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segunda-feira, fevereiro 13, 2023

Há uma virtude sem a qual todas as outras são inúteis: essa virtude é o encanto.

 



Tenho dormido bastante. Depois de dias algo incómodos e noites mal dormidas com o joelho inflamado e dorido (só com cortisona é que foi ao sítio), eis que, no rescaldo, o corpo se tem desforrado. Durmo de noite e, a seguir ao almoço, é só encostar-me que logo adormeço.

De manhã fomos passear com a minha mãe. Deu-me uma joelheira elástica que era do meu pai. Coloquei-a e senti-me mais confortável. Parece que andava a sentir os ossos e as cartilagens como se estivessem à solta, agora que o inchaço passou e o quisto de Baker se esvaziou. 

Tínhamos pensado ir comprar comida chinesa para o almoço mas, afinal, o restaurante estava fechado. Já era tarde. Fui ao supermercado ver como resolvia a emergência e, como contra factos não há argumentos, trouxe frango assado. Devíamos estar com fome pois soube-nos lindamente.

A seguir, foi um sono tão profundo que até sonhei. Sonhei que o meu marido tinha lá chegado e, na brincadeira comigo, como se eu fosse uma menina de quatro anos, tinha pegado em mim ao colo e me tinha sentado na parte de cima de uma estante. E eu a protestar, que não gostava de estar nas alturas, e ele a troçar. Depois tinha ido buscar lenha para a lareira e tinha-me deixado ali. Eu a protestar, que me tirasse dali, e ele sem aparecer. Eu olhava para baixo para avaliar se tinha alguma hipótese de sair por mim. Não: muito alto para saltar e sem possibilidade de descer pela estante como se fosse uma escada pois esta poderia virar-se. Então, tinha resolvido que mais valia deixar-me ficar, aproveitar para dormir. 

Quando já passava das cinco, acordei e olhei à volta, convencida que ainda estava sentada lá em cima.

Levantei-me do cadeirão. O cão levantou-se também, tinha estado a dormir no chão, ao meu lado.

Se há prazer de que tenho desfrutado é vir para aqui à tarde. Afasto o cortinado para entrar a luz, pelo sim pelo não ligo o candeeiro de pé, cubro-me com uma mantinha leve e aveludada, ponho-me a ler... e deixo-me ir. Maravilha.

Quando me vê a dirigir-me para as escadas o ursinho cabeludo aparece logo, parece que pressente. Subo, ele também. Eu sento-me e ele também. Eu adormeço e, creio, ele também. 

Valiosos momentos de tranquilidade.

Hoje estava a ler a Biblioteca Pessoal de Jorge Luis Borges. Outro prazer. 

Ao fim da tarde fomos dar um passeio por aqui. O céu estrelado, a noite fria mas agradável. Só nós na rua. As casas com as luzes acesas, algumas com o interior à vista. Sempre gostei de passear à noite vendo o que, de fora, parece sempre aconchego e intimidade. Em algumas casas, a escadaria entre os pisos é acompanhada por um enorme painel de vidro que dá para a rua. Vê-se tudo, em especial à noite, quando têm a luz acesa. Pergunto-me sempre: não lhes acontece andarem meio despidos? Não se importam se alguém, na rua, os vir?

Há uma casa nova em que a cozinha dá para a rua, com uma janela de vidro de parede a parede. Quando estão a cozinhar ou a lavar a louça estão à janela, virados para quem passa. Fico sempre na dúvida sobre o que devo fazer: fazer-lhes adeus para os cumprimentar ou fazer de conta que não vejo. 

Na casa grande cujas traseiras dão para um caminho a partir do qual não há mais casas e em que tudo era envidraçado, sem estores ou cortinas, incluindo o grande quarto de dormir, há agora, justamente aí, um estore de lâminas verticais de madeira. Sinceramente, quando o vi até me senti aliviada pois temia o dia em que visse o que não queria ver.

Tirando isso: quase não temos visto televisão. E isso é muito bom.

Ligo o computador à noite e vou espreitar os vídeos. Gosto em particular de ver casas. Esta que aqui partilho é fantástica. Não que eu gostasse de morar numa casa assim. Mas gostaria de visitar o seu dono, andar a espreitar isto e aquilo, apreciar a elegância das escolhas. 
Claro que, como sempre, custa-me perceber como se limpa o pó a uma casa assim. E penso também noutra coisa: uma casa assim é uma casa para ser eterna. Ora, como ninguém é imortal, o que acontece a uma casa como esta, tão pessoal, tão especial, tão indissociável do seu dono, quando este se desprender da existência? 
Mas, enfim, ideias peregrinas à parte, é um gosto ver casas bem desenhadas e bem decoradas

Refúgio francês cheio de tesouros do designer John Galliano (com 7 objetos exclusivos) | Vogue


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Lá em cima, a música é de Handel: "Eternal Source of Light Divine", com Thomas Dunford, Jupiter, Lea Desandre, Iestyn Davies

O título do post são palavras de Stevenson citadas por Borges.

As pinturas são da autoria de Fujishima Takeji

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira
Saúde. Serenidade. Paz.

sexta-feira, fevereiro 12, 2021

Algo de sonolência resignada e amável. Sem dúvida uma coisa que sucede no passado

 


Depois de me terem falado num funeral que teve que ser feito longe pois, na cidade, não havia 'vaga' tão cedo, alguém conta de um seu conhecido também com covid, mal, nos cuidados intensivos. No fim da reunião, um dos participantes tentou encurtar a reunião dizendo que tinha várias chamadas da mesma pessoa, estava preocupado. Ligou-me algum tempo depois: um amigo tinha caído inanimado, um enfarte fulminante. Os médicos batalharam e conseguiram reanimá-lo mas estava muito mal, nos intensivos. Um outro colega tinha-me contado, de manhã, que a mãe estava mal, nos intensivos, tudo nela a ir-se abaixo. Não covid: apenas tudo a correr mal.

Hoje uma pessoa perguntava sem esperar resposta: o que é isto? está tudo a desaparecer?

Também não saberia responder. A quantidade de pessoas a quem têm morrido o pai ou a mãe -- uma até, com pouco intervalo, ambos -- já nem sei dizer. Um bocado assustador.

