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sexta-feira, junho 23, 2023

Quando se descobre que, afinal, os muito ricos não são invulneráveis

 

Já se sabe como acabou a aventura das pessoas que embarcaram no Titan. Com sorte a dita implosão catastrófica foi inesperada e radical não lhes dando tempo a perceber o triste desfecho das suas vidas.

Depois de ouvir os nossos ilustres marujos especialistas em submarinos percebe-se que aquela expedição milionária padecia de défice de segurança a diversos níveis. Dizem que, na Europa, provavelmente, não teria havido licenciamento pois, do que se parece saber-se, parece que não seguia diversas normas de segurança.

Não sei, não percebo nada do assunto. Por isso, não falo nisso.

Vou falar de outra coisa. 

Nisto, o que me faz espécie é a apetência pelo risco que alguns muito ricos têm. 

Desde os que se montam no foguetão (para irem ali acima, num ápice, e virem logo recambiados de volta, uns minutos a ir e vir por centenas de milhares), até agora a estes que não iam ao espaço mas ao fundo do mar por $250.000 (para irem ver, por um óculo do tamanho do óculo de uma máquina de lavar roupa, destroços do Titanic), há todo um vasto leque de 'experiências radicais' para os muito milionários.

É certo que para os muito ricos, mais 250.000 menos 250.000 não fazem qualquer diferença. Mas o que os leva a embarcar em situações em que qualquer vulgar mortal percebe que pode haver risco de vida? Aliás, eles assinam termos de responsabilidade em que assumem que foram informados e estão bem cientes de que pode haver risco de vida. Porquê?

Eu creio que é porque se acham de tal forma os maiores que quase se convencem de que estão acima das vulnerabilidades normais. Penso que se convencem que o temor é coisa dos fracos que não saem da cepa torta.

Convivi relativamente de perto com algumas dessas pessoas muito ricas. Parte delas são pessoas de famílias tradicionais, desde há muito montados em cima de grandes riquezas. Mas, em torno dessas pessoas, gravita sempre um grande número de pessoas que se tornam muito ricas ou porque casam com alguém da família e, de certa forma, passam a aceder aos elevados recursos dos outros, ou porque, pelas suas funções, passam a fazer parte do círculo mais estreito, usufruindo de muitas mordomias.

Esses são os que mais deslumbrados se mostram. Ao passo que os muito ricos 'de origem' geralmente não ostentam a riqueza nem são dados a grandes excentricidades, os outros são geralmente atrevidos, gostam de se fazer passar por irreverentes, destemidos, sempre vitoriosos.

Toda a sua vida passa a ser uma exibição da sua excelência. Têm acesso a bons advogados para que os seus actos estejam sempre contratualmente blindados, têm acesso a bons médicos para fazerem check ups regulares e para atalharem, sem qualquer restrição financeira, qualquer pequeno problema. E têm acesso aos melhores hotéis do mundo, a viagens fantásticas com guias personalizados, e tudo pago pelas empresas. E têm secretárias que lhes tratam de tudo sem terem que perder tempo a organizar ou ao telefone com quem quer que seja. 

Portanto, não só têm a vida absolutamente simplificada como tudo lhes parece possível, pois todos os riscos estão, à partida, mitigados.

A única coisa que difere disto são as situações radicais, acessíveis apenas a pessoas como eles.

Vou dar um exemplo ínfimo, que não tem nada a ver com isto, mas que ilustra este sentimento de impunidade.

Fiz várias viagens de carro com algumas pessoas do tipo que referi. Escuso de dizer que os carros que usam são sempre de super topo de gama, teoricamente 100% seguros. Mas há os limites que o código de estrada impõe, há os imprevistos técnicos, há os erros humanos, etc. Pois bem. Era normal irmos a 180 ou mesmo um pouco mais. Escuso de dizer que eu abominava aquilo, o que os divertia imenso. Eu ia pregada ao banco. Para além disso, pelo menos dois deles eram exímios em acelerar, se necessário for, colando-se ao da frente e apenas se desviando no limiar do acidente. Eu quase que tinha que fechar os olhos. E eles, os maiores, invencíveis, prego a fundo, a desafiar tudo e todos.

