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quarta-feira, agosto 24, 2016

Crónica de um dia a precisar de férias
[E, para não dizerem que vêm aqui para nada, deixo-vos o caminho para um teste-revelação:
Responda a 21 perguntas e descubra se é brilhante, mediano ou tótó de todo]




Chego de novo ao computador por volta da meia noite. Mais uma festa de aniversário. Se não estou em erro, entramos agora numa época de pousio. Claro que comi uma fatia de bolo de anos. Mais umas calorias mas, enfim, foi de gosto, não podia deixar de ser. 

Mas chego a esta altura do ano e parece que a partir de certa hora já preciso de descanso. Os miúdos quando se juntam são uma inesgotável fonte de energia ruidosa. E estavam outros. E um quase a nascer dentro de uma barriga enorme. As meninas brincam sossegadinhas mas os rapazes... minha mãezinha... Jogam à bola no hall, zangam-se, fazem barulho. Depois, junta-se-lhes o tio e a coisa ainda se complica mais. Claro que a bola é mole mas o ambiente é o de um estádio de futsal. Despique, faltas e por pouco não há também agressões. 

Quando chego a casa, venho ansiosa por tirar os saltos altos, o colar, os brincos, por escovar e apanhar o cabelo, por me refrescar, e, claro, por me estender no sofá de frente para a aragem que sopra do aparelho mágico ali de cima. Durante mil anos lutei, não queria cá camafeus na parede, não queria ares condicionados dentro de casa. Até que me rendi e, para supremo gáudio do meu marido, já não passo sem ele (neste caso, a ele, ar condicionado).

Na televisão, enquanto escrevo, um filme francês na 2. Não estou a prestar atenção mas gosto de ouvir. Gosto muito de ouvir e de falar francês. De resto, gosto muito de França. A Paris já fui no verão. Qu me lembre já fui duas vezes em pleno verão. Não gostei, nem parecia Paris. Gosto em qualquer estação menos no verão. O passeio que mais gostei de fazer em França foi à Normandia, às praias do desembarque. Foi no ano em que a minha filha se casou. Por isso, ela não foi.
Nesse ano também houve muitos incêndios em Portugal. Na televisão, lá, víamos o nosso país em chamas. Uma coisa dolorosa. 
O meu filho e o meu marido sabiam tudo sobre todos os locais que visitávamos e, nas praias, sabiam onde havia bunkers mesmo que nem se vissem. E depois descobriamo-los, estavam mesmo onde eles diziam. E comemos ostras, frescas, sobre gelo, uma tentação, e bebíamos cidra. O Pipoco, ao que parece, agora anda por lá. Quando por lá andámos, pelas praias, pelas vilas, por aqueles lugares tão bonitos, pensei que gostava de lá voltar. Gostava de passar uns dias em Saint-Malo pois só lá ficámos dois dias, mas gostava de lá estar em dias de invernia, com o mar estiver revolto. E eu à janela do quarto do hotel a ver a força das ondas.

E gostava de voltar a jantar tripas à moda de Caen numa esplanada ao pé de uma igreja de madeira, em Honfleur, entre canteiros de flores.

... e é isto.

Já viram uma conversa destas a esta hora...?


O que se passa, como está à vista, é que estou a precisar de férias. Já meio mundo regressou de férias, tudo no bronze, e eu branquinha de neige, já sem paciência para nada. E toda a gente fresca, tudo a vir falar comigo, conversas longas, coisas de trabalho mas intermináveis, e sai um, entra outro, e eu a ver o tempo a passar e a ter contratos para ver para serem enviados, autorizações para dar para que trabalhos prossigam ou pagamentos sejam feitos, documentos para ler antes de reuniões para as quais não posso ir em branco. E eu a ver o relógio a avançar. E, então, penso que devia colocar uma coisa de senhas à porta do gabinete e um cronómetro. Mas não. Porta aberta, sempre. Até hoje nunca ninguém deixou de entrar nem nunca deixou de dizer o que quis. Mas o tempo que isto me consome, senhores... E eu a precisar tanto de férias.


Todos os dias eu e o meu marido falamos que temos que resolver o que vamos fazer nas férias mas o tempo passa e ainda não sabemos. De manhã, quando vou a caminho, penso que, se tivesse uns minutos de sossego, tentaria pensar no assunto. Claro que agora, em vez de estar aqui, poderia estar a fazer algumas pesquisas mas também não me apetece.

Na verdade, apetece-me estar no campo, a varrer as folhas secas e a ler livros à sombra da figueira, ou a ir a praias com pouca gente ou a dar passeios por onde calhar.

Há lugares onde me apeteceria ir mas que requerem planeamento. Ontem, uma simpática contou-me de um cruzeiro maravilhoso que fez e eu, ouvindo-a, pareceu-me bem. Mas parece que os barcos partem de Barcelona e não acredito que seja chegar ao cais, entrar e lá dentro pagar um bilhete. 

Ou seja, vou mas é jogar no euromilhões a ver se me sai para eu contratar um assistente para me tratar desses aspectos administrativos e logísticos, para fazer prospecções e etc.

Resumindo: uma vez mais estou para aqui a escrever sem dizer nada.

