudo isto, se é que se consegue traçar uma bissectriz entre coisas deste género.

Portanto, gostando eu de me poder aventurar pela temática que se me afigura de basto interesse público, sinto que me falta competência. Claro que poderia usar o truque que uso quando não tenho bases para elaborar um raciocínio bem sustentado, ou seja, poderia falar da minha experiência pessoal. Mas aí, algum daqueles eremitas que gosta de se esconder na moita com um barreto na cabeça, haveria de saltar para o palco e, com os guizos a saltarem-lhe dos miolos, haveria de decretar: 'Cá está, é narcisista, sim senhor'. Ora como eu hoje estou naqueles dias em que um diabólico cansaço se me apresenta disfarçado de santidade, tolhendo-me os dedos -- e, também, para não despertar maus olhados ou conclusões asininas -- deixo-me aqui estar, beatinha, no meu canto.


Podia até evitar o assunto que é tema que não interessa à comunidade bem falante, aquela comunidade que gosta de grandes causas e despreza as miudezas da raça humana. Eu também reconheço que, na escala das causas, esta é daquelas que não se vê.
Vejo assim a escala das causas: há as grandes até demais para serem abarcadas pela infeliz mente de nós outros, depois as grandes mas de tamanho comportável, depois as grandes mas invisíveis, depois as passageiras, depois as mixurucas, depois as merdices, lá no fim as paneleirices sem história e, no fim de tudo, as pequenas misérias humanas de que mais vale a gente nem saber.
Este tema que aqui me destraz hoje é daqueles de que não reza a história e que toda a gente prefere fazer de conta que é invisível.

E tanto assim é que meio mundo opina mas nada que fique assertivado em artigo da Nature ou que a Science perfilhe. Aliás, a Nature já por lá andou mas não consigo ler o artigo todo para poder aqui botar abstract conclusivo.

O que sei é que uns afirmam categoricamente que não existe, outros, mais cautelosos, não garantem que exista ou inexista e outros, a medo, dizem que parece que sim mas que está por provar.


A temática é dupla: por um lado, duvida-se da existência de um certo G e, por outro, da existência de múltiplos O's.

Para abreviar os preliminares, aponto para um artigo do The Guardian. Para a coisa ficar ainda mais robusta, deveria dizer: do insuspeito The Guardian. Reza assim: The search for the multiple orgasm - does it really exist?

E, introduz o tema, desta forma: On-screen depictions of sex show women coming again and again, yet in reality many women never climax during sex. Here’s what we know so far about the clitoris and G-spot


O artigo é extenso pelo que, recomendando a sua interessante leitura, me fico por um little excerto:
A recent documentary on the “super-orgasm” – actually multiple orgasms – found that women who had multiple orgasms had slower alpha waves than the average woman. Their brains were quieter, making more room for pleasure. “The thing about sex of all sorts,” says Martin, “is that sex takes place in the body. It’s very hard to think about pleasure if you are worrying instead of focusing on your body.”
What might you be worrying about? Probably whether you’re going to have an orgasm. Only about 20% of women can reach orgasm by penetration alone; the rest of us need clitoral stimulation. The vagina is marvellous, but it is not packed with nerve endings like the clitoris.
You may think differently about the vagina if you believe in the G-spot. Puppo has little patience with it, and labels anatomical illustrations with: “the invented zone for the G-spot”. It is named after Ernest Gräfenberg, who wrote a paper in 1950 about an erogenous zone on the vaginal anterior wall. This was launched into popular perception by an eponymous 1981 book written by two psychologists and a nurse, and by countless articles since. The nurse was Beverley Whipple, who told the Science Vs podcast that her team had investigated by inserting fingers into women’s vaginas and feeling around the clock. “Between 11o’clock and 1 o’clock,” Whipple says, “we got a lot of smiles.”
(...)


..........................

E esta é a acima referida Enfermeira Beverly Whipple que parece saber do que fala e que explica algumas coisas -- entre as quais uma curiosa, que os homens são um linha (penso que deverei dizer um segmento de recta), enquanto as mulheres são um círculo (pelo desenho, penso que deverei traduzir por circunferência embora, com a riqueza sensorial das mulheres, talvez não seja demais deixar ficar o círculo)


....................................................

O primeiro desenho é de Olimpia Zagnoli.
As vaginais flores (desculpem o lapsus: queria dizer as virginais) são de Georgia O'Keeffe
A última pintura é de Júlio Pomar
E, lá em cima, Nina Simone interpreta I wish I knew how it would feel to be free



.....................................................................................

E por aqui me fico, mas não sem antes sugerir que desçam à descoberta dos mais lindos chapéus do mundo e sugerir, também, que vão em busca das respostas (conselho extensivo a Leitores de todos os sexos)

quarta-feira, maio 23, 2018

Júlio Pomar, o homem que sempre gostou de riscos



Conheci o seu trabalho quando recebi uma vez, de presente, uma edição encadernada a pele verde, um livro grande, muito bonito, com umas extraordinárias ilustrações de Júlio Pomar. Foi fascínio á primeira vista.