Apanharam multas, claro. Mas há advogados para 'limpar a barra' e provavelmente também não eram eles que as pagavam. Mas, mesmo que pagassem, não era coisa que lhes fizesse qualquer mossa. 

Apostavam, claro, em que não iam apanhar multas nem ter acidentes. E riam-se daqueles que, como eu, se preocupavam com essas minudências.

Mas isto é apenas um insignificante exemplo. 

Não é que não tenham amor à vida. Claro que o têm. O que acham é que nunca lhes vai nunca acontecer nada de mal e, se acontecer, acham que têm os meios para se 'safarem' de qualquer 'alhada' em que se vejam metidos.

É bem verdade, João, que são precisos muitos pobres para se fazer um rico. E também é verdade que o mundo real está muito longe de ser um mundo perfeito. Mas o que posso dizer é que é pena que os muito ricos não resolvam ser excêntricos fazendo coisas radicais que sejam úteis e não fúteis.

Só que há nisto um outro aspecto. Os muito ricos não gostam de ser maçados Gostam de fazer coisas, ficar felizes por as terem feito, e, uma vez feitas, partem para outra. 

Ora se se meterem em actividades de resgate a migrantes, por exemplo, dificilmente se conseguem livrar de maçadas pois a seguir ao resgate dos pobres que se fazem ao mar sem quaisquer condições haverá que enquadrá-los, arranjar-lhes alojamento, trabalho, etc. Ou seja, uma carga de trabalhos. Ora meter-se em cargas de trabalhos não é para os muito ricos. Para isso, tem os seus 'colaboradores', 'assessores', advogados, etc.

Enfim.

Agora o que eu gostava é que os nossos jornalistas investigassem estes aspectos, fizessem reportagens bem estruturadas, que fossem ouvir os muito pobres e os muito ricos, eventualmente que os pusessem até frente a frente. Seria bom que se fosse mais fundo na análise das coisas, que a comunicação social (e a opinião pública) não se ficasse apenas pela espuma dos acontecimentos.

Mas fazer o quê? O mundo é mesmo um lugar complicado.

quarta-feira, janeiro 04, 2023

Cristiano Ronaldo, o novo caga-milhões, e a sua Georgina do rabo alçado foram apresentados aos adeptos do Al Nassr e o CR7 teve oportunidade de explicar ao mundo que é único pelo que não o espanta que o contrato tenha sido único.
Muito bem.

 

Não sou de futebóis pelo que não faço ideia se o Ronaldo ainda joga alguma coisa, se tem a mania que é um astro e, qual eucalipto, seca tudo à sua volta, se quê. Não sei. 

Mas sei, do que se lê, que tem um fortuna imensa, milhões e milhões, casas de luxo por todo o lado, dezenas de carros topíssimo de gama, luxo absoluto sobre rodas, hotéis... etc. Uma fortuníssima que chega para ele, para a Georgina, para os filhos, para as manas Katia e Elma Aveiro, para o mano Hugo, para mamãe Dolores, respectiv@s companheir@s e demais família e que, se bem gerida, dará para as próximas dez gerações. 

E os rendimentos não são apenas os do futebol. São os contratos de publicidade, é o merchandising, são os direitos de imagem, são as receitas das suas empresas, são os rendimentos das aplicações e sei lá que mais.

Quem tem tanto não sei se precisa de mais. Não sei. Diria que não. Mas quem sou eu para saber coisas desta? Também não sei, em particular, se precisa de ir viver e trabalhar na Arábia Saudita, um país como a Arábia Saudita (e escuso-me de falar nos hábitos e nas práticas sociais deste país). Não sei mesmo.

O que sei é que, depois de se ter portado como um prima donna nos últimos tempos, eis que vai ganhar mais umas centenas de milhões para um lugar como aqueles. 

[Muito sinceramente, não sei se o dinheiro justifica tudo, em especial para quem já o tem de sobra -- mas a minha realidade está nos antípodas dele pelo que não poderia esperar que nos regêssemos pelos mesmos princípios e prioridades).