O meu marido, mais esperto que eu, já dorme a sono solto. Mas também levanta-se com as galinhas enquanto eu me levanto a horas normais. É a diferença entre um diurno e um noctívago.

Bem.

Para não me virem ainda pedir de volta o dinheiro do bilhete já que voltou a não haver motivo de interesse por estas bandas, deixo-vos o link para um teste engraçado. Cliquem aqui abaixo e, depois de lá estarem, no Let's Play.



E fiquem Vossas Senhorias a saber que ou o teste é marado ou quem por aí ache que eu não tenho os cinco alqueires bem medidos está muito enganado. Pois acreditem ou não, o que a mim me deu foi:
Based on your answers, we found that you're absolutely BRILLIANT! (...) You're good at working with numbers and are adept at putting your skills to use while solving problems in all sorts of real world situations. You don’t waste a lot of emotional energy fretting about the future. Instead, you focus on getting the most out of life right now. 
Portanto, não sei, se calhar isto dá sempre a mesma resposta e qualquer maluco que dê para aqui umas respostas ao calhas recebe sempre a resposta de que é brilhante.

Mas tentem a ver o que vos dá a vocês. Se calhar é tudo de genial para cima. E é verdade. De uma maneira ou de outra, somos todos brilhantes e geniais. Malucos são os outros.


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É muito mau; devia aqui pôr o nome dos autores das esculturas que são das mais espantosas do mundo; mas é tardíssimo, já não vai dar. Se tiver tempo, amanhã logo ponho. Ou então, podem vê-las no Bored Panda.

Para me acompanhar enquanto escrevia, escolhi a Ella Fitzgerald & Louis Armstrong e, para aqui partilhar convosco, Dream A Little Dream Of Me.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira.

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domingo, fevereiro 28, 2016

Arte no museu
[Post 1 de 3]


Visita às exposições do Centro de Ate Moderna da Gulbenkian, lugar a que sempre volto. O tempo passa mas passa em mim, não neste lugar de intemporalidade. É um espaço de luz e cor, de descoberta, por vezes de subversão, por vezes de ternura, onde apetece estar sempre. As crianças adoram os filmes incompreensíveis, gostam de ficar a ouvir o que não percebem. Sentam-se e ficam de gosto. Por mais estranho que seja o que vêem, não estranham. Assim vão aprendendo a habituar-se à diversidade do mundo. Se chove lá fora, cá dentro o espaço fica ainda mais bonito. Os verdes que entram pela janela trazem luz e vontade de ficar a olhar as figuras, os desenhos, as cores. E de voltar. Sempre.
















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sexta-feira, fevereiro 06, 2015

O que vai acontecer a Portugal nos próximos anos? - Leia o que dizem as cartas de tarot à mística poderosa UJM.


Este é o meu terceiro post da noite. Ou o quarto, mais propriamente. Há para todos os gostos, desde um pitéu para cinéfilos até um incentivo aos gatos que ainda não sabem se podem dar cabo dos jacarés. Lá mais para o fundo faço referência a uma entrevista, que vi na RTP2, a um médico que as disse das boas.

Mas isso é a seguir. Aqui a coisa é muito diferente: eu, na versão mística poderosa como me chamou a leitora Ana, indico o caminho para o país. À falta de melhor já me dá para isto.






Ou seja, para terminar a noite em beleza, deitei as cartas do tarot perguntando: o que se pode esperar para Portugal nos próximos anos? Vamos continuar no charco, com os bolsos cheios de pedras, comandados por um láparo qualquer desta vida? Ou vamos tirar o pé da lama e respirar o ar fresco da esperança?


Há bocado já deitei as cartas a uma pessoa que leu o que eu escrevi e me pediu que eu a esclarecesse sobre uma coisa da sua vida. Ainda monto uma banca para adivinhar a sorte a quem passa.

Mas, então, interiorizando bem a questão acima referida, formulei-a enquanto baralhava as cartas, cortava o baralho, escolhia as cartas. 

Pois bem, eis o que obtive:

A resposta

A maturidade da alma obtém-se somente quando a experiência da vida tem raízes profundas suficientemente fortes para a suportarem. São as raízes que lhe permitem percorrer o caminho do destino com uma cumplicidade confiante, ocupando com firmeza e determinação o lugar que é seu por direito próprio. A estabilidade ajuda-o a cultivar os seus interesses mais aprofundadamente.

Atinge um lugar de concretização através da discrição, prudência e reflexão, o que lhe permite desfrutar da satisfação e de um sentido de expansão depois de tantos esforços em que se empenhou durante tanto tempo. Este é um período de afluência ou um tempo para se dedicar a passatempos.

Tem-se esforçado ao máximo quando já podia ter parado. Contornou a montanha há já algum tempo: páre e deixe de olhar para baixo. Desfrute da vista e regozije-se.


Parece que sim, que se avizinham tempos de afluência e regozijo mas que é melhor atravessá-los em clima de estabilidade. E que já se faz é tarde.


O que está a perturbar

A coragem e destreza são as suas imagens de marca. Está acostumado a não passar despercebido e a ser sempre o primeiro a entrar na refrega. Mas não se prejudique ou aos outros. Algo precisa de ser resgatado ou existe uma ideia ou um plano que precisam de ser apoiados.