Depois, encantei-me com as suas pinturas de Graça Lobo. Humor e sensualidade em cores fortes. Ela a falar dele, qualquer coisa de apaixonante. Ela a fazer-se de indignada, aqueles sorrisos bem humorados: 'Cuidado... nem todos os cus eram meus... quer dizer, alguns eram mas aqueles assim mais... com pilinhas... esses não eram meus... ou ménages à trois... cuidado... esses não eram meus'.

E aquela dos falos, ele a rir, divertido, contando do marchand a perguntar para outro: 'Olha lá, tu eras capaz de ter um c... na casa de jantar?'

Depois os bichos. Depois as touradas.

E tudo. Uma tal liberdade, uma tal joie de vivre.

Uma vez fui a uma festa muito bonita. Havia o lançamento de um livro especial e ele era um dos convidados. Muita gente presa às suas palavras. Conversa boa a dele, toda rolando risos e irreverências entre as palavras, ironia, graça.

Não há muito tempo andei pelo seu Atelier-Museu e disso aqui dei conta.

Muitas vezes o trouxe aqui e, certamente, muitas mais hei-de trazer, assim me mantenha eu por aqui. 


Como sempre, saí muito tarde e, como sempre, nada sabia do que se tinha passado à superfície da terra. Foi a minha mãe que, mal me atendeu e, em resposta à minha pergunta habitual ('Então? Tudo bem?'), me disse logo 'Olha, morreu o Júlio Pomar'. Como se fosse um amigo. E eu senti um baque. 'Ah... mas de quê? Estava doente?'. A minha mãe disse: 'Tinha 92 anos. Estava no hospital'. Depois pensei que era irrelevante. Saber a causa da morte para quê? Pena é ter deixado de existir um pintor tão extraordinário. Havia ele, há a Graça Morais, há a Paula Rego. Grandes vivos poucos mais há. Muito poucos. Alguns estão ainda a fazer-se, outros nunca serão nada mais senão o seu efémero nome. Júlio Pomar é enorme, eterno.

Li há não muito um livro sobre ele, uma espécie de entrevista. Luminoso. Gosto de ler as palavras dos pintores. Quando verdadeiros artistas, os pintores são geralmente pessoas modernas. Júlio Pomar foi um moderno. 


Este documentário é imperdível. Gostei muito quando o vi pela primeira vez e gostei muito de agora o rever. Não, acho que agora ainda gostei mais pois revi algumas pessoas de quem já sentia saudades. Gostava muito que o vissem também.

Júlio Pomar -- O risco



........................................

sexta-feira, janeiro 13, 2017

Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis são dois dos artistas mais sobre-estimados cá do burgo
- e desculpem se parece que estou a imitar o pato Donald


De Madrid para Lisboa, continuo na passeata. Tirar cinco dias de férias numa altura destas só pode servir para cortar com a rotina. Claro que só jantámos às dez da noite ou mais, claro que estive nas arrumações até há pouco, claro que estive a despachar aprovações e a responder a mails de trabalho até há minutos e claro que ainda não estou bem da garganta. Mas cinco de férias numa altura em que elas tanta falta nos estavam a fazer têm que render como se fossem vinte e cinco nem que para isso, a toda a hora, tenhamos que meter o rossio na betesga ou ignorar as fragilidades do corpo. 

Agora uma coisa é certa: estão a saber-me que nem ginjas. Boas, boas. O pior foi o trânsito que apanhámos. 
Um àparte: estavamos naquele maçador pára-arranque e eu a aproveitar para ler e responder a uns quantos mails, diz o meu marido: 'acho que o Pedro Mexia está ali escondido atrás de um camião'. Olhei. Vi, de facto, um vulto que mal aparecia por detrás de um camião. Quando o nosso carro avançou, confirmei: ali estava o senhor assessor, acho que de sobretudo no braço, pastas, e a escrever no telemóvel. Deve ter abrandado o passo para escrever no telemóvel no momento em que calhou estar meio encoberto pelo camião. Nada de especial. Vi agora que houve o congresso dos jornalistas e que o Marcelo lá esteve. Às tantas o Mexia também e se calhar veio de lá, andando a pé. Não sei nem é relevante.
Pouco tempo depois cruzei-me com aquele por quem tanta simpatia tenho demonstrado aqui, o inefável Mário Nogueira. Devia ir para a Vítor Cordon. Digo eu. 
A verdade é que, vendo logo duas figuras conhecidas, me senti em casa. Salvo seja, claro.
Mas, dizia eu, que, parecendo que não, estava já com algumas saudades de Lisboa, a Bela. E, se não dizia, pensava.

E, portanto, havia um lugar onde tinha que ir e um outro onde queria ir. O meu marido não estava entusiasmado. Provoquei: 'Mas quê...? Não aprecias arte...?'. Não liga às minhas provocações: 'Aprecio... A dose é que talvez seja excessiva, não...?'