Há dias, a mulher ofereceu-lhe um Rolls-Royce que vale umas centenas de milhões de euros. Mais um.

Vinha com laço, o carro, e todos se fizeram fotografar ao lado do natalício presente para que o mundo pudesse ver a generosidade da Georgina.

A mesma Georgina que se fez fotografar numa cama redonda quase king size com a filha Alana. 

Nada de mais não fora a coisa dar-se dentro do jacto privado do marido. Tal como foi noutro spot do jactinho que se fez fotografar de gorro, ténis, casaco de pele, joia ao pescoço e carteira igualmente topo de gama, tudo marcas que representa.

E isto para dizer que, em minha opinião, quer Cristiano Ronaldo, quer Georgina já não são eles, são um mero mostruário de marcas, despersonalizaram-me, são, na verdade, a mais pura encarnação da ambição desmedida por mais dinheiro. 

Agora, sendo isto verdade (e não creio que possa ser negado), qual a razão para a comunicação social portuguesa fazer tamanha cobertura dos passos do CR7, pôr tantos comentadores a debater as suas razões, os seus estados de alma? 

Ganhou muitos prémios, é certo, é (ou foi) um grande jogador -- disso não há dúvida. Mas as suas birras, a forma algo descompensada como agiu no último campeonato, a gabarolice que agora parece exibir ao declarar-se como 'único' e como veículo de uma mudança de imagem da Arábia Saudita, a ostentação quase obscena que alardeia e a maneira como quer acabar a sua carreira, sobrevalorizando os milhões de que parece doentiamente sedento, deixam muito a desejar. 

E creio que a comunicação social melhor faria se percebesse o ridículo de que se cobre ao continuar a endeusar a marca CR7.

quarta-feira, abril 29, 2020

Solilóquio de uma mulher que deixou de ser consumista





Há coisa que não tem jeito. Faz nem sei quanto tempo que não consumo. Abstinência total. Um bom comportamento de dar direito a medalhinha. 

Curioso é que nem fiquei de ressaca. Nada. Parece que esqueci o tempo em que consumir fazia parte da minha vida.

Curioso, também, que nem sequer sonhei.
Digo isto porque, depois de ter deixado de fumar, volta e meia sonhava que fumava. Longas inspirações. Ou aspirações, tanto dá. Depois expirava lentamente. Aquele prazer. E invariavelmente, nessa altura, acordava num sobressalto, tinha voltado a fumas, tinha-me esquecido de que já não fumava. Até que, aos poucos vinha a mim e percebia que tinha sido um sonho. Mas aquela sensação tinha sido absolutamente verdadeira. Custava a voltar a adormecer, tão intrigada ficava com aqueilo: tinha mesmo revivido a sensação de fumar.
Mas nada. Nada mesmo. Nem blusinha, e tanto que gosto de blusa fininha de seda, nem brinquinho, e se eu sou amarradona em brinquinho, nem um chanelinho, e se eu curto um cincozinho. Nem livrinho. Nada. Livrinho novo, nada. Tanto que eu gostava de andar a fazer-me rogada, que só ia olhar de longe, que nem pensassem que iria bandear-me, no way, já estou bem servida, não preciso de mais, só olhar que olhar não arranca bocado. Mas depois, já cedendo à tentação, toda eu a inclinar-me para o pecado. Se me parecia de bom verbo, de bom aspecto, elegante, bom ao toque, já eu me sentia a cair, toda eu a arrastar a asa. Saía de lá com um pela mão. Ou mais. Em dias de gula e destempero, já era um em cada mão, ou, se era para a desgraça, uns três ou mais encostados ao peito.

Chegava a casa e cheirava-os, espreitava-lhes os interiores, passava-lhes a mão pela lombada. Um prazer. Abrir ao acaso, ler, perceber como eram quando apanhados na curva, sem aviso prévio. Tão bom que era.

Há quanto tempo.

Asceta dos quatro costados, agora. Enfiada no campo, roupa do fundo das gavetas do fundo, sem uma gotinha de perfume que se justifique, toda eu entregue à comidinha caseira, a passeios pelo campo, fotografia a toda a hora de florzinha simplória. Esta agora sou eu.