As suas ideias fugiram consigo e estão a arrastá-lo atrás delas. Em alternativa, poderá investir em frente, a despeito dos conselhos em contrário. Na situação de vítima de uma injustiça, é possível que opte por bater em retirada, ao invés de procurar reparações.


Presumo que se refira ao láparo que nos está a arrastar para o fundo e às tantas ainda se vai é demitir


O que poderá ajudar

O seu apelo emocional abre todas as portas, tornando-o atractivo. Os ideais e as visões florescem. A generosidade, a par de uma gentileza persistente, ajudam amigos e amantes a tornarem-se mais receptivos ou íntimos. As propostas e os convites surgem-lhe de todos os lados.


Parece que quem nos vai ajudar a sair deste poço negro em que estamos enfiados é alguém com muito charme, que atrai gente que se farta. Quem será?

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As fotografias são da fotógrafa ucraniana a viver nos EUA Anita Anti. A música é Ella Fitzgerald & Louis Armstrong interpretando Dream A Little Dream Of Me 



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Relembro que, por aí abaixo, encontrarão os outros 3 posts de hoje, uma coisa de tipo cada cor, seu paladar.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta-feira.


sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Os meus últimos livros


Abaixo deste (e de hoje) há mais três posts: logo aqui abaixo tenho as palavras de três pessoas inteligentes que se pronunciam sobre mais um embuste e que, uma vez mais, tem gravosos custos para os portugueses. Viriato Soromenho Marques, Nuno Teles e Pedro Lains falam sobre a recompra de dívida e sobre a verdadeira almofada de pedra que é a chamada almofada financeira de que o governo fala e os papagaios da comunicação social repetem.

A seguir há palavras a fazerem o pino e, por último, há o vídeo com Paulo Morais a chamar os bois pelos nomes na Assembleia da República.

A coisa hoje já vai, pois, longa, longa, longa. Mas ando há uns dias a dizer que vou falar de livros e já pareço o Passos Coelho e o Paulo Portas que prometem e que, acto contínuo, se marimbam para o que prometeram.

Por isso, e apesar de estar aflita da garganta e a sentir-me engripada, aqui vos mostro as minhas últimas aquisições que me estão a deixar cheia de água na boca.


Bewitched, Bothered & Bewildered

para nos acompanhar na visita




Ella Fitzgerald ft Buddy Bregman Orchestra


*


James Wood - A herança perdida


José Sereto - Versos


Orfeu Canta - Pequena antologia de poesia portuguesa sobre música organizada por José da Cruz Santos





Abro aqui um parêntesis (e fica prometido que ao Dr. Sereto voltarei, não apenas para falar dele como para mostrar alguns dos seus poemas, alguns divertidíssimos) só para deixar um pequeníssimo excerto do suculento prefácio de José Cutileiro:


José Sereto é o da esquerda
e, quando a ele voltar,
mostrarei mais três fotografias
que formam uma divertida sequência com esta
Três ou quatro anos depois, outra noite de Verão no café com o Dr. Sereto, os dois primos Cascos e um agente de seguros que tinha um Taunus, acabou, já tarde, por sugestão de um dos primos, não me lembro qual, em ida a um bordel a évora. 

O Dr. Sereto sentou-se à frente, ao lado do condutor; eu atrás, entalado entre os dois primos, ambos de botas de cano e camisas de manga curta. 

Íamos calados e um cheiro a cabedal e a cerveja foi enchendo o calor do Taunus. 

Passada a Vendinha, o Dr. Sereto voltou-se para trás e anunciou, sardónico: 'Eu sou danado para estas coisas. Já vou de pau feito!'. 

Em Évora, na Rua das amas do Cardeal, enquanto eu e os outros três escolhemos pequenas e desaparecemos para os quartos, ficou na sala a cavaquear com a patroa.

*

Dados biográficos do Dr. Sereto que transcrevo da contracapa: livre-pensador, anticlerical, oposicionista, democrata, amante dos prazeres da vida, regueguense dos quatro costados e primeiro Presidente da Câmara Municipal após o 25 de Abril. 

Da dita introdução a cargo de José Cutileiro retiro também que o Dr. Sereto viveu enntre 1913 e 1983, foi bacharel formado em Direito, secretário do Tribunal e, depois, então, Presidente da Câmara de Reguengos de Monsaraz, vila - depois cidade - onde nasceu, viveu e morreu.


*


A Misericórdia dos Mercados - Luís Filipe Castro Mendes

Veneza pode esperar - Rita Ferro (comprei-o para o oferecer à minha mãe e posso aqui dizer isto porque ela não vê internet; sorte a minha...)

A História não acabou - Claudio Magris (tomara que já não o tenha)

Cidade Proibida - Eduardo Pitta (livro que, só de pensar nele, deve deixar a Ana Cristina Leonardo cheia de brotoeja)

Campo de Sangue - Dulce Maria Cardoso



Já andei a espreitar um e outro como quem tasquinha, pitéus tentadores, companhias que chamam por mim.

Mas o tempo, senhores, o tempo...