No primeiro lugar onde fomos, uma decepção. Metia Julião Sarmento e eu, incauta, não me acautelei (sorry for the pleonasmo). Ia pelo espaço, magnífico, ia pelo Júlio Pomar, magnífica criatura. Mas ele, caridosa alma, deu guarita ao Julião Sarmento e, claro, este deu cabo de tudo.


Não vale a pena os entendidos que me lêem virem castigar a minha beleza com a conversa da internacionalização do grande artista, com o seu extraordinário valor comercial, com a grande qualidade do grande pintor. Balelas. Balelas. Por mais que eu olhe, não vejo ali nada. Nada. Zero. Bola.

À saída, o meu marido perguntou-me: 'Achas que devolvem o dinheiro do bilhete?'. De facto, apetecia pedir o dinheiro de volta. Pelo menos metade, a metade do Julião Sarmento.

Uma das várias obras de Julião Sarmento no Atelier-Museu Júlio Pomar


O amplo espaço no qual as obras expostas que se aproveitam (e bem!) são as de Júlio Pomar
ainda que, para não amachucarem demais a nulidade das de Sarmento tenham sido escolhidas obras muito neutras,
nada das suas obras coloridas e marcantes


Mas no magnífico Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado Julião Sarmento também não vai mais longe. E se pensarmos que isto, para estar exposto num museu, é porque é do melhorzinho que fez, imagine-se o resto:

É que são coisas sem beleza, sem criatividade, sem ponta por onde se lhes pegue

E outro que tal é o Pedro Cabrita Reis. Até hoje ainda não vi uma coisa dele que me tenha feito mudar de opinião. Só banalidades, parvoíces, coisas sem graça.


Esta aqui abaixo é a peça exposta no MNAC e digam-me vocês se isto é coisa que se apresente. Um maluco que compre uma obra de arte destas depois faz-lhe o quê: pendura-a na parede da sala?

H. Suite III
(A única componente artística que aqui se pode ver é o meu auto-retrato mas não sei se é suficiente para salvar a H.Suite III)

Leio na sua apresentação no site do MNAC:
(...) As obras assumem assim vários níveis de leitura, nos quais intervém a memória e a subjetividade, mas também as noções de habitacção, construção e território, essenciais ao trabalho do artista. As suas instalações expandem-se e transformam o espaço onde se implantam, criando um outro território vivencial, que, porém, nos anos 90, se vai depurando de carga simbólica, para afirmar a sua dimensão arquitetónica e material. (...)
e fico a pensar: 'caraças, devo ser muito burra para olhar para a peça e não descortinar as coisa inteligentes que os entendidos ali vêem'.

Ou seja, lá está: o palhaço Trump acha que Meryl Streep é das actrizes mais sobre-valorizadas de Hollywood e nós, ao lermos os tweets que o animal bolça, achamos que só pode ser um boçal quem assim blasfema. Portanto, sei bem que ao dizer o mesmo das estrelas Julião Sarmento e Pedro Cabrita Reis estou a pôr-me a jeito pois não faltará quem ache que só uma atrasada mental é que pode ainda não ter lido, de cabo a rabo, a Odisseia e, para cúmulo, achar que estes dois brilhantes artistas plásticos não dão uma para a caixa.

Mas azarinho, é o que eu penso.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Para coisas mais interessantes queiram, agora, por favor, descer até aos dois posts seguintes. Talvez gostem.


domingo, março 27, 2016

Uma vez mais:
O que é a arte?
-- a palavra aos Leitores Joaquim Castilho e P. Rufino


Pintura que integrou a exposição 'A felicidade em Júlio Pomar'

 


O que é a arte? Para que serve a arte?


Para que serve uma paisagem desértica ou uma montanha nevada?

A arte, tal como por exemplo uma paisagem, pode transmitir-nos emoções agradáveis ou penosas, evocar memórias, ampliar a nossa sensibilidade, permite-nos ver e sentir para além da realidade racional, objectiva e “ utilitária” do quotidiano.

Contrariamente ao que normalmente sucede com uma paisagem, a arte é uma construção levada a efeito por um produtor, um “artista” que pretende realizar com volumes, cores palavras, com fixações em telas ou em papel fotográfico, por exemplo, as emoções ou uma qualquer mensagem que ele próprio pensa ter descoberto e que julga interessante dar a conhecer a outrem. Esta actividade exige “inspiração e transpiração” e é muitas vezes penosa de realizar até o artista julgar ter conseguido atingir o objectivo pretendido.

Aprendi, como engenheiro de telecomunicações, que para comunicar algo a alguém é necessário um emissor, o artista, um receptor, o público interessado na fruição da obra de arte, e um meio de comunicação, o objecto artístico, mas também uma linguagem que seja compreendida pelo receptor sem a qual não existirá transmissão do que quer que seja.
Se um chinês me comunicar na sua língua qualquer coisa eu não irei receber nada porque não falo chinês.
Se não me for acessível a linguagem utilizada pelo artista, ou se ele não me facilitar essa compreensão, não posso entender o que ele me quererá dizer e não posso fruir a obra de arte.