Está certo que, pelo meio, faço outras coisas mas isso agora não interessa para nadinha.

Num desses pelo meio nova discussão: está na hora de se regressar ao local de antes do merdinhas? Eu acho que a coisa tem que ser na base da prudência, só regressar quem tem que regressar, manter as empresas a trabalhar mas da forma mais segura possível. Mas claro que se isto, por um lado, bate tudo certo e parece sensato, por outro, implica que mais gente como eu se torna não consumista. E, se isto é muito lindo, a verdade é que toda a gente que trabalha neste tipo de comércio vê a vida a andar para trás. Claro que aparecerão novas actividades, claro que tudo, aos poucos, se reajustará. Mas, pelo meio, os donos das grandes torres de escritórios e das grandes catedrais de consumo devem estar a deitar contas à vida. Quanto desemprego para tanta gente?
A propósito: li que um dos donos do Colombo é um dos futuros donos da Brisa. Ui. Numa altura em que as contas do Colombo devem andar pelas ruas da amargura vai assinar pela concessão de autoestradas que estão vazias. Coitados dos que estão à espera de bons rendimentos à conta destes investimentos. 
Adiante que, à noite, no meio do campo, a minha mente não tem nada que se esgueirar por tão ínvios caminhos.

Dizia eu. Isto do consumo. Coisa perversa. Penso: mas será que estou capaz para voltar a uma livraria? Passar a mão neles, pegar-lhes? E se algum corona ranhoso lá pousou? Quem garante que uma tosse ou uma mão contaminada não o contaminaram também?

E blusinha linda? Vou provar? Vou pegar numa coisa em que outras mãos pegaram?

Mas também para quê? Preciso lá eu de mais alguma coisa?

Ando nisto, nesta divergência entre mim e mim. Quando vou voltar a circular para além do básico? Vou ao supermercado e já me chega. Trabalho em casa. Ando pelo campo. Estou bem assim. Quando puder circular, irei ver os meus amores e amorzinhos. E eles poderão vir cá. E tudo ficará melhor ainda.

Mas vai ser esta a vida? A minha? A de todos os reconvertidos? 

Recebi uma sms da simpática cabeleireira de bairro onde ia quando o rei fazia anos. Diz que podemos contar com o cuidado dela. Coitada, tenho pensado tanto nela. Mas vou lá fazer o quê? Quando preciso de cortar no cabelo, pego numa tesoura a corto.

Paguei outra vez o mês inteiro à senhora que lá ia a casa, na cidade, uma vez por semana limpar a casa e passar a ferro. A casa está vazia há mês e meio. Quando vou voltar a precisar de limpezas semanais naquela casa? E vou querer que uma pessoa que circula por várias casas por lá ande,  pela minha casa, mexendo em tudo? Mas coitada dela. 

E estou nisto. Cheia de dúvidas. A cabeça dividida. Sem saber para que lado orientar os neurónios. Os chamados mixed feelings.


Vá lá que, quando a cabeça precisa de se alienar ou não atina com o caminho, há os vídeos que caem do céu para me tirarem dos becos de onde não sei sair.

Pode ser uma que não faço ideia quem seja ou outra que idem. Não faz mal. Ponho-me a ver e gosto. E gostos não se discutem, ora essa. E se aparecem a mostrar a casa ainda melhor. Gosto de ver casas. Excepto as escuras, as armadas ao pingarelho ou as desnaturadas. Mas estas que o meu amigo me recomendou são bonitas. Gostei.




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As pinturas são de Maqbool Fida Husain que, à primeira vista, não me parece que vá muito à bola com o Smile interpretado pelo David Gilmour. Mas quem sabe se à segunda...

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E uma boa quarta-feira. Saúde e carapaus para o gato.

segunda-feira, novembro 25, 2019

Podia ficar-me pelo meu encantamento in heaven ou pela maravilhosa decadência do Ginjal.
Mas prefiro chamar a vossa atenção para aquilo que sabem.