Claro que os de poesia são logo uma atracção. Sou atraída pela poesia como por belas e elegantes equações. A zona do cérebro que é activada pela poesia é a mesma que é activada pelo amor pela matemática. A ciência comprovou aquilo que eu, desde sempre, sinto. 



Nós vivemos da misericórdia dos mercados
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.


O livro abre com a citação:

                                                     Poetry is a criticism of life
                                                                     Matthew Arnold


e é um belo, belo livro, com belas, belas poesias. A elas voltarei.


*

Se os estupores que nos desgovernam não estivessem sempre a fazer porcaria, eu tinha mais disponibilidade para falar de livros pois é dos assuntos de que mais gosto de falar. Mas então, fazer o quê?, se aqueles estúpidos parece que fazem de propósito, todos os dias me provocam.


**

E agora já passa das duas da manhã e eu estou cheia de dores de garganta e agora também com tosse. Isto está bonito, está. Como vou poder ir festejar o Carnaval? Estava a pensar vestir-me de baiana, descascada como uma banana, e sambar na rua, coisa tão tipicamente portuguesa, e agora, assim, como vou poder fazê-lo? Só se me mascarar de matrafona.

Vou deitar-me e pensar no assunto. 

  • Relembro: Por aí abaixo há muita coisa interessante de se ler e ouvir. (Posso gabar à vontade porque são, na maioria, palavras de outros).

*

E, entretanto, desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo POETS day (já aqui o referi a semana passada mas volto à carga: Piss Off Early, Tomorrow's Saturday).


sábado, setembro 28, 2013

Uma mulher cuja vida dava muitos livros, muitos filmes, onde sexo e pornografia política se misturariam - numa autarquia perto de si.


Tenho que ter cuidado com o que escrevo. Estou aqui na minha sala, praticamente às escuras, e ponho-me a escrever como se estivesse a divagar sozinha ou como se estivesse a confidenciar apenas junto de si, meu caro/a Leitor(a) que me está a ler. E, depois, por vezes, esqueço-me que não sei quem me está a ler.

Claro que tenho cuidados: se falo de pessoas reais, não apenas não divulgo o nome, como tento não dar pormenores que permitam identificá-las.

E, no entanto, como a escrever sou como a falar, pão, pão, queijo, queijo, nada na manga, nada de dissimulações, acontece que, apesar dos cuidados, sou tão realista que depois me vejo confrontada com situações imprevistas.

Uma vez escrevi sobre um ex-político, ex-ministro, e, embora tivesse tido o cuidado de não o referir explicitamente, não fui especialmente abonatória nas palavras. Pois bem, uns dias depois recebi um mail dele que me deixou sem palavras. Dizia-me ele que já muita gente o tinha tratado mal, que se tinha habituado a tudo, mas que, de tudo a que já se tinha visto sujeito, nunca se tinha sentido tão magoado quanto com as minhas palavras naquele dia. Era um mail longo e muito sentido. Nesse dia senti-me muito mal. Fui ao dito texto e alterei algumas palavras. O texto ficou lá, o sentido ficou íntegro, mas limei arestas, eliminei as expressões mais cortantes. E escrevi-lhe a explicar a razão da minha desconfiança em relação a ele, a razão do desconforto que me tinha levado a escrever aquilo, razões que, a serem verdadeiras, seriam motivo mais do que suficientes para eu pensar aquilo que tinha escrito, mas, de qualquer modo, a pedir desculpa se estava a ser injusta, acrescentando que apenas ele saberia se eu estava ou não a ser injusta.

Mas aquele mail de uma pessoa que se reconheceu nas minhas palavras e se sentiu magoada no mais profundo da sua alma, o tom amargurado das suas palavras, ficou e ficará para sempre a corroer a minha consciência: estaria eu a ser injusta? estarei ainda, ao não escrever uma coisa de sentido contrário ao que escrevi naquele dia? Não sei.

Outra vez contei aqui um conjunto de peripécias sobre uma pessoa com quem trabalhei, que tive a oportunidade e o privilégio de conhecer de perto, de quem fui muito amiga. Claro que tentei não ser explícita. Pois bem, no dia seguinte tinha um mail de uma Leitora a perguntar-me se não era fulano de tal, que o tinha conhecido muito bem e que tudo o que eu tinha dito batia certo. Confirmei, claro. Mas fiquei a pensar que tenho mesmo que ter cuidado.

Isto já para não falar da minha filha que volta e meia me liga a dizer 'ó mãe, então ontem estiveste a falar de fulana de tal...?' e quando eu pergunto se dava para se perceber, ela responde, irónica: 'nããããoooo...' como quem diz que estava claro como água.

Por isso, a partir de agora, vou tentar falar de um caso verídico mas cuja identidade não quero divulgar - até porque não é certamente caso único. Figura aqui a título de exemplo. Entendam como uma abstração, uma personagem ficcionada.

*
 Blue Moon (interpretada por Ella Fitzgerald)




Vem isto a propósito do filme que vi esta noite. Blue Jasmine. Quem viu o filme perceberá a razão da escolha da música Blue Moon, que agora talvez estejam a ouvir. Um belo filme, uma extraordinária interpretação de uma actriz que considero das melhores, das mais versáteis da actualidade, Cate Blanchett. Podia também referir a roupa dela, tão elegante, tão Chanel, mas isso seria fútil face à textura do filme cujas várias camadas o tornam tão interessante. Recomendo-o: é mais um belo filme de Woody Allen - o humor e a ironia no meio da tragédia pessoal, as situações desconcertantes mas tão realistas, a fragilidade e as contradições do ser humano.