Ouvi ao telefone o meu marido com um colega: tinha estado mal, em sofrimento. Tinha ido para o hospital, estava sem oxigénio, ficou lá. Agora está em casa mas mal, com oxigénio. Um homem novo a falar como um velho sem força.

Tento não pensar em nada disto, não ouvir noticiários que explorem a desgraça. Mas a desgraça chega até mim pela voz de colegas e amigos. Não sei se contei. No outro dia, ao telefone com um amigo, perguntei-lhe pela mãe. Sempre foi muito cuidadoso e preocupado com a mãe. Respondeu: morreu há poucos dias. Fiquei sem saber o que dizer. Perguntei se tinha sido covid. Disse que não. Apagou-se, disse ele. Estava sentada a ler, morreu. 

Não sei explicar isto. 

Só quero que venha o bom tempo. Hoje nem consegui ir ao jardim. Choveu todo o dia. Muito escuro, ventoso, frio. O tempo assim é uma tristeza. 

No trabalho, os tempos não vão tranquilos. Gente doente, gente em isolamento, equipas reduzidas. Difícil traçar planos, difícil exigir alguma coisa. Apetece também dizer que façam o que puderem, apetece deixar toda a gente em paz.

Na televisão ouço falar no dia dos namorados e fico a pensar: coitados dos namorados que não vivem juntos. Depois penso que também não é extraordinário para os que vivem juntos. Algum espaço é bom. O confinamento não é bom para ninguém. E há o carnaval. Tantas vezes que me lembro do carnaval na Galiza. O que nos espantámos com o que aquela gente se divertia, famílias inteiras mascaradas da mesma maneira. Riam, andavam pela rua a cantar, a rir. No ano em que o descobrimos, os miúdos ainda adolescentes, connosco, ficámos num hotel por cima das rias. Víamos a água debaixo de nós, o chão era de vidro. 

Tanto que me apetecia agora sair por aí, de carro, ouvindo música, descobrindo terras. 

Agora não saio daqui e não sei quando poderei sair. Ainda bem que há cuidado, tem que ser. António Costa pede regras. São fáceis. Qualquer matemático sabe estabelecer as métricas: x infectados por dia quando os hospitais estiverem a y% da sua capacidade. A dificuldade está em saber a quantos internados correspondem a montante os x infectados uma vez que, se bem percebo, isso é variável consoante as estirpes. E são estas variantes e estirpes que baralham a equação. Então, é jogar pelo seguro. Mas, como não se pode confinar-desconfinar-confinar semana sim, semana não, o melhor é garantir que a sociedade funciona com um mínimo de perturbação e um mínimo de gente em circulação. 

Por exemplo: teletrabalho obrigatório para todas as funções que o permitam. Não é ao gosto do freguês, como era. É mesmo obrigatório. Quanto às escolas, é, pelo menos, fazer secundário e universidades remotos até ao fim do ano lectivo. E é inspeccionar os sistemas de ar condicionado e obrigar a ter injecção de ar exterior. É impedir que várias pessoas estejam em espaços fechados não ventilados com ar do exterior. Obrigar a que as janelas e portas estejam abertas, caso não haja garantia que o espaço está a ter extração de ar e injecçção de ar limpo. É fazer anúncios, anúncios, anúncios. É substituir as notícias e as reportagens catastrofistas por reportagens didácticas, facilmente perceptíveis. Por exemplo: como fazer exercício em casa, como fazer uma alimentação racional em confinamento. Reportagens agradáveis, bem feitas, que saibam bem ver. No outro dia vi uma da BBC. Um gosto.

Bem. Estou cansada.

Ontem, quando fui apanhar uma laranja, vi uma coisinha branca no chão. Não percebi o que era. Baixei-me. Era metade de uma casquinha de ovo. Pequenina. Olhei para o lado. Se calhar, dali nasceu um passarinho. Tentei fotografar mas estava a chover, as fotografias saíram-me desfocadas.

Gostava ainda de contar que ontem tinha para o jantar lombos altos de atum congelado. Não bifes: não, mesmo lombos altos. Então fiz assim. Deixei a descongelar. Quando andava a fotografar o ovinho, reparei que estava uma lima caída. Muito madura. Então, numa taça de vidro transparente (e isto é relevante pois fica bonito e deve ser visto em toda a sua transparência) juntei o sumo da lima que, por sinal, era muito sumarenta, azeite, um pouco de sal, um pouco de orégãos e... claro... mel, uma colher de chá de mel. Com um garfo, bati até que virou uma bela emulsão dourada. A importância da tacinha ser de vidro incolor e transparente está aqui: a cor e a textura da emulsão ficaram lindas.

Despejei-a sobre os lombos do atum, já descongelado, que tinha colocado numa taça funda. Ficaram mergulhados. De vez em quando, virava-os. Com um garfinho de plástico, daqueles de criança do ikea, piquei-os grosseiramente, apenas para que a emulsão melhor os atravessasse. De cada vez que fiz isso, mergulhei um dedo e lambi-o. Estava deliciosa.

Umas horas depois, hesitei se não deveriam ficar assim, crus. O meu marido disse que não. Eu preferia cru mas tudo bem. Claro que poderia ter deixado um lombo cru para mim mas tenho destas coisas meio parvas, gosto que tenhamos a mesma coisa para comer.

Entretanto, num tacho, juntei água, um pouco de sal, umas cenouras, feijões verdes, batata normal e batata doce cor-de-laranja, tudo aos bocados. Cozi. Depois temperei um azeite.

Então, numa frigideira, deitei a emulsão e deixei que aquecesse. Juntei os lombos e selei vagamente em cada lado, baixo, cima, dos lados. 

Acompanhámos com salada de alface e rúcula. 

Perdoem-me a imodéstia mas acreditem: estava mesmo bom. Mesmo bom.

Mas tudo tem um lado mau. Tinha aquecido pão. Então, para além da comida que tinha no prato, comi uma bolinha molhada no molho. Aos bocadinhos, aos bocadinhos, sempre a desejar parar. Não sei quantos quilos terei a mais no fim disto tudo. A ver se consigo fazer umas refeições só de chá e fruta para ver se perco o que ganho nestes exageros.