Fim de semana tranquilo. Mas não estive na melhor forma, estive um pouco adoentada. Resfriei-me na sexta-feira e mais do que pensava. 

No sábado estive no campo. De tarde, pensei que estava melhor, pus-me a passear por entre as árvores, andei nas minhas deambulações, nem dei pelo frio. 

Voltaram a aparecer as pegadas de bicho grande, a terra escavada. Eu estava longe mas pareceu-me o meu nome chamado pelo meu marido. Era ele mesmo: tinha visto aquelas marcas, quis alertar-me não fosse haver javalis por ali. Mas não. Provavelmente só por ali andam à noite. Pelo menos, assim o espero.


O que é curioso é que aparentemente andam a lavrar a terra com o focinho ou com as patas exactamente nos mesmos sítios onde andaram antes. A minha mãe no outro dia, quando lhe mostrei fotografias de tantos cogumelos, disse: 'Se calhar, também por lá tens trufas'. Não sei, não faço ideia. Mas, ao ver como a terra está, fico com a ideia de que há animais por ali a quererem encontrar alguma coisa. Será mesmo trufas? Nem sei como descobri-las. Sei que se parecem com torrões de terra pelo que não faço ideia de como procurá-las. E há também muitos cogumelos arrancados, meio comidos.


O campo está verde, lindo. Tudo se cobre de musgos, de líquenes. Não consigo olhar para os campos e ver ali o ocaso de nada. Pelo contrário, o próprio processo de transformação das folhas rubras em nada, misturando-se e preparando-se para a a dissolução final, tudo me parece um fenómeno maravilhoso, de uma beleza difícil de reproduzir ou descrever, como se tudo estivesse a nascer, a acontecer.


As cores e os perfumes e as aragens enchem o espaço bem como o canto dos pássaros que parecem andar mais felizes e livres do que nunca. 

Fotografo, fotografo. Parece que nunca vi tamanha beleza, parece que é um milagre que estou a testemunhar pela primeira e única vez, parece que é uma bênção de que me é dado fazer parte.


O sentimento de pertença que ali sinto envolve-me toda, todas as células do meu corpo. Uma paz, uma felicidade, uma harmonia tão absoluta, uma total fusão com a terra, com o ar que transporta cheiros e cantos, com a magia da luz cuja cor muda os cenários em minha volta. Um estado de encantamento, de puro e agradecido encantamento. Não sei dizer de outra forma.


Convencida de que já estava bem, fui à noite a casa dos meus pais. Por precaução, levei a echarpe em volta do pescoço, a tapar-me a boca. Embora um resfriado não seja contagioso, não quero que haja o risco de lhes passar alguma coisa.

Mas talvez tenha voltado a apanhar frio. Este domingo de manhã estava outra vez um pouco congestionada mas, como não tenho paciência para estar fechada e me apetecia ir a um sítio onde não ia há algum tempo, fomos ao Ginjal.


E, de novo, aquela sensação de alegria pela descoberta. A cada vez que lá volto as paredes estão diferentes. Como um ser vivo que se transmuta, assim aquelas velhas e decadentes paredes: sempre novas, cada vez mais belas. 


Fotografei, fotografei. Como é possível um lugar assim?

Lisboa vista dali é bela, magnífica. Tão bonito tudo. E tão bom andar por ali. A maré muito cheia, as águas muito perto, aquela frescura boa, molhada, aquele cheiro a beira do rio, aquela vastidão, aquela perfeição que as paredes grafitadas, tingidas, devastadas pelo tempo apenas complementam. E o rio, largo, imenso. E os barcos e as gaivotas e as pessoas. Tudo tão bom, tão bonito.


E, de novo, devo ter apanhado algum frio pois voltei a sentir-me pior. Felizmente a mim o chá quente e uma sesta fazem milagres e voltei a sentir-me boa. 

Estive a ler. Cercada de livros, no conforto desta minha sala tão acolhedora, com um chá quente, com uma luz a incidir nas páginas e pouco mais, eu estou nas minhas sete quintas.