Muitos artistas constroem uma linguagem que nos é perceptível pelo facto das suas obras nos conseguirem transmitir as emoções que teriam pretendido expressar mas nem sempre são exactamente as que o artista terá querido exprimir mas uma transmissão funcionou.

Ubu Roi III - Miró, 1966

Gosto do Miró ou do Pomar porque sou sensível à sua linguagem reproduzida em inúmeras obras. 

Detesto o Cabrita Reis por não consigo “sentir” o que ele me quer dizer. Chego mesmo a pensar que ele não “fala“ qualquer linguagem. Mesmo os especialistas que a procuram traduzir por palavras escrevem numa linguagem tão hermética que eu sou incapaz de a perceber.


I dreamt your house was a line - Cabrita Reis, 2003

As linguagens vão evoluindo através dos séculos. Há artistas que morreram e outros que continuam vivos porque as linguagens que utilizaram continuam vivas.

É normal que os artistas procurem sempre outras linguagens, sempre foi assim, mas procurar não significa necessariamente encontrar. Um dos problemas da arte contemporânea é que há demasiada sede de procura e raramente se encontram linguagens perceptíveis à nossa sensibilidade de “receptores” comuns mesmo que a procuremos ir educando e façamos um esforço nesse sentido.

Depois aparece a “máfia” dos galeristas, dos colecionadores, dos críticos, dos gestores de museus, curadores de exposições e editores revistas de arte etc. etc. desejosos de “valorizar” as obras de arte dos “se” artistas que ainda complicam mais a situação.
_ _ _

Acrescento ainda alguma coisa à minha longa “narrativa“ (...) uma vez que (...) talvez seja falando de música, da linguagem musical, que o meu texto possa ganhar alguma verosimilhança! 

O canto gregoriano, a ars nova, as linguagens trovadorescas medievais, as oratórias. os madrigais, o nascimento da ópera, a música pré-barroca, o barroco, a musica clássica, o romantismo, o impressionismo etc., etc.

Linguagens que poderemos ir compreendendo e que nos vão facilitando a recepção de sonoridades diversas, de diversas épocas, que traduzem emoções, memórias, planícies e montanhas que descobrimos e por onde é bom viajar.

Die Lebensstufen (The Stages of Life), Caspar David Friedrich, 1835
Encontrámos desde o século passado o dedecafonismo, a musica minimal repetitiva e outras linguagens como a do referenciado Eric Satie, inclassificável como ele próprio, depois becos sem saída como Scelsi, Stockausen, Boulez, Xenakis que sábia e honestamente tentaram novos caminhos. Novas clareiras com Gubaidulina, Ligeti ou Part e tantos outros que procuram e talvez tenham encontrado e que terão aberto caminhos que os “mais famosos” vieram a revelar.

Botas como as de Van Gogh ou torturadas paisagens como as Caspar David Friedrich enriquecem-nos porque terá havido sempre e continuará a haver alguém que, através da Arte, nos quererá dizer qualquer coisa e nos irá sendo possível sentir o que nos querem transmitir mesmo sem os compreender. Ligação absolutamente necessária entre o emissor criador e o receptor fruidor da obra de Arte .


Texto da autoria de Joaquim Castilho, enviado através de comentários a posts abaixo

_ _ _

Este tema, sobre o que é a Arte, é muito interessante e estimula uma boa e saudável discussão. 



Aqui há uns bons meses comprei um livro na FNAC que aborda esta questão de uma forma curiosa e mesmo cativante. Uma excelente obra. O autor é Julian Bell e o livro intitula-se, “Espelho do Mundo – Uma Nova História de Arte”. Já conclui a sua leitura há uns tempos e não me arrependi um momento sequer. É um livro grande, de muitas páginas, que leva tempo a ler – com atenção. (...)

No fundo, o significado de Arte tem também a ver com as sensibilidades de cada um. Da percepção que temos de objectos (um quadro, uma escultura, por ex) e sons (música), por exemplo. Mas, julgo também sobre o sentido desses mesmos objectos e sons. Da sua beleza. Da sua capacidade de nos atrair. Daquilo que podem significar e transmitir. E talvez também da dificuldade da sua execução (quer pela duração da sua concepção, quer pelo esforço mental que exigiu, etc).

Há muitas variantes no que respeita ao conceito que nos leva a definir Arte. E a Arte e o seu conceito evoluiu, ao longo dos tempos. E houve momentos em que aquilo que se seguiu, um novo estilo, foi rejeitado de início, para ser admirado mais tarde. Na Pintura (recordemos as primeiras reacções aos artistas Impressionistas, um dos vários exemplos), como na Escultura, como na Música (Stockausen, Xenakis, etc, aqui mencionados por outro Leitor que gosto de ler). Mas, também na Literatura. António Lobo Antunes, se bem me recordo, teve os seus contestatários pela forma como se revelou a escrever, ao não seguir a escrita com a pontuação tradicional (o mesmo para Saramago, que depois foi Prémio Nobel). Nalguns casos, o que chocou o conceito de Arte foi a sua (total) inversão.

Por exemplo, como dizia um crítico, a desconstrução de se conceber Arte.