A propósito de Jasmine - a mulher que constrói a sua vida em cima de expectativas, de ilusões, que constrói uma personagem para si própria, mas tudo tão frágil, tudo tão inconsistente - me lembrei de uma mulher com quem convivi durante muitos anos, talvez uns uns vinte anos. 

Gostaria de vos contar a vida desta mulher, tão cheia de peripécias, de dramas, de rábulas, de loucuras, de fantasias. É uma longa história que eu facilmente repartiria em fascículos, cada um mais inverosímil que o anterior. Mas não posso contar como gostaria pois alguém poderia reconhecê-la ao ler estas minhas palavras e longe de mim arranjar-lhe problemas. A vida é complexa demais para que alguém se arrogue o direito de julgar os outros só a partir de um punhado de palavras. Que ninguém use as minhas palavras como pedras.


Dir-vos-ei apenas que, quando a conheci, era uma jovem desinibida, muito vistosa. Vestia-se de uma forma provocante, vestidos muito justos, muito decotados, muito curtos.

Dava nas vistas, mas mesmo muito. Era viciada em toilettes e, embora estivesse com ela quase todos os dias, tenho a ideia de que não a vi repetir uma.


Acho que o ordenado deveria ser gasto integralmente em roupa, sapatos, carteiras, colares, pulseiras.

A cor do cabelo variava entre o louro, o ruivo, o castanho, o negro. Usou-o também de vários tamanhos e chegou a pôr extensões para ficar com ele bastante comprido. 

Nos primeiros tempos, vendo-a assim, admitia que fosse uma jovem caçadora. Os homens rodeavam-na cobiçosos e ela não se fazia rogada.

Por isso, um dia, numa festa, o meu queixo caíu quando a vi com marido e filha. Mais surpreendida fiquei quando conheci o marido. Uns anos mais velho que ela, ar de homem bem instalado na vida, por pouco quase passava por pai dela. Mas ela andava de roda dela toda dengosa, como se estivesse apaixonada pelo marido. E tinham um grande carrão. Soube depois a profissão dele, que ganhava muito dinheiro. E via-se.




Aos poucos fui conhecendo melhor: ela queixava-se amargamente dos ciúmes dele, que lhe telefonava amiúde, sempre a controlá-la, sempre a fazer cenas de ciúmes. Contava-me isto e eu ouvia-a perplexa porque, se eu fosse marido dela, também ficaria apreensivo. A forma, toda ela, da cabeça aos pés, como se arranjava, era do mais provocante que se pode imaginar. E depois, aos poucos, fui sabendo dos numerosos casos que ela tinha. Uma coisa inenarrável. Conheci alguns homens que estiveram na iminência de se separar das mulheres na esperança que ela aceitasse viver com eles. Ela alimentava a esperança, deixava-os de cabeça perdida, mas mesmo de cabeça virada do avesso, e depois acabava por ir adiando, adiando, até eles desesperarem. Por vezes era por eles, doidos da vida, ressentidos, magoados, que se sabiam as histórias. De vez em quando, via-a de ponto em fino, muito mais do que o habitual, sapatos de agulha, altíssimos, mais ainda do que o habitual, toda ela perfumadíssima, maquilhada como se fosse atravessar a red carpet, um aparato. Nesses dias, dizia que ia fazer um exame médico, que tinha uma consulta, coisa assim. E eu via-a a entrar para um carrão aparatoso que não era um dos do marido: havia programa especial.

Ao longo de todos estes anos, ela conversava comigo, omitindo em absoluto esse seu lado, fazendo de conta que era uma virtuosa mulher de família, vítima da incompreensão do marido. Não falava como se mentisse. Falava como se aquela outra que tinha casos com dúzias de homens, mas apenas os de condição social elevada, fosse outra, não ela. Contava-me angustiada que achava que o marido a traía e chorava, furiosa com o marido, como se não o perdoasse se as suas dúvidas viessem algum dia a concretizar-se. Eu ouvia todas estas confidências perplexa.




E ia de férias com o marido para os melhores locais, o marido tinha muito dinheiro, e parecia um casal feliz, não fora ela queixar-se das desconfianças em relação ao marido e não foram os ciúmes, que ela dizia doentios, do marido.

Entretanto, nas muitas incursões da sua vida dupla que a levaram a ir até para Espanha para sofisticados locais de férias com um dos casos que teve (dizendo ao marido que ia em trabalho), fazia por vezes acompanhar-se por uma outra (outra que tal mas de cabecinha mais fraca) que tinha um caso com um amigo do outro. Dois casais. Soube-se depois que estes dois casais saíam amiúde, faziam programas em conjunto.

Mas um dia, por uma zanga entre elas por causa de um dos homens, a outra denunciou-a ao marido.