É que, ainda por cima, descobri umas bolachas de chá e aveia cobertas de sementes que estavam quase a perder a validade. São simplesmente deliciosas. Mas imagino as calorias. Melhor nem pensar.

Portanto, é isto que tenho a reportar. A seca do costume. 

Que venha o sol e os dias grandes a ver se consigo sair desta invernia que me envolve a escrita.

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La lluvia tiene un vago secreto de ternura,
algo de soñolencia resignada y amable,



Cae o cayó. La lluvia es una cosa
Que sin duda sucede en el pasado.


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A chuva segundo Federico Garcia Lorca e Jorge Luis Borges

Pinturas de Inès Longevial ao som de Julia Stone - We All Have Feat. Matt Berninger

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Desejo-vos uma boa sexta-feira.

Saúde. Ânimo.

sexta-feira, setembro 18, 2020

A diferença entre amizade e amor

 


De amores sei bem falar e posso falar de vários e de vários tipos. Todos intensos, todos exigentes. 

De amizades também, mas aí sou mais de amizades com o sexo masculino. Se eu quiser falar de uma grande amiga, amiga para a vida, não sei bem. Amigas, várias, mas grandes, grandes amigas, que me lembre, acho que não. Com homens, sim. Desde sempre. Desde que me lembro de mim, os melhores amigos sempre do sexo oposto. Grandes, grandes amigos. Ainda hoje. Se me apetecer falar com alguém para estar na conversa, para comentar coisas, para ouvir uma opinião, para me distrair, é de um amigo que me lembro, não de uma amiga. É certo que de um há quem se me refira a ele como 'a tua amiga' mas eu não dou troco a provocações. 



E confirmo aquilo de que se fala: com os amigos, a gente pode estar séculos sem se falar que, quando volta a falar, é como se estivéssemos a retomar uma conversa da véspera. Não há recriminações, não já justificações. Há apenas o retomar natural. E a gente a um amigo desculpa tudo, encontra explicação para as suas falhas, tenta ajudar, não tem vontade de retaliar se alguma coisa foi ao lado, não exige provas, não requer assiduidade. Não há cá dúvidas sobre a gradação do afecto, não há ciúmes, não há vontade de picardias, não há cá tentação de querer juras ou promessas.

Pelo contrário, num amor caem por terra todas as santidades. Bons íntimos, isso é com a amizade. No amor, quando os demónios dentro de nós se agitam, saem à cena todas as armas e é com a nossa mais apurada pontaria que as empunhamos. No amor a gente sofre com saudades, a gente sofre com receio que tudo venha a definhar envolto em memória, no amor a gente reclama, a gente zanga-se, a gente embirra, a gente duvida, a gente pena, a gente quer proximidade, quer presença, quer o olhar do outro fixado em nós, a gente quer a nossa alma desvendada pelo outro.

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Mas isto sou eu. E que sei eu? Sei de mim e, mesmo assim, é conhecimento escasso e volátil. Para se saber mesmo, de certeza absoluta, haveria de se reunir uma amostra que respeitasse as mesmas proporções da população toda -- em idade, sexo, escolaridade, condição social, religião, etc, etc. -- e, junto dessa amostra representativa, colher opiniões. Depois de ter colhido um ror de sentenças e dúvidas se faria um mix, se coaria a mistela para lhe retirar borras e espumas e da substância se traçaria o correcto retrato. Amizade é isto. Amor, aquilo. Assim... tudo o que se diga são simples tentativas de separar algumas águas.


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E se, em vez de estar a ver qual a teve maior maior, se o avante, se o santuário, ou a dissertar sobre o apoio de uns e outros ao tal que a mim pouco me diz, o tal que agora prescindiu do polémico apoio, coisa que a mim também me deixa de fora, estou aqui nesta conversa velha e relha da diferença entre amizade e amor é porque o meu soul mate, o algoritmo do YouTube, hoje tinha para me mostrar um little video no qual Borges, com aquele seu enternecedor sorriso inocente e cego, aborda o tema.


Borges habla sobre la amistad y el amor


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Talvez que os bem nutridos do Botero não sejam discretos o qb para aqui estarem mas que é lá isso de descriminar alguém em função do peso ou das curvas?

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E tudo bem

quinta-feira, setembro 10, 2020

Traz-me a verde eternidade, não prodígios




Como estou em silêncio sob o alpendre, trabalhando sozinha e rodeada de buganvílias em flor, não incomodo os pássaros. Andam por ali em total liberdade. De vez em quando ouço barulhos quase estranhos que me levam a levantar-me, em silêncio, e ir tentar descobrir. Vem das árvores. Numa das vezes, um pássaro levantou-se, precipitadamente. Parecia que ouvia bater, uma pancada seca e repetida no chão e, afinal, era um pássaro. Se calhar terei que arranjar uns binóculos para tentar aprender a sua actividade.

Fui até lá ao fundo. As bananas estavam maduras. São muito estranhas, nunca vi bananas assim. O meu marido dizia que deviam ser bananas-pão, que não se comiam cruas. Apalpei-as, vi que estavam amolecidas. Como estava sem ter quem me refreasse, arrisquei. Doce, doce, doce. Um pudim macio. Apanhei as outras três. Já comi outra. O meu marido, desconfiado, não quis. Não sabe o que perde.

Coloquei num vaso o caroço de uma pêra-abacate que a minha mãe me deu. A ver se desponta. Se rebentar, transplanto-o e coloco na terra. A minha mãe diz que a vizinha tem uma no quintal e que cresce muito e dá abacates que é um gosto. Gosto de abacate macia misturada com kefir, canela, cajus, arandos, um fio de mel. No outro dia, a minha filha trouxe-me um boião com pólen de abelhas, em grão. Agora misturo-o no kefir da manhã e aquele crocante dá uma graça suplementar à papinha fresca e gostosa com que começo o dia.

Ao fim da tarde, voltámos a ir fazer uma caminhada na praia. O mar estava tranquilíssimo. A brisa mais do que fresca estava perfumada, uma maresia doce, dourada, serena. Andavam pequenos gaivotinhos a brincar na rebentação tranquila da água. Tinha levado a máquina mas sem cartão, não consegui registar o momento. A ver se amanhã conseguimos lá voltar.