O meu marido antecipou-se-me e está ele com o Augustus do Stoner. Não faz mal, leio-o a seguir. Estive com aqueles livros em que os arquitectos falam das suas casas, mostrando como é o lugar onde vivem. Gosto do que dizem os arquitectos (alguns arquitectos). Casas, objectos, memórias, o espaço, a luz, o interior e o exterior, o conforto, a simplicidade, a história das suas vidas, a partilha -- uma maneira interessante de falar das coisas.

E agora que aqui estou, depois de há bocado ter escrito sobre a Joacine e o Livre, estou a ouvir a chuva, a ouvir música, sons bons que se misturam, feliz e tranquila, sentindo o conforto bom da minha casa.

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Antes de começar a escrever vinha com a ideia de falar um pouco mais sobre como é impossível romper com o sistema (seja lá o que isso, na realidade, significa) estando dentro do sistema como, por vezes, ingenuamente parecem acreditar os que se deixam encantar por falas aparentemente rebeldes como as do Livre (e digo isto simpatizando com o Rui Tavares a quem acho um homem genuinamente bem intencionado).

E tinha a ideia de mostrar um vídeo que me impressiona bastante. E impressiona-me não apenas pelo vídeo em si mas porque fico a pensar que o mundo poderia ser um lugar menos perigoso se mais pessoas, em lugares de decisão e poder, pensassem e agissem como parece que o protagonista deste vídeo, Feike Sijbesma, CEO da DSM, pensa. Mas não sou ingénua. As disparidades são tão abissais, o mal feito ao planeta é tamanho, a estupidez intrínseca dos humanos é tão destruidora que não é a visão solidária e inclusiva de uma pessoa, ou de cem pessoas que sejam, mesmo de mil pessoas, mesmo de cem mil pessoas que vão fazer a diferença.

Ou talvez seja. Talvez.

Talvez se muitas vozes se levantarem, talvez se, em vez de se propagarem mentiras, intrigas, futilidades e disparates nas redes sociais e na comunicação social, se difundirem bons exemplos, gritos de alerta, passos no caminho certo, talvez progressivamente haja uma leve inflexão no sentido da destruição, talvez nos desviemos da rota para o abismo que temos vindo a trilhar. Talvez. 

You know


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Sergei Polunin está lá em cima no lugar das bandas sonoras mas, obviamente, é mais, muito, muito mais que isso. Não deixem, por favor, de ver como ele voa.

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E uma boa semana a todos a começar já por esta segunda-feira.

sexta-feira, agosto 23, 2019

E o cristal vai crescendo, com as memórias que acodem, com as notícias que não tinhamos tido, com a descoberta de vergonhas escondidas...

Quiçá um mundo onde humanos deixarão de existir e dar lugar a outros melhores que nós.

O conhecimento é cumulativo e ferramentas analíticas do passado servem muitas vezes no presente


[A palavra a três Leitores de Um Jeito Manso]


Hoje é daqueles dias em que os assuntos se atropelam, fervilham. Mas são todos daqueles em que tenho que ter largueza mental e disponibilidade, toda eu entregue a cada um. Só que, como são vários, teria que ter engenho e arte para os cerzir de forma natural, sem costuras e pontas à vista, para não estar a escrever sobre um e, desconcentrada, a pensar noutro.

Mas não é hoje o dia até porque os comentários entretanto recebidos meteram o pé à porta, querem entrar, passar à frente. E têm razão. Não desfazendo, bons demais para ficarem na cave.

Por isso, agradecendo cada um dos comentários de ontem, permitam que, em vez de responder e agradecer a cada um em particular, opte antes por repescar três para os quais peço a vossa atenção.

O que aqui transcrevo em primeiro lugar emocionou-me muito. Se isto se tem passado ao vivo, seria daquelas vezes em que, depois de ouvir palavras tão tocantes, eu ficaria calada, a olhar em silêncio para quem as proferiu, sem saber o que dizer. Talvez, para disfarçar, me limitasse a dizer que sim, um Museu da Liberdade. E ficaria a pensar no que se esconde por detrás de cada palavra dita, sem saber como estender a mão até elas.