La soupe - Pablo Picasso, 1902-1903

Picasso e outros foram exemplos disso (todos os movimentos que se seguiram ao Impressionismo, para além do Cubismo, o Surrealismo, o Expressionismo, Fauvismo, Futurismo, etc, ousaram reinventar a concepção de Arte).

Passaram a conceber a Pintura de uma forma até ali completamente diferente. Foram ousados e criaram um novo estilo. Inovaram. Goste-se ou não, ninguém discute hoje as suas qualidades artísticas e o seu lugar – relevante - na História da Pintura.

Le Rêve - Picasso, 1932

Naturalmente que há e houve em muitos casos, na concepção de determinada obra (Pintura, Escultura ou Composição musical), razões de natureza pessoal, experiências ou vivências desse tipo que levaram à concretização dessa obra. Os exemplos são vários, alguns até fascinantes. Agora, também terá de haver algum rigor para se considerar, ou incluir no conceito de Arte, determinada obra. É que nem sempre um excesso de ousadia, ou de inovação, ou de desconstrução, ou de abstracção, pode, ou deve, ser considerado Arte. Ou não deveria. Hoje, todavia, relativizou-se muita coisa, até na Arte. Por mim, desde que uma composição musical, um quadro, uma escultura, um livro, me fascine, pelo gozo que me deu de o desfrutar, já me sinto feliz. 

Les Deux Sœurs - Auguste Renoir, 1881

(PS: tenho imenso respeito por Martin Heidegger (com quem Herbert Marcuse colaborou, em particular num trabalho sobre Hegel – sempre admirei muito Marcuse), mas ainda hoje me custa entender aquela sua atitude perante o Nazismo, sobretudo vindo de alguém da sua estatura intelectual. Ficou a dever bastante a Hannah Arendt (com quem teve um “affair”, a sua recuperação, ou “desnazificação”). Outra nota: embora goste de Van Gogh, prefiro, por ex, Renoir (ou Monet, Manet)).


Texto da autoria de P. Rufino, enviado através de comentário a post abaixo

____

Agradeço a ambos os Leitores os seus contributos e espero que não levem a mal que tenha puxado os seus comentários para o corpo principal do Um Jeito Manso.

A selecção de obras que usei para ilustrar o texto é da minha responsabilidade embora tenha sido feita a partir das referências dos seus textos.

A música lá em cima, Magnificat, é da autoria de Arvo Pärt.

____



sábado, março 05, 2016

As escolhas de Cavaco: desta vez, Barahona Possolo para seu retratista oficial enquanto Presidente -- e o que eu digo é que teve sorte. Vá lá que ao Barahona não lhe deu para pôr o Aníbal a fazer de cartaginês depravado. Vá lá.





Sempre que o Cavaco ou a Srª Dona Cavaca fizeram escolhas nos domínios artísticos franzi o sobrolho. Os meus santos não cruzam com os santos do casal em nada, mas em nadica mesmo, nem nas fadistas, nem nas artistas plásticas, nem nos costureiros.

E digo isto agora porque andava em felgas. Interrogava-me: quem irá ele escolher para seu retratista? 

Vontade de ressuscitar o Malhoa não lhe deve ter faltado. Aquele lá, sim, pintava como deve ser, devem eles ter suspirado dias a fio. E a Maria até deve ter condescendido: Se ele fizesse questão, até não te importavas de ficar com uma guitarra ao colo. Mas ele, com aquele pragmatismo tão bastamente documentado nos seus Roteiros, deve ter rematado a conversa: Mas não dá, não dá, vamos tirar daí o sentido.

Uma coisa tinham eles como certa, e isto desde o início: com a Paula Rego é que ele não se ia meter.


Terá D. Maria dito: Vai que aquela maluca te põe outra vez a coçar o que não deves e a mamar na teta de uma velha. Ainda iam dizer que a velha sou eu. Essa gentinha peçonhenta é capaz de dizer tudo. Ou vá que não, que te pinta como deve ser mas, já sabes, com ela nunca se sabe, vá que ainda te põe cabeçudo, pezudo e enjoado, com uma república de fantasia ao lado, como fez ao pobre do Sampaio... Nem pensar.


A Dona Cavaca também deve ter resolvido: Com o Pomar é melhor também não te meteres, que dali não ia sair boa coisa, ainda te fazia todo abstracto e às cores mas, com a mania de ser engraçado ainda te punha a dares ares de cagarra embasbacada a olhar para uma vaca risonha. Não, o Pomar também não. Resultou com o Soares mas é porque do Soares o Pomar gosta... agora de ti... ui... medo....


E muito ela se deve ter lastimado: A nossa Joaninha pintar não pinta, porque se pintasse era ela mesmo, e posavas num cadeirão com um naperon nas costas, ao pé de uma mesa redonda coberta por uma camilha de renda, de rosetas e, em cima, um candeeiro com abat-jour com franjas feitas de tampões e, aos pés, um cão feito de crochet. Até parece que estou a ver. Mas não, é pena mas não dá, a nossa Joaninha é mais bibelots. 