De regresso, vim regar a zona da relva a que os jactos da rega automática não chegam. Tem que se arranjar aqueles aspersores. Mas gosto de regar. Reguei também os vasos. O meu marido foi regar a horta. 

Para o jantar fiz lombos de salmão, que é coisa rápida e fácil de fazer.

Fiz assim: fui apanhar duas grandes goiabas.
(A anterior proprietária disse que eram goiabas. Continuo a achar que são marmelos. Grandes, mal cabem numa mão)
Num tabuleiro coloquei azeite, uma cebola às rodelas, os marmelos às fatias, dois tomates em metades e, por cima, os lombos de salmão. Temperei com sal. Reguei com azeite. Antes tinha aquecido o forno. Quanto o tabuleiro entrou, baixei para os 180º. Ao mesmo tempo pus no fogão, a cozer, feijão verde, batata normal e batata doce cor-de-laranja. Quando estavam cozidos, deixei ficar o feijão verde para o comermos assim mas juntei as batatas ao tabuleiro, temperei tudo com um pouco de orégãos e reguei com outro fio de azeite.

Quando tudo estava dourado e um cheirinho saboroso tinha invadido a cozinha, o processo culinário foi dado por concluído e passou-se à fase da manducação.

Mais tarde, voltei onde sempre volto: ao meu ninho. Entre almofadas macias, descanso o corpo. Ouço música. Descanso a cabeça.

Não contei ainda que, à hora de almoço e ao fim da tarde, regressei ao livro. Acabei-o, claro. Não consegui estendê-lo por mais tempo.
Dizia que o escritor não devia ter a indelicadeza de surpreender o leitor. Procurava na literatura conclusões que fossem ao mesmo tempo surpreendentes e óbvias. Lembrando que Ulisses, cansado de prodígios, chorou de amor ao ver a sua verde Ítaca, concluía: "A arte deve ser como Ítaca: de verde eternidade, não de prodígios".
(...) 
Gostava de metáforas antigas -- o tempo como um rio, a vida como uma viagem e um combate --, e esse combate e essa viagem terminaram para ele, e o rio arrastou consigo todas as coisas daqueles serões, excepto a literatura, que (teria dito Borges, citando Verlaine) é o que fica depois de o essencial, sempre inacessível às palavras, se pronunciar.
Amanhã retomarei o Narciso e Goldmund. Imersa em verde, no meio de flores e do canto dos pássaros, depois de reuniões e outros compromissos, entrarei num outro mundo.

Tempos de paz, tempos de felicidade. Tantos passos a gente vai dando e, de repente, parece que todos os passos existiram para aqui chegar. Claro que há ainda algumas pontas soltas, algumas partes por desbravar, caminhos dúbios, labirintos, poemas para ouvir, páginas por ler. Mal fora se assim não fosse, significaria que tinha chegado ao fim da minha viagem. Ora não, espero ter ainda muitas dúvidas para esclarecer, muitos conhecimentos para adquirir, muitas lutas por travar. Mas a todos os esconderijos e caminhos ínvios a luz há-de chegar e muito haverá ainda por festejar.

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Fotografias de Tina Modotti com acompanhamento de Melody Gardot em So we meet again
De novo, excertos de Com Borges de Alberto Manguel
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Saúde, boa sorte, boa disposição.
Be happy.

terça-feira, setembro 08, 2020

O Requiem e Las causas




Há quem se emocione com o Requiem de Mozart. Também me emociono mas não a ponto de chorar. Mas emociono-me, por vezes com lágrimas, ao ouvir ler Las Causas -- como se estivesse perante uma inesperada antevisão da perfeição da vida, como se estivesse perante a descrição do melhor destino que se pode desejar, 

Mas digo isto sabendo que não sei explicar. 

Porque chora alguém ao ouvir o Requiem de Mozart? 
Porque acorda na sua alma sofrimentos adivinhados, saudades fundas, dor cavada e incumprida? Porque se levanta da terra o sopro de espíritos antigos, porque convergem no seu peito lágrimas de sofridas despedidas, gritos de dor longamente calados? Porque todas as cordas da alma, em uníssono, choram a finitude do corpo, a finitude do amor? Porque depois da perfeição que se ouve apenas pode sobrevir o vazio e o vazio é o tenebroso abismo em que se afogam os desesperados? Ou porque, no fim, se percebe que poderia ter havido alguma coisa e, em vez disso, houve nada e mesmo esse nada acabou? Porque tudo é tão efémero, tão frágil, tão difícil de agarrar e tão fácil de perder?
Não sei. Se alguém sabe que o diga.

Seguramente, não serão as mesmas razões que me levam a emocionar-me com Las causas. Enquanto no Requiem o rio avança, belíssimo e nobre, para se perder lancinantemente no mar, talvez até no céu, em Las causas os braços do rio caminham, desconhecendo-se, caminham cegos, inocentes, para inesperadamente confluirem e se tornarem um rio único, belo, forte e destemido. É a celebração do acaso e das diferenças que se ajustam entre si, é a emoção do caos feito ordem, é a harmonia que surge quando menos se espera, é o encontro virtuoso que justifica o acto de viver.



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E a todos desejo um dia feliz, com muita vontade de celebrar a vida

Com Borges, com Manguel



Um dia em que eu estava lá, o carteiro trouxe uma grande encomenda contendo uma edição de luxo do seu conto O congresso, publicado em Itália por Franco Maria Ricci. Era um livro enorme, encadernado em seda preta, com letras douradas e impressas num papel fabriano azul feito à mão, cada ilustração (a história vinha ilustrada com pinturas tétricas) fora colada à mão e todos os exemplares numerados. Borges pediu-me que lho descrevesse. Ouviu atentamente e exclamou: "Mas isso não é um livro, é uma caixa de chocolates!" E, a seguir, ofereceu-o ao desconcertado carteiro.