Depois o segundo. Tão desanimado, tão lúcido, palavras de uma clareza tão cristalina, tão cortante. O que diria eu? Tenderia talvez a falar em esperança, sabendo eu que a esperança, nestes tempos, é luz distante, difusa, dir-se-ia que morrente. Em esforço, talvez dissesse que não podemos baixar os braços, fechar a porta à esperança. Em esforço, quase descrente.

E o terceiro também quase descrente mas disposto a pegar nos tijolos, na pá de pedreiro, começar a construir caminhos, disposto a puxar velhos e novos para a roda, para que, juntos, cantando e dançando, de mãos dadas, ergam um novo edifício moral onde caibam todos.

Não me perguntem porque escolhi pinturas de Sidney Nolan, Sir Sidney Robert Nolan, um australiano que viveu entre 1917 e 1992, ou Daiqing Tana, nascida em 1983, para nos acompanhar com a sua voz que canta palavras que não compreendo. Não me perguntem porque não saberia o que responder.




A palavra a Abraham Chevrolet


Com mais tempo agora, quero contar-lhe o seguinte: preso pela PIDE ainda na Universidade e logo obrigado a fazer a Guerra Colonial, como combatente, quase 30 meses no mato angolano numa guerra cruenta...

Difícil não ter uma firme posição tomada. Posição que cristaliza em camadas sucessivas de desprezo... um núcleo original de desprezo, recoberto segundo as regras estritas do sistema de cristalização. E o cristal vai crescendo, com as memórias que acodem, com as notícias que não tinhamos tido, com a descoberta de vergonhas escondidas...

Falar em Museu do ditador antes de se falar do Museu da Liberdade? Museu da Liberdade onde se demonstrassem todos os atentados que Ela sofreu!!!

Desprezo, desprezo,desprezo...

A vida trouxe-nos para um patamar claro e quase limpo. Temos que ser alegres, solidários e felizes...





A palavra a JV


Infelizmente, o problema não é Pardal. Nunca é Pardal. Chame-se Trump, Bolsonaro ou Mussolini... 


O mundo de hoje é um mundo cheio de oportunidades. Um mundo novo, de partilha imediata, de uber à mão de semear, de apartamento em Amesterdão à distância de um clique. É um mundo de onde será possível nascer uma civilização melhor, mais avançada, mais interligada. 

Quiçá um mundo onde humanos deixarão de existir e dar lugar a outros melhores que nós. 

Por enquanto... até esse mundo novo emergir, milhões, milhares de milhões de pessoas vão ficando para trás. 

Sem oportunidade de entrar no mundo onde as oportunidades surgem como os cogumelos que brotam em redor das árvores. Cada vez mais para trás. Sem voz e sem escape. 

Então outros, oportunistas de má índole, idiotas cujo mantra se limita a fazerem pela sua vidinha, usarão cada vez mais a vida desgraçada dos outros para se auto-promoveram na sua caminhada em crescendo de agigantamento da idiotice mascarada de ódio.




A palavra a Paulo Batista


Apesar de o meu discurso parecer ancorado no passado, não sou um saudosista de soluções engendradas em contextos históricos. 

No entanto, o conhecimento é cumulativo e ferramentas analíticas do passado servem muitas vezes no presente, ainda que com as devidas correções. A divisão da riqueza e do poder são elementos estruturais e quase invariantes, sendo nesses que urge atuar. As soluções não são fáceis e exatamente por se colocar tanta energia a destruir estruturas sociais, supostamente "do passado", ao invés de ir construindo soluções de futuro.

Eu percebo e aprecio a energia que os jovens podem imprimir à sociedade, mas os jovens, infelizmente, parecem cada vez mais tolhidos financeiramente, atomizados e avessos ao risco social. De qualquer forma discordo. Esta é uma responsabilidade intergeracional, até porque não podemos abandonar os mais velhos. E eles estão a ser abandonados em larga escala.

A melhor proteção para os mais desprotegidos é exatamente integrá-los neste processo de transformação imparável, trazendo-os para as decisões, para as reflexões. Isso implica capacitar as pessoas com os recursos básicos (e isso só o consegue fazer quem tem poder para tal...). 