Lembro-me bem: nesses dias ela chorava, injustiçada, que a outra que ela tinha por tão grande amiga e a quem tanto tinha ajudado, por inveja, má fé, tinha inventado intrigas horríveis e que estava a pôr em causa o casamento. Quis fazer queixa da amiga, que não admitia injúrias, calúnias, que a outra estava a atentar contra o seu bom nome, e chorava, sentida, preocupada com o que se adivinhava que iria ser o desfecho daquela história




Durante os meses em que durou a separação até ao divórcio foi o bom e o bonito. Dizia que estava com uma depressão, supostamente terá mesmo cometido actos desesperados, dizia que a outra tinha destruído a vida dela, chorava, chorava, furiosa. Sabendo o que sabia, parecia-me que a preocupação maior deveria ser a de ir perder a boa vida que tinha, dado os elevados rendimentos do marido, mas, a verdade é que ela parecia sincera quando chorava, como se amasse mesmo o marido.

Por vezes aparecia sem se maquilhar, olhos inchados, abalada, infeliz, numa prostração que dava pena, parecia outra.

Divorciaram-se.

A partir daí os casos multiplicaram-se, como sempre tudo homens com dinheiro. Por mais do que uma vez me pareceu que aceitava de bom grado vultuosos presentes e soube, a posteriori, que aceitava que lhe emprestassem consideráveis quantias de dinheiro, supostamente para fazer face a despesas com a filha. Mas eu via-a, então como sempre, vestida de ponto em fino, carteiras e sapatos de marca, perfumes caros, e sabia-a frequentadora de grandes restaurantes, a ir a espectáculos, a ir passar fins de semana aqui e ali.


O tempo passou mas foi generoso com ela. Continuou provocante, toda ela sempre pronta para seduzir.

A filha fez-se adolescente e ela contava-me as crises com a filha, as pegas, as discussões. Toda ela uma mãe atenciosa, preocupada, sempre furiosa com o ex-marido porque não dava o apoio devido à filha. Falava-me também das preocupações com os pais, a envelhecerem, os problemas da idade que trazem surdez, alguma confusão, o medo que tinha por eles, que o pai ainda conduzisse, a mãe que quase não saía de casa. Não tenho dúvida de que estava a ser sincera. Nas nossas múltiplas e longas conversas nem ao de leve, alguma vez, ela foi outra que não uma mulher a quem o marido abandonou porque andava metido com outras, desgraçando a vida tão boa que tinham, uma mulher agora sozinha com uma filha adolescente e pais velhos.

Entretanto, sabia-se dos telefonemas ameaçadores que recebia das mulheres dos homens com quem andava, telefonemas de bancos por causa de empréstimos que contraía e se atrasava a pagar (como já não tinha o nível de vida assegurado pelo marido, começou a recorrer a empréstimos). Mas isso eu sabia por quem acompanhava esse seu lado ou por telefonemas que se ouviam. A mim nunca tocou nisso, nem sequer, alguma vez, mostrou medos por algo que se passasse nesse seu outro lado. E eu sempre respeitei essa sua postura, sempre a ouvi como se acreditasse naquela fantasia toda.


Acontece que, a certa altura, começou a dizer que tinha um grande amigo (por acaso, o que a ia buscar num bruto carrão) que se ia candidatar a uma junta de freguesia e que ela, se calhar, se ia meter na política, que ele a tinha convidado para a lista dele.

Fiquei, eu e toda a gente que a conhecia, de boca aberta.

No meio da sua vida tão cheia de cenas nunca, nunca, nunca se lhe tinham visto quaisquer interesses pela política. Mas a ideia parecia mesmo ir concretizar-se. Pediu para negociar a saída da empresa onde trabalhava, recebeu uma indemnização e despediu-se.

Eis senão quando confidenciou a alguém que estava furiosa com esse amigo porque afinal o lugar que ele tinha para lhe oferecer na lista não era elegível. Ainda mais admirados ficámos. Mas, com a vida que levava, estava a pensar mesmo ir para uma Junta de Freguesia....?




Mas a fúria não durou nem uma semana. Toda orgulhosa, contava que tinha sido convidada pela principal lista adversária mas agora já para a Câmara. Arregalámos os olhos. Dizia que contava ser eleita e que o chefe de cartaz, pessoa muito conhecida (podem crer), lhe tinha garantido um lugar, mais certo ia ser vereadora.

A loucura.

Em menos de uma semana tinha passado da pretensão de ingressar uma lista para uma Junta de Freguesia para um lugar elegível na lista oposta e para uma grande Câmara Municipal.




Pensámos todos: furiosa com o amigo, vingou-se e já anda metida com o rival político do outro.

Se andou ou não, o certo é que na noite das eleições todos a vimos na televisão a cantar e aos saltos no palco, na sequência da vitória da sua lista. Por um triz não ficou vereadora mas o novo amigo arranjou-lhe um lugar fantástico que não lembraria ao diabo.

Por essa altura perdi-lhe o rasto. Aquela tinha-me parecido demais. Uma coisa era andar de cama em cama com tudo o que era homem com dinheiro (acho que sempre alimentando a esperança que algum deles fizesse dela a sua mulher, pois não conheci até hoje mulher mais deslumbrada pela vida fácil. E, no fundo, não sei se não andava sempre à espera de descobrir um grande amor - mas fazendo sempre tudo errado, sempre más escolhas, escolhas impossíveis, sempre metida em sarilhos), mas outra, bem diferente, era levar essa insanidade para a política, para cargos onde é suposto estar-se para servir os outros.