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Mas também conseguia ser deliberadamente cruel. Um dia, estávamos nós sentados na sala, um escritor de cujo nome não me quero lembrar veio ler a Borges uma história que redigira em sua honra. Como tinha que ver com arruaceiros e delinquentes, julgou que Borges a apreciaria. Borges preparou-se para ouvir. As mãos sobre a bengala, os lábios ligeiramente entreabertos, os olhos fixados nas alturas sugeriam, a alguém que não o conhecesse, uma espécie de docilidade cortês. A história passava-se numa taberna cheia de personagens pouco recomendáveis. O inspector de polícia do bairro, conhecido pela sua bravura, entra desarmado e, pela simples autoridade da voz, leva os homens a deporem as armas. Então, o escritor começa a enumerá-las com entusiasmo: "Um punhal, dois revólveres, um bastão de couro..." Borges continuou na sua voz mortalmente monótona: "Três espingardas, uma bazuca, um pequeno canhão russo, cinco cimitarras, dois machetes, uma malvada de uma pistola de rolha..." O escritor conseguiu emitir uma risada. Mas Borges prosseguiu, implacável: "Três fundas, um tijolo, uma besta, cinco alabardas, um ariete..." O escritor levantou-se e desejou-nos as boas noites. Nunca mais o vimos.

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Excertos de 'Com Borges' de Alberto Manguel

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[Não conheço a autoria das pinturas]

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sexta-feira, setembro 04, 2020

Como as conversas devem ser sempre





Um novo dia cansativo: ir à outra casa cansa-nos. Já não existe aquela motivação que havia quando embalávamos coisas e coisas sem parar, descobrindo coisas que não víamos há tempo, desejosos de ter as nossas coisas na casa nova. Agora é o rabo da coisa a ser esfolado. Tudo o que era relevante e imprescindível já cá está. Sobra o que só se usa de quando em quando, o que passou de moda, o que é bom demais para ser deitado fora mas que, na casa nova, nem se sabe bem onde pôr. E ao início, em Julho, não estávamos tão cansados e saturados como agora já estamos. Vimos de lá exaustos, pouco nos aguentamos por lá. Devíamos conseguir estar mais tempo mas ao fim de hora e tal já estamos impacientes, já só nos apetece vir embora. Reparo agora que nem me tenho lembrado de ir à janela. E tanto que eu adorava ver o rio, a bela Lisboa dourada pela luz do fim do dia. 

Hoje já resolvi deitar para o lixo o equivalente a três grandes caixas de cartão e um saco preto do lixo, daqueles grandes. Mas ainda há muito para revirar.

Trouxemos vários travessas de inox, tabuleiros de pirex, vários de alumínio, fritadeiras (coisa que não uso há anos), toalhas de mesa, individuais que tinham ficado esquecidos, peças de barro como dois assadores de chouriço e um prato para o servir. Coisas pesadas que só visto.

Trouxemos ainda um quadro grande e dois feitos com azulejos artesanais. Creio que ficarão bem in heaven.

E depois fui-me às minhas carteiras, maletas, sacolas. Muitos anos a ser coquette é uma coisa tramada. Anos de vida urbana, anos de querer sentir-me bem arranjada, toda eu cheia de atenção aos details. Mas neste momento olho para as coisas de uma maneira diferente e penso que era outra. Carteiras (ou malas, como queiram) de todas as cores e feitios: uma cor-de-rosa, uma em azul profundo em camurça, outra em azul claro, tão bonita. Uma em amarelo torrado-dourado, outra, bolsinha, em pele castanha cor de mel, aos folhozinhos, uma graça. Outra em feltro preto, bordada em flores coloridas. E outras. Algumas, datadas ou a caminho de gastas, foram para o lixo. Mas ainda pior que serem demais: as coisas que todas ainda tinham dentro. Canetas e pens (que, Mr. X, Caríssimo Info-excluido -- já somos dois! --, não são a mesma coisa), pacotes de lenços de papel, batons já meio secos, tampões, moedas, cartas, carteiras com cartões, alguns dos quais eu procurava há séculos. Parte foi para o lixo, parte ficou num saco à espera que eu tenha tempo e disponibilidade para olhar para cada papel antes de lhe traçar a sina. E trouxe parte da bijuteria. Ainda me falta trazer aquela pequena vitrina de parede que, a meu pedido e com perfeição, o meu pai fez e onde tenho as pérolas, as pseudo-pérolas, as madre-pérolas, os corais. O meu marido trouxe um candeeiro de pé que estava meio abandonado. Tinha até ideia que não estava grande coisa. Afinal, depois de ajustado, estava bom e fica a mesmo a calhar ali num canto da zona de jantar. Viemos carregados. Uma vez mais, o carro a deitar por fora.

E ainda passámos por outros lugares pois, no meio disto, com o que deixámos para trás, reparámos que há algumas coisas que deveriam ser repostas. Passámos também pelo supermercado. Para além de limpa-vidros, de detergente para tijoleira vermelha, de lâmpadas, de autocolantes para pregar quadros (yes! mais caro do que se possa pensar mas dá um jeitão...) e etc., trouxe mantimentos diversos e... sardinhas (yes!). E assim foi que, depois de termos regressado cheios de sacos e de termos arrumado o possível (algumas coisas aguardam que eu engendre qual a melhor forma de as arrumar) e de termos tomado banho, preparei uma bela sardinhada. Batata cozida, salada de tomate, pão saloio.

Mas se a tarde foi pesada e durou até tarde, já a manhã foi tranquila, na praia. Ampla, felizmente já com pouca gente, bom tempo, um mar forte. E com leitura. Fiz um intervalo no Narciso e Goldmund. Para a praia prefiro livros pequenos, leitura que possa ser entrecortada. De Alberto Manguel, 'Com Borges'. Tão bom. Coloco o livro no meu alinhamento para ficar na sombra. O excesso de luz dissolve as palavras. De vez em quando penso que deveria esforçar-me por fixar o que leio. Mas sei que não consigo, só registo as ideias, não as próprias palavras. Agora, ao escrever isto, pensei em várias passagens; mas não consigo encontrá-las. Talvez que não seja suposto extrair frases do seu contexto. Ainda assim, arrisco transcrever este pequeno excerto.
'(...) o que, na minha cabeça, as conversas deviam ser sempre: acerca de livros e acerca do mecanismo dos livros, acerca da descoberta de escritores que eu nunca lera, e acerca de ideias que não me tinham ocorrido, ou que só dera conta de maneira hesitante e semi-intuída e que, na voz de Borges, cintilavam e deslumbravam em todo o seu rico e de algum modo óbvio esplendor. Eu não tomava notas porque, naqueles serões, me sentia demasiado satisfeito.'
E apercebo-me agora que ainda cheiro a gengibre apimentado. Trouxe da outra casa uma caixa daquele creme que adoro: Special Edition Ginger Body Yogurt. Tem um aroma apimentado que me agrada muito. Já estava menos de meio e o meu marido quase se passou quando percebeu que estava a carregar embalagens usadas. Mas ia deitar fora uma coisa de que gosto tanto...? Acabo o banho e, ainda na banheira, a pele ainda morna e húmida, passo o creme pelo corpo que o absorve de imediato deixando-me com aquele perfume levemente exótico, levemente intrigante. Gosto.