O consultor artístico deve ter sugerido o Julião Sarmento,  era uma hipótese, iam dizer que afinal o Cavaco era moderno mas a Dona Cavaca não é moça de ir em conversas, deve logo ter alertado: Vai que ele te pinta só as pernas ou te põe inclinado e sem cabeça? E ele deve ter dito, Capaz disso é ele. Risca, Maria.


Um dia, alguém lhe deve ter dito: A Clotilde Fava também faz umas figuras engraçadas, pinta bem, é do estilo quase realista. E o casal Mariani, já em desespero, deve ter dito: Então, se calhar.

Mas as amigas da Dona Maria devem ter-lhe segredado: É melhor não, o seu esposo não ia gostar, e não é por ela ser ex-sogra do Sócrates, é mais porque ele ainda se arrisca a sair com cara de preto ou de peixe. Ao que a Maria deve ter ido a correr ter com o maridinho: Ai filho, disseram-me umas coisas, olha, a Clotilde também não.


E assim devem ter andado, dilema atrás de dilema, todos descoroçoados, O que é que a gente resolve, Maria? Qualquer dia já não dá tempo, vê lá se ajudas, mulher.
Sei lá eu, homem, por mais que puxe pela cabeça já não me sai nada, que é tu queres? Mas olha lá: tu já perguntaste ao Liberato? Não?! Então pergunta, homem, que aquilo lá é ladino, sabe tudo.

E portanto alguém lhes deve ter dito (se calhar até foi mesmo o Liberato, sei lá): Há um tipo que tem mão. E devem ter mostrado ao casal uns quadros em que o Barahona se manteve na linha, tudo tão realista que até parecia uma fotografia, tudo nove horas, nem um fio fora do lugar. E o casal deve ter-se entreolhado e, à uma, deve ter ter feito um alegre give me five e dito em uníssono: Feito!

E assim foi.

Claro que ninguém os deve ter avisado da desbunda que volta e meia grassa pelas pinturas do Barahona. Uma coisa que só vista. Na última exposição que vi dele até tive que, volta e meia, desviar o meu pudico olhar. Um realismo que até faz impressão, benza-os deus.




Claro está que ao Barahona Possolo vontade de despir o Cavaco -- e pô-lo em poses impróprias para consumo -- não lhe deve ter faltado. Quiçá até pô-lo com um espelho à frente onde se reflectisse a imagem do seu alter-ego, a sua alma gémea: a Dona Maria Cavaca em pessoa. Ou todo barrigudo, prenhe de si próprio, e, a espreitarem lá atrás, os amigos do BPN. Mas vá lá, não sei como, conseguiu conter-se e parir um Cavaco igual a ele mesmo. Teve sorte nisso, o Cavaco. Vá lá.


____

Já agora, para quem não conhece a obra de Carlos Pedro Barahona Fernandes Possollo de Carvalho (Lisboa, 5 de Agosto de 1967) -- filho de Abecassis João Martins Possollo de Leão Vasco de Carvalho (Alenquer, Aldeia Gavinha, 8 de Fevereiro de 1928), de ascendência Italiana e Alemã, e de sua mulher Luísa Cândida Calleça Barahona Fernandes --  aqui fica um vídeo que mostra bem a sua mão para retratos e a sua imaginação transbordante.

Chamo a atenção para que algumas das pinturas poderão chocar algumas almas, especialmente as mais dadas a apreciar modelos masculinos do género dos que aparecem no vídeo linkado no post abaixo. Portanto, aqui fica o meu aviso: vão com calma.

Estou a avisar.


Recomendo ainda (a maiores de 18, conforme lá se aconselha) a visita ao site do grande Barahona.

____

Lá em cima, o acompanhamento musical do post esteve a cargo de Kátia Guerreiro e Anselmo Ralph, numa de transição do actual presidente para o futuro: 'Não me toca'

_____

A quem ainda não visitou o post que se segue, no qual se recomenda a algumas figuras uma ida ao espaço para ver se crescem 5 cm e onde se faz referência a um curioso concurso para homens, sugiro que vão por aí abaixo.


sábado, abril 18, 2015

No coração da sua estranheza





Aquilo a que chamamos desejo: onda obscura de matéria inominável.






 'Era em Mégara, subúrbio de Cartago, nos jardins de Amílcar.'
-  o festim dos Bárbaros, quadro de abertura de Salammbô.


Os Bárbaros de Flaubert 'estendiam-se sobre as almofadas, comiam acocorados em torno de grandes bandejas ou então, deitados de barriga para baixo, puxavam para si os pedaços de carne e saciavam-se apoiados nos cotovelos, na posição pacífica dos leões quando dilaceram a presa. Os últimos a chegar, de pé encostados às árvores, contemplavam as mesas baixas, meio ocultas sob tapetes de escarlate, esperando a sua vez'.

'Estendiam-se sobre as almofadas'.

Flaubert escreveu inicialmente 'espalhavam-se'


Lógica daquele que vê: não a sintaxe das coisas que nascem e morrem, mas a sintaxe das coisas que estão ali. E, neste ali, passado e futuro não contam para nada, mesmo que que haja um passado que esmague tudo, ou quase, e devir não quer dizer nada, nada de nada, nada mais que a suspensão de um relâmpago.