Passaram, pelos vistos, já quatro anos.

Ontem estava eu a telefonar, de pé, à janela. O piso onde estou é alto, os vidros são duplos: não se ouve nada. Mas reparei que, lá em baixo, uns carros andavam às voltas com bandeiras, que no passeio ia um cortejo distribuindo panfletos. No meio do cortejo ia ela, toda sorridente e produzida como sempre.




Não me admirei mas voltei a sentir uma incómoda estranheza, como que uma náusea.

A política hoje, em Portugal, é a ausência de política, é uma mescla de interesses das mais variadas espécies.

Claro que há certamente ainda pequenos nichos de nobreza de intenções e de carácter. Mas devem ser raros.

Seja como for, vamos votar - na melhor solução possível, mesmo que vamos como eu: um pouco contrariada por não ver extraordinária qualidade em todos os que fazem parte das listas em que votarei. Mas, enfim, do mal o menos.

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Trailer de Blue Jasmine, o último filme de Woody Allen com a luminosa Cate Blanchett



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As fotografias são todas de Cate Blanchett no mais recente filme de Woody Allen, Blue Jasmine.


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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belíssimo fim de semana!

terça-feira, março 27, 2012

Eva ou o esplendor da poesia na relva


Música, por favor
(no botãozinho mais pequeno da esquerda em baixo, para não saltarem para o youtube)

Paganini - Sonata nº 6 para violino


Não há dia em que, ao levantar-se, Eva não abra, de imediato, a grande janela que dá para a varanda e espreite o dia.

Assim que vê o céu antevê o tempo que vai estar, a temperatura e, logo, lhe acodem ao pensamento várias ideias, planos, disposições, estados de espírito.

Depois do banho e, enquanto toma o pequeno-almoço, Eva pensa na sua indumentária para o dia, o tom dominante que será claro se estiver numa de peace and love, ou colorido se estiver virada para a acção, ou monocromático de cores fortes se quiser impor a sua vontade, ou cinzentos, castanhos (o que é raro) se estiver vagamente indeterminada, ou escuro se estiver para nem admitir conversas. Também pode ser um branco e preto com fronteiras bem definidas se quiser perturbar a mente de alguém.

A maquilhagem e os adereços tais como brincos, colar, anel, pulseira (tudo escolhido na perspectiva de que o que é bom pouco basta) acompanharão a tendência do vestuário, os sapatos e a carteira obviamente farão pendant. Mas também pode acontecer que esteja para a brincadeira e, nesse caso, a carteira e os sapatos farão um inesperado contraste com o vestuário e apenas se conjugarão com a cor do baton (ou, até, apenas com a cor da lingerie que, isso sim, é indispensável).


Hoje Eva vestiu um vestido aparentemente austero, de riscas. Para o caso de ser necessário, levará na mão um casaco preto, fluido, uma malhinha muito fina. Contudo, vendo bem, perceber-se-á que há ali qualquer coisa de subversivo. Talvez o decote, talvez a suave textura do tecido que convida ao toque, talvez a cor do baton que combina ostensivamente com o tom dos sapatos, uns Christian Louboutin encarnados bordados a preto, obviamente de tacão bem alto.


Apanhou o cabelo com displicência, sabe que as indisciplinadas ondulações apenas valorizarão um pouco mais o aspecto de bad girl. Depois de sair voltou atrás: a écharpe, claro. Finíssima, quase transparente, comprida, encarnada com leves desenhos pretos.

Ao vê-la sair de casa, quem a conheça dirá que o dia vai ser complicado, Eva vai para arrasar - mas alguma folia não estará fora de questão.

Passada firme, rosto tranquilo mas decidido, feminina, lábios flamejantes, grandes óculos escuros, eis, então, que Eva sai de casa.

O carro arranca com suavidade. Eva estará certamente a ouvir música, provavelmente música barroca. Se tivesse aberto a janela, arrancado com vivacidade, provavelmente estaria a ouvir reggae mas, hoje, pela forma como curvou deslizando, a sentir o prazer da curva, provavelmente será violino, talvez Paganini.

Depois conduz até uma zona residencial, estaciona, toca à campainha, entra. Passado algum tempo sai e volta a entrar no carro. Desloca-se agora até à zona de escritórios com mais cachet da capital. O carro entra na garagem e só voltará a sair a meio da tarde.

Contudo, ligeiramente antes da grande movimentação da hora de almoço, alguém mais atento repararia que Eva sai do edifício, rápida, quase furtiva, o casaquinho escuro e fluido cobrindo o vestido, a écharpe esvoaçando, um saco de pele (Hermès) em vez da elegante pequena carteira, outros sapatos, agora uns quase baixos. Soltou o cabelo que esvoaça, despenteado. Nem parece a mesma.


Se alguém a seguisse repararia que vai apressada, olha o relógio e anda sem ver com quem se cruza. Dirige-se, então, a uma rua murada quase escondida, um grande portão. Entra, pois, no Jardim botânico.