Gosto de coisas talvez insólitas: a pele perfumada com gengibre picante, conversas boas, fluidas, francas, comportamentos nobres, conversas onde as ideias cintilam, e, também, de estar deitada ao sol, ler, apanhar folhas secas na relva ao fim da tarde, sentir-me satisfeita por aprender e ter vontade de descobrir, gostar de estar com os outros, gostar que os outros gostem de estar comigo, sentir que a confiança é sagrada, mais sagrada do que mil rezas, deslumbrar-me com a cor escandalosa das flores, ficar em suspenso para melhor perceber o invisível canto dos pássaros, esperar a chegada de momentos ainda melhores. Coisas assim. Talvez simples, talvez, por vezes, inalcançáveis.


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Pinturas de Yoshihito Kawase a acompanhar Ghostly Kisses em Where Do Lovers Go?

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Paz e amor. E saúde também, claro.

terça-feira, junho 02, 2020

A tessitura e o açauí







Para não ser preciso ir despejar o lixo ao contentor da estrada, separamos os plásticos para um lado, o vidro para outro, o cartão para outro e, quando saímos para ir ao supermercado ou para ir ver  a família, levamos para a reciclagem, para os contentores grandes que estão perto da estrada nacional. Os restos, os orgânicos, vou despejar lá em baixo, sob a caruma. Os animais comem-nos e, o que sobra, vai sendo revolvido na terra. Acho que fertiliza o solo, que aproxima os animais, e escusamos de andar a pôr restos que se degradam no contentor da estrada.

Mas, então, um destes dias ia eu à noite, às escuras, descalça, pé ante pé, com um pratinho na mão com cascas de batata ou de fruta, quiçá alguns ossinhos, e dou com um pirilampo a voar à minha frente, a alumiar-me o caminho. Nestas alturas, arrepio-me. Não sei se é emoção pura, se é o inesperado do dito hecho estético de que Borges falou:
La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético." 
Eu ali, a noite com aqueles seus sons que cruzam o silêncio, a lua a crescer no céu, os meus pés nus e cautelosos sobre a caruma e, à minha frente, ziguezagueando, um pirilampo. Emocionada, pensei: olha, o açauí veio ter comigo. E ia andando e dizendo em voz muito baixa, quase sussurrando: 'Açauí, açauí...', como se querendo falar com ele. Açauí, açauí...

E, desde aí, quando escurece, eu olho em volta e penso: 'Será que o meu amigo açauí vem visitar-me?'. E, sem que ninguém me ouça, eu murmuro Açauí.... açauí...

Ao mesmo tempo ocorre-me, de vez em quando: 'quem será que aqui veio dar-me a conhecer este outro nome do pirilampo?'. E ponho-me a pensar se será este, se aquele, se aquela, tentando perceber como será a pessoa que tão generosamente me ofereceu um nome para eu dar à irreal aparição que é um pequeno açauí voando na noite, um pontinho de luz em que dificilmente se acredita.

Hoje cheguei aqui e resolvi rever o comentário para ver se havia alguma pista que me deixasse antever quem seria. Li, reli e não queria acreditar. Afinal não é açauí coisa nenhuma, é arincu. Reli. Arincu? Se o que ali está escrito é arincu, como é que eu registei açauí...?

Fui agora verificar o significado de açauí e, para ainda maior espanto, é palavra inexistente. E, no entanto, o pirilampo lindo que cruza a noite para deixar que eu o acompanhe parece que fica melhor vestido de açauí do que arincu. Não sei se alguém pode registar o nome ou se fica só meu. É um arincu mágico que muda de nome quando chega perto de mim, transforma-se em açauí.

Enfim. Não liguem. Coisas minhas.

É como tessitura. Li e pensei na La Dame à la licorne. Fiquei a pensar no que tinha lido e a pensar que a palavra certa ali era mesmo aquela, palavra que descreve bem tudo o que envolve coisas como  à mon seul désir (que eu, volta e meia, confundo com à mon seul plaisir). Tive vontade de ir buscar A Dama e o Unicórnio para reler alguns poemas, para ver as tapeçarias, para perceber bem as declinações de desejar e ser desejado: a primeira, a segunda e a quinquagésima derivada. 

Tessitura. Ponto a ponto, passo a passo, o fio que se entrelaça, que desliza e prende e volteia e se cruza com outro fio, de uma outra cor, o ponto e outro ponto, a tessitura perfeita, o desenho a anunciar-se, a insinuar-se. 

A Dama seduz
Ou o Unicórnio entrega-se?

No jogo da sedução
Quem usa a taça e a seta?

Eu capricho na conquista
no fogo da sedução

Sou Dama da minha vida
deixo nela a minha pista

Senhora de meu desejo
de meu prazer e paixão

Agora, estando eu nisto, assaltou-me a dúvida: tessitura? ou tecedura? Reli. Tessitura. Fui conferir. Pois, li uma coisa, tresli e pensei noutra. E, no entanto, agora parece-me que são sinónimos. Ou uma outra forma de dizer a mesma coisa. 

Aliteração. Alitero o sentido das palavras, aconchego-as a mim, ao fogo da minha paixão, ao capricho da sedução, teço e entreteço e enlaço e deslizo o laço e em alvoroço escondo a taça e espero que o prazer das palavras de mim não faça sua escrava porque não nasci para serva mas para senhora da minha vontade e, mesmo quando me desnudo, nunca mostro o meu corpo nu mas a minha alma que apenas ilude uma nudez que nunca é real. E agora que o escrevo penso que talvez aliteração também não seja a palavra certa mas isso agora também não interessa para nada até porque é capaz de não haver palavra para isto de nascerem asas no corpo das palavras. Portanto, adiante.