Parábola sem herói nem moralidade: as imagens alimentam-se ostensivamente do que está no coração da sua estranheza, isto é, da plena luz sobre o seu quotidiano, libertadas de qualquer inquietação, inclusivamente a de durar, como se para durar houvesse um esforço a fazer, esquecidas de fingir que compreenderam (compreender é ainda aumentar o lastro, aumentar a dificuldade de deitar fora esse lastro), e esquecidas também do nada que não compreendem e que é aliás completamente indiferente, tal como a diferença entre compreender e não compreender.




os fumos, as névoas ou a sua contrapartida, as arestas, as placas, o gosto ácido da flecha através das névoas, cenografias de Turner,

a seda e a areia, a rocha e a lama,

a brancura do papel, de que devemos fruir como a carne desfruta o sol,

por um acaso de dados ou por um caminho raciocinado, a sementeira à toa de pontos, de linhas, de manchas,

estabelecer, descobrir ou deixar vir afinidades, antagonismos, conflitos, tensões,

compensações, oposições, correspondências,

tentando organizá-las em sistemas coerentes (que quererá isto dizer?),

(...)

Não me apetece continuar: este carreiro corria o risco de nunca chegar a um fim, visto que as imagens que o compõem se renovam com uma prática dia a dia retomada e questionada. E com a matéria da palavra a seduzir o acto de escrever, assim como a memória que lhe serve de suporte, suspeito de que o meu discurso ameaça deslizar para esse olvido que nos de má vista deve fazer as vezes da preguiça do olhar.



____

  • As palavras são excertos ao acaso e não sequenciais de 'Da cegueira dos Pintores', Parte Escrita II, de Júlio Pomar - um livro fascinante.

  • As pinturas, como é bom de ver, são também de Júlio Pomar.
  • Lá em cima Oleta Adams interpreta Get Here.
____


Permitam que vos convide a descer até aos dois posts seguintes: há um novo vídeo do Cine Povero com Gonçalo M. Tavarese, a seguir, Os outros falam de Herberto Helder.

____

E, com isto, vou descansar para estar preparada para um dia que se espera animado. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo sábado vivido em paz e, se possível com afecto.

...

domingo, março 15, 2015

Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida.


No post abaixo mostro a fusão perfeita entre arte e artesanato e, mais abaixo, mostro a operação de salvamento perfeita para um náufrago que ainda não esteja completamente morto.

Mas aqui, agora, viro-me para outras palavras.






Quando chego à clínica de reabilitação onde o meu pai está internado, ele está na sua cadeira de rodas na sala de estar. Quem ali está não está bem e os que estão melhor são os que partiram uma perna ou um braço. Ao todo são uns vinte e tal e muitos tiveram AVCs. Homens e mulheres, novos e velhos.

No quarto em frente do quarto do meu pai está um homem novo que parece estar muito mal, parece estar entubado, a dormir. A minha mãe diz que acha que ele deve estar em coma. Por vezes, vejo lá ao lado da cama uma mulher jovem, outras vezes uma mulher um pouco mais velha. Estão sempre caladas e de ar triste. Imagino que sejam a mulher e a mãe dele mas não sei. Hoje a porta do quarto estava fechada, a minha mãe disse, com ar apreensivo, que se calhar ele piorou. 

Quando chegamos, levamos o meu pai a passear. Passear resume-se a levá-lo na cadeira de rodas até à entrada do edifício e, quando não está vento nem frio, até lá fora. Se está frio, fica no átrio que é luminoso e arejado. Outras vezes pômo-lo junto à janela do quarto que dá para uma varanda. Ou, simplesmente empurro a cadeira pelos corredores que são largos e com muita luz (pois existe uma enorme clarabóia no centro do edifício, em torno da qual estão os quartos e os corredores) para ele sentir que está a passear. Quando lhe pergunto se gosta diz-me que não, que quer é estar sossegado e que eu estou sempre com ideias. Mas depois, se paro, pergunta porque é que parámos.

Hoje dizia que estava com frio e eu pus-lhe um casaquinho meu à volta do pescoço, um casaquinho leve, cor de pêssego, que tinha levado para o caso de arrefecer. Ficou engraçado assim, mas ele nem se apercebeu da cor. E queria era vestir um casaco grosso. E então dizia-me, com aquele seu ar mandão de antes, a prioridade é vestir um casaco

Lá o levei até ao quarto e lá lhe vestimos um casaco por cima da camisola que tinha e lá ficou mais confortável. E lá ficámos. Mas, depois, chega a um ponto que já não tem paciência para me ouvir na conversa com a minha mãe. Quando estou com ela, tal como quando estou com a minha filha, desatamos a falar, temos sempre assunto e, ao fim de pouco tempo, já estamos a rir-nos, a contarmos uma à outra coisas engraçadas.