Aí os movimentos passam a ser outros, mais distendidos, a cabeça ergue-se, vê-se que Eva aspira longamente o ar puro e vegetal.

Anda como quem muito bem conhece cada recanto. Vira à direita, desce, entra na vegetação, procura o pequeno lago, procura um certo banco.

Jardim Botânico de Lisboa

Senta-se, reclina-se, atira a cabeça para trás, inspira longamente. Solta devagar o ar. Depois tira um pequeno livro do saco, lê. Lê e pára de ler, olha em frente, respira fundo, lê.

Um pouco depois, um sobressalto mas quase como se fosse um sobressalto aguardado. Alguém parece ter surgido do nada. Um homem - moreno, grisalho, interessante, de barba, descontraidamente vestido, calças claras, blusão de cabedal, camisa desportiva azul clara - atira-se para o banco. Na mão traz um saco de papel.

Eva retira então do saco guardanapos de papel e, ali mesmo, no banco de jardim, entre os dois, põe a mesa. Sandes, caixas de salada, sumos, um iogurte para ela. Conversando, rindo, almoçam tranquilamente. Vê-se que ambos apreciam verdadeiramente aquele picnic assim improvisado; dir-se-ia, aliás, que é usual fazerem-no. No final, limpam a boca e há elegância nos seus gestos; a seguir, Eva arruma meticulosamente as embalagens vazias, os talheres de plástico, os copos, os guardanapos, tudo no saco de papel.

Depois, ele parece convencê-la a fazer qualquer coisa, levanta-se, puxa por ela. E ela, sorrindo, vai. Ele procura então um local abrigado dos olhares, plano, limpo. Apalpa o chão, 'está seco, ainda bem que não chove...' e sorri, com ironia e doçura. Abraça-a e, depois, puxa por uma ponta da longa écharpe e abre-a como quem estende um lençol numa cama. Puxa por Eva, que não oferece qualquer resistência, uma vez mais parece ser coisa habitual. Depois despe o casaco e dobra-o para servir de almofada, descalça os sapatos. E então, Eva, a intrépida, é apenas Eva, a dócil, e deita-se na relva, num jardim público. Com um gesto de pudor ajeita o vestido, e pensa que em dias assim mais valia vir de calças, e ali fica a olhar a copa das árvores, o céu por cima. O homem vira-se de barriga para baixo, beija-a ao de leve no rosto, depois pega no livro e lê em voz alta, não muito alta, de facto quase sussurrada, enquanto Eva fecha os olhos, deleitada, entregue a um dos mais supremos prazeres, ouvir o seu amor a dizer poesia:

                      Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
                      e os ventos empurraram-na. Está ali, na perfeição redonda
                      da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
                      Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
                      só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada.

                      É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
                      um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
                      Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
                      Que lentas são as folhas largas e as areias!
                      Que denso é este corpo, esta lua de argila!

                      Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
                      fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
                      Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
                      Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
                      Crescem, crescem os músculos da mais íntima distância.


Se Paganini já chegou ao fim, então, por favor,
George Gershwin - The man I love por Ella Fitzgerald


Ele olha-a, sorri, procura aprovação, ela também sorri, mostra que gostou. Depois Eva põe uma mão à volta do pescoço de Miguel e puxa-o para si. Dois namorados, nem mais, nem menos.

Alguns minutos depois, levantam-se, sacodem as roupas - Eva sacode com cuidado a sua écharpe, coloca-a em volta do pescoço branco e ajeita-a com gestos femininos, veste o casaquinho, ajeita-o, despedem-se. Ela desce, faz o caminho de retorno, ele sobe. Uns segundos depois, Eva olha para trás. Miguel também. Como adolescentes dizem-se-se adeus, sorriem.

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O poema é  'A mulher feliz' de António Ramos Rosa.
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[E por poema: se estiverem numa de poesia e palavras em volta de uma fotografia, sugiro que cliquem aqui para irem até ao Ginjal e Lisboa. Hoje tenho Ruy Belo que acompanha com Mendelssohn]
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E tenham, meus Caros, uma gloriosa terça feira!

sexta-feira, outubro 21, 2011

Charlize Theron que adora Dior, Juliette Binoche e o poema da Lancôme, a mulher que se esconde de Guy Bourdin, o homem só de Robert Mapplethorpe e let's do it, (let's fall in love) ao som de Ella Fitzgerald

 
Longe do bulício, fechada em reuniões e agora longe de casa, num quarto de hotel, pouco sei do que hoje se passou. Não me apetece comentar mortes, é coisa que não consigo festejar, liguei a televisão e, quando vi as imagens numa Líbia em festa, mudei de canal.

Ouvi um pouco da Quadratura do Círculo, e embora goste de os ouvir, são inteligentes e lúcidos, não me apetece isso, são temas velhos, parece que hoje acho tudo isto já muito gasto.

Por isso, desculpem se tiverem a sensação de déjà vu mas é o que me apetece: filmes, glamour, moda, perfumes, moda, olhares que falam, fotografia, música - a beleza nas suas múltiplas formas.

Be happy, enjoy life.







by Guy Bourdin


Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

('Um amor' de Nuno Júdice in "A Partilha dos Mitos"

by Robert Mapplethorpe





Boa sexta feira!!!