E um dia bom para si que aí está desse lado

terça-feira, março 10, 2020

Vem deixar-me uma rosa amarela





Deixa-me uma rosa amarela. Vem em sonhos ou pela penumbra, visita-me em palavras ou em segredo. Levanta-me dos mares, arranca-me das águas onde mergulho o meu corpo ardente. Desliza pela montanha como um leopardo azul, desce em silêncio o labirinto que se esconde nos confins da floresta e vem deixar-me uma rosa amarela. 
Ouviste que ali sitiaram um país? Aquele país das ruas cheias de gente, onde todos conversam e riem alto, está sitiado. Sabias? Até aquela cidade cor de ocre cujas ruas descem até ao cais está sitiada. Está calada e com medo de ser devorada por um vírus. Não consigo acreditar e não sei como poderão viver assim, recatados, os que transbordam de vida. Não quero pensar que poderemos vir a estar também assim. Não quero pensar no inesperado e inexplicável de tudo isto. Por isso não vou falar nisto. Não me fales também.
Fala-me antes em escarpas cobertas de pequenas flores brancas e lilases e prateadas, escarpas que escorrem até ao mar. Ou fala-me de muros brancos recortados contra o sol. Ou de muralhas antigas ou de estátuas abstractas ou, simplesmente, de rochas douradas pelo tempo. Ou, se preferires, fala-me de figueiras com sombras frescas em terras quentes, carregadas de figos carnudos e gulosos. Ou de buganvílias escandalosas emaranhadas em cor e perfume. Mas também podes falar-me de livros que se arrumam e desarrumam e das histórias que se escondem neles. Fala-me de palavras que nunca ouvi e que me trazem bocados de mundos que sabes que desconheço. Fala-me daquelas grandes aves que abrem as longas asas e traçam bailados insensatos nos céus. Fala-me de outras vidas. Das tuas. Fala-me de outros mundos. Dos teus. Fala-me de segredos. Dos teus. Não ouvirei nada. Farei de conta. Como se não soubesse nada. Fala-me do que não podes falar. Manter-me-ei no desconhecimento. 

Tenho uma mesa pequena só para mim. Está ali num recanto junto à janela. Acenderei uma vela. Serei iluminada pela sua luz trémula. E terei um copo alto e estreito. E nele porei a tua rosa amarela. 


Vou dormir e vou sonhar. Se vieres de noite, não te esqueças, arranca-me do mar e deixa-me ouvir a tua respiração quente e nervosa de leopardo azul. Traz contigo o cheiro da erva molhada e das brumas nocturnas da floresta. Traz palavras envoltas em silêncio. E deixa-me uma rosa amarela. 

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Escuta. Agora vou copiar um poema para te deixar junto à janela. Usa-o como um fio de Ariadne. Percorre cada palavra como um passo no caminho para o teu labirinto.

Nunca haverá uma porta. Estás cá dentro
E a fortaleza abarca o universo
E não possui anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que obstinado se bifurca noutro,
E obstinado se bifurca noutro,
Tenha fim. É de ferro o teu destino
Como o juíz. Não esperes a investida
Do touro que é um homem, cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe evasão. Nada te espera.
Nem no negro crepúsculo a fera.

Vai mas depois volta. Volta todos os dias, pela madrugada, naquela hora em que as gaivotas voam por aqui, gritando como loucas. Desce da montanha, silencioso como um leopardo azul, e vem deixar-me uma rosa amarela.

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Fotografias de Lucien Clergue ao som de Get here na voz de Oleta Adams.

O Labirinto e Las Causas são obviamente de Jorge Luis Borges que também escreveu um pequeno conto a que deu o nome de 'Uma rosa amarela'

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sexta-feira, setembro 28, 2018

Os tigres dele




Na minha vida sempre houve tigres. Tão entrelaçada está a leitura com os outros hábitos dos meus dias que não sei verdadeiramente se o meu primeiro tigre foi o de uma gravura ou esse, já morto, cujo obstinado ir e vir pela jaula eu seguia, enfeitiçado, do outro lado das barras de ferro. Ao meu pai agradavam as enciclopédias; eu apreciava-as, tenho a certeza, pelas imagens de tigres que me ofereciam. Recordo agora os de Montaner e Simón (um branco tigre-da-sibéria e um tigre-de-bengala) e outro cuidadosamente desenhado, que saltava e no qual havia algo de rio. A esses tigres visuais acrescentaram-se os tigres feitos de palavras; a famosa fogueira de Blake ("tyger, tyger, burning bright") e a definição de Chesterton: "É um emblema de terrível elegância". 


Nenhuma outra cidade, que eu saiba, confina com um secreto arquipélago de verdes ilhas que se afastam e perdem nas duvidosas águas de um rio tão lento que a literatura pôde chamar-lhe imóvel. Numa delas, que nunca vi, matou-se Leopoldo Lugones, que terá sentido, talvez pela primeira vez na vida, que estava livre, enfim, do misterioso dever de procurar metáforas, adjectivos e verbos para todas as coisas do mundo.






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Na companhia de  Pedro Abrunhosa a interpretar Quem me leva os meus fantasmas, excertos de 'O meu último tigre' e 'As ilhas do Tigre'  in Atlas de Jorge Luis Borges numa tradução de Fernando Pinto do Amaral

No final Tom O'Bedlam diz "The Tyger" de William Blake. Obtive as fotografias de tigres no The Guardian.

sábado, setembro 15, 2018

António Lobo Antunes, a Pléiade e, finalmente, um Nobel*


Tal como os antigos comentadores biblícos, Borges e Scholem debateram a questão fundamental: 
A que sucesso pode aspirar um artista? 
Como pode um escritor alcançar o seu propósito, quando tudo o que tem à disposição é a ferramenta imperfeita da linguagem? 
E, acima de tudo, o que é criado quando um artista parte para a criação? 
Será que surge um mundo novo e proibido, ou será que um espelho negro deste mundo é erguido para nos vermos reflectidos nele? 
Será uma obra de arte uma realidade duradoura ou uma mentira imperfeita?