Hoje a minha mãe estava a dizer que o stress é uma das grandes causas dos AVCs e que eu devia ter uma vida mais calma e tal e coiso e, às tantas, a conversa já era que a cabeleireira lhe tinha contado que, há uns anos, tinha comprado um apartamento em Quarteira e que, quando lá chegaram para o mobilar, deixaram o Jacob, um papagaio que tinham, na cozinha e foram à vila escolher mobílias. O apartamento era um T1 com kitchenette. Demoraram, almoçaram por lá, regressaram ao fim da tarde. Mal abriu a porta, deu um grito, só havia penas verdes pelo ar.
Nem percebeu. O chão da casa vazia todo coberto de penas. Quando deu com o papagaio, deu um grito. Mal o reconheceu, todo depenado, só com uma penagem no alto da cabeça. Parecia uma codorniz nariguda, um pequeno bicho horrível. A minha mãe a contar isto mal conseguia falar de tanto rir e eu, ao ouvi-la, já chorava a rir. Como não conseguiram perceber o que se tinha passado, foram com o Jacob ao veterinário e ele explicou que tinha sido do stress por se julgar abandonado.
O meu pai às tantas fica cansado. Embora tentemos falar baixo para ele não se amofinar, é uma conversa constante, intercalada de risota. E, portanto, começa a impacientar-se e a mandar-nos embora, que quer é descansar, ir para a cama. 

Mas não era disto que queria falar, era doutra coisa.

Hoje estava lá um homem novo, uns quarenta e picos. Estava numa cadeira de rodas e não falava, olhar vazio. Foram visitá-lo duas mulheres da mesma idade, ar moderno, bem arranjadas, e um homem novo. Falavam com ele, tentando parecer que estavam a ter uma conversa normal, mas ele olhava-os com ar vazio. Uma das mulheres ajeitava-lhe as pantufas, ajeitava-o na cadeira, mas ele era como se nem desse por ela. Penso que seria a mulher. O outro homem conduzia a cadeira de rodas, dava-lhe atenção, pareceu-me que talvez fosse irmão. Mas o homem doente nada. Fiquei com muita pena.

Há lá uma senhora que deve ter uns sessenta e tal, bonita, bom ar, cuidada. Teve também um AVC e ficou com um dos lados da cara um pouco descaído, um dos lados do corpo sem mexer e, pior, perdeu a fala. O marido está lá sempre que eu lá vou. É de um carinho tocante para com ela. Faz-lhe festas no cabelo, ajeita-lhe o cabelo. Olha para ela, sorrindo.

À hora do lanche, quando estavam na sala de estar, eles estavam na nossa mesa e eu disse-lhes que o meu pai, depois de ter tido o AVC, voltou a andar, não tão bem como antes mas andava dentro de casa, apoiado. O senhor sorriu, virou-se para a mulher, bateu-lhe ao de leve na mão, e disse-lhe com ar de esperança 'Ouviste...?'. A senhora tentou esboçar um sorriso mas, talvez por metade do rosto não acompanhar, pareceu um sorriso muito triste.

Mas o que eu queria contar é isto: quando, depois, andava a passear com o meu pai pelos corredores, até ao átrio, por ali, dei com um pequeno corredor estreito ao fundo que eu não sabia onde ia dar. Então, resolvi ir explorar. Mas, então, ao curvar vi que ao fundo havia uma porta que dava para uma varanda. Encostados a essa porta, virados para a rua, estava a senhora na sua cadeira de rodas e o marido, ao lado dela, numa cadeira. As cadeiras estavam quase encostadas e estavam de mãos dadas.

Fiquei por um instante a olhar, surpreendida, e senti que as lágrimas me vinham aos olhos. Silenciosamente,  virei a cadeira do meu pai e voltei para trás para eles não darem por mim e para não sentirem que eu tinha invadido o seu espaço de intimidade.

Quando vinha para casa, no carro, não me saía da cabeça a imagem dos dois, em contraluz, de mãos dadas.

E vinha a pensar que é isto o amor, esta vontade de estar perto do outro, esta vontade de intimidade, esta vontade de confortar e de se sentir confortado, este afecto incondicional, este não conseguir estar longe, esta vontade de fazer e dizer tudo para que o outro se sinta com esperança, feliz.

.......


Apetece-me agora juntar um poema que pode não ter muito a ver com o que escrevi mas que, para mim, tem pois fala de gestos simples, de generosidade, de uma mulher e de um homem que lêem os mesmos versos. E eu sou uma pessoa de gestos simples, de afectos, de abraços, gosto tanto de abraços. E gosto de ver como os afectos confortam a vida de toda a gente, especialmente de quem passa por momentos difíceis ou se perdeu de si próprio.


Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido,
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.



[Os justos de Jorge Luis Borges, trad. Fernando Pires do Amaral in 'Cem poemas para salvar a nossa vida']


____


As pinturas são de Júlio Pomar. A música é Suite Lyrique - I. Prelude de John Rutter com Catrin Finch na harpa.

___

Abaixo há mais dois posts: um com delicadeza e arte e outro com humor.

____


Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo dia de domingo. 

...