in "Embalando a minha biblioteca", Alberto Manguel

[O excerto acima vem mais ou menos a despropósito da mais recente parvoíce de António Lobos Antunes: 
Para Lobo Antunes esta publicação numa coleção tão especial, desde a encadernação ao papel bíblia, tem um valor comparável ao prémio da Academia Sueca: "Estar na Pléiade é como receber um Nobel." Acrescenta: "É uma biblioteca onde se encontram vários Nobel da Literatura."
António Lobo Antunes garante que este era o seu sonho de adolescente "porque é o maior reconhecimento que algum escritor pode ter". ]

* Um Nobel à medida dele, claro. Só me pergunto: teria ele necessidade de dizer estas parvoíces? Ficar contente e orgulhoso é normal -- mas não consegue sentir o reconhecimento sem se sair com a parvoíce do Nobel? Que raio de ego ele tem, senhores.

domingo, julho 08, 2018

A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas




Almocei um peixe a saber a mar na beira-praia. Antes tinha ligado à minha mãe, que se arranjasse, que passaríamos lá a apanhá-la. 
Não, não, o teu pai. Não. Já sabes que não. Não quero. Já sabes. Não.
       -
Sempre isso. O pai nem dá por nada. É como ir às compras. Vá.
Não é, não é a mesma coisa. Não. Não gosto de sair e deixá-lo aqui. Já sabes.
       - Ora, deixe-se disso e vá-se arranjar. Não demoramos. Vá.
Mas tenho que avisar a Z., tenho que lhe pedir que fique cá. 
       - Sim, claro, ligue-lhe.
Mas agora ela foi tratar de uma senhora longe daqui e nunca leva o telemóvel. 
       - Vá, então ligue daqui a nada para o fixo de casa dela 
Pouco tempo depois, apanhámo-la. Tudo combinado com a Z. Com a blusa nova em tricot, de meia manga, muito elegante, acabada de fazer por ela a partir de fios de linha que há muito tempo uma tia do meu marido lhe tinha mandado, um em cor de pérola e outro em cor de mel claro. Estava como sempre, toda jovem e solar, sorridente e conversadora.


Gostou do restaurante, relembrou o lugar que tão bem conheceu quando não era nada disto. Agora tudo está mais bonito. Aliás, é geral: as cidades estão todas mais bonitas.

A comida boa mas o serviço demorado. Portanto, almoço longo. A ver o mar, os barquinhos, as pessoas na praia. Bom. Sem pressas.

Regressou contente e eu feliz por vê-la feliz. 

Depois, já só nós dois. Aqui chegados, estava aquele verão que aqui é tão intenso e bom. Biquini, espreguiçadeira, o perfume da figueira, os pássaros.


Mas, antes de preguiçar, caminhei, contemplei as flores, observei as diferenças desde a semana passada, a caruma que cresceu nos caminhos, os orégãos mais floridos, os figos a deitar corpo.

Quis registar-me imersa em verde. Fotografei-me. Um dia ainda me rendo à moda das selfies, provavelmente quando as selfies tiverem passado de moda. Não sei porquê, a mini-mini maquininha disparou o flash. Sabe que não quero mostrar-me e mostrou ser mais inteligente do que eu supunha.


Depois, deitei-me entre a sombra da figueira e a do telheiro. Pensava que ia dormir mas não. Olhei as telhas. Estão aqui há mais de vinte anos. Vão mudando de cor. Cada vez estão mais bonitas. Com o tempo estão tão verdes como o verde que aqui nos rodeia.

A estrela de vidro que tem lá dentro uma vela mantem-se amarelinha e eu gosto de vê-la suspensa das traves de madeira.


Uma paz tão boa, tão doce e luminosa.

Não sei porquê, resolvi fazer um exercício. De olhos fechados, pensei: agora a perna -- e senti a perna --, agora a outra -- e senti a outra --, devagar, agora o braço. Pensei: isto, se calhar, é meditação. E é bom.

Tranquila de corpo e alma, pus-me a ler.

Depois veio o meu marido e armou-se em cigano, daqueles que não conseguem ver sem mexer. E então, para nosso espanto, ouvimos um pipilar furibundo. Uma valente desanda, alto e bom som, com irritação e veemência. O meu marido tirou a maozinha e deitou o olhar ao alto, tentando descobrir o pássaro puritano. Eu também, intrigada. Mas só depois o vi a bater as asas apressadamente, enquanto levantava voo. Disse-lhe: Como vês, até irritaste o pássaro. Não ligou, riu-se. Não aprende a portar-se bem nem por mais uma.

Continuei a ler.


A prosa boa que conheci do blog que a autora em má hora tirou do ar. E eu, under a fig tree, os passarinhos, os verdes all around, tudo tão bom, chego ao apontamento 83 onde, a terminar, leio assim:
A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas.
Parei. Gostei. Uma coisa que não lembraria a ninguém mas que me soou bem. Imaginei. Lá em baixo, na minha horta, um tigre, com o seu passo subtil e vagaroso, a avançar, lento, inteligente, perigoso.  Haveria de ser azul.

Gostei mesmo da ideia. De olhos fechados, para mim, repeti a frase. A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as hortas. Muito bom.


Numa horta ninguém espera que apareça um tigre. Se eu soubesse que, aqui in heaven, existia um tigre, eu haveria de andar, a respiração suspensa, arrepiada de curiosidade e medo, evitando a gruta e os locais mais sombrios do bosque, aqueles em que ele, traiçoeiro, haveria de se pôr escondido.


E, por isso, que susto sentiria quando inocentemente fosse à horta e... do nada... sentisse um olhar felino ameaçadoramente pousado sobre a minha pele, um olhar cor de mel num corpo sedoso e azul.

Resolvi transcrever aqui a frase.

Só que agora, ao transcrever, reparei que não era bem aquilo. A frase, afinal, é assim:
A tarde cresce com o seu passo de tigre sobre as horas. 
Reli, espantada. Horas? Afinal não é hortas? Bolas. Não pode ser. Logo agora que começava a habituar-me à ideia de que andava um tigre na minha horta.


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E, já agora, por falar em tigres azuis: Jorge Luis Borges


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As fotografias foram feitas este sábado.

Lá em cima Cohen canta Take this Waltz por sugestão contida no apontamento 119 do livro Dano e Virtude de Ivone Mendes da Silva

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