E sim, passa também pela cultura: a este respeito, em Lisboa, sois uns priveligiados!

Um exemplo de um interessante laboratório de energia criativa intergeracional que merecia mais projecção? Isto, por exemplo: http://www.outfest.pt/



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Muito obrigada ao Abraham Chevrolet, à JV e ao Paulo Batista e a todos os que aqui vêm por bem e comentaram ontem e nos outros dias e a todos os que, não comentando, aí estão desse lado a fazer-me companhia. 

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E talvez queiram ainda descer um pouco mais para verem o presidente de um Parlamento civilizado, em plena sessão, a dar biberão ao bebé de um deputado. Imagens Ímpares.

quarta-feira, abril 17, 2019

Carta de Paulo* aos políticos e aos capitalistas hipócritas






Permita-me algumas considerações pessoais sobre o debate em torno da “Sustentabilidade do sistema de pensões português”. Não sou especialista na matéria e, correndo os riscos de imprecisão de um leigo, procurarei apenas com as minhas considerações pessoais ancoradas no tal estudo demonstrar que o grande problema do estudo não é “técnico” mas político. 

O “crime” cometido pelos autores e promotores do estudo é exatamente procurarem esconder a relação – incontornável – entre a economia (enquanto ciência) e a política.

Ora, os estudos em ciências sociais (e na economia em particular) adotam necessariamente um conjunto de pressupostos e assumpções as quais, na generalidade, podem facilmente ser associadas a determinadas opções políticas.

Neste estudo em particular as conclusões são facilmente explicáveis desde logo pelos pressupostos explícitos (ou seja, sem analisarmos os implícitos): consideram-se a) a imutabilidade das regras atuais do sistema, b) baseia-se num determinado cenário de projeções demográficas e c) assenta numa análise da evolução da economia no que concerne apenas ao emprego e salários.

O que salta logo à vista neste trabalho é uma análise cuidada dos diferentes efeitos associados à evolução da produtividade e à consequente distribuição da riqueza gerada.

- Para começar, mensurar a produtividade não é tão simples como possa parecer. O estudo adopta a perspetiva salários+contribuições sociais / hora trabalhada. Ora, este indicador é especialmente indicado para avaliar a resistência de uma dada opção política estabelecida face a possíveis efeitos exógenos. Por exemplo, a produtividade mensurada pelo PIB / horas trabalhadas dá-nos, naturalmente, perspetivas diferentes sobre a economia como um todo e é especialmente útil para analisar diferentes opções políticas face a um mesmo cenário.
https://data.oecd.org/lprdty/gdp-per-hour-worked.htm#indicator-chart 
Um dos argumentos do estudo para os resultados negativos do atual sistema de protecção social é uma evolução muito comedida do primeiro indicador de produtividade que referi. No entanto, um comportamento negativo deste indicador não tem de representar necessariamente uma baixa geral da produtividade dos trabalhadores (ou seja, não tem de ser propriamente “negativo”). De facto, tal poderá ocorrer por motivos positivos (por exemplo, redução do horário de trabalho mas manutenção dos níveis remuneratórios). Infelizmente, os motivos negativos provavelmente são os mais prováveis: uma tendência de moderação dos salários e contribuições, mantendo-os sistematicamente abaixo da evolução do produto interno bruto (ou seja, uma diminuição do bolo que é produzido atribuído aos trabalhadores…). Assim, um dos primeiros pressupostos questionáveis do estudo é considerar que os cidadãos vão permitir uma perda dos ganhos crescentes associados ao cada vez maior volume e valor da produção (que pode ser obtido por via da crescente automatização e robotização de muitos processos produtivos num período em que transitoriamente os trabalhadores não terão as competências necessárias para abraçar os novos trabalhos que surgirão na economia – e note-se que até estou a pressupor que no longo prazo não haverá propriamente uma destruição de emprego por via da robotização, mas no curto / médio prazo acho-a inevitável. 

Vamos agora às questões de distribuição.

As contribuições para a segurança social somam apenas 9,3% do PIB (valor que não tem registado grandes alterações desde 2000), sendo uma das percentagens mais baixas da Europa.
https://data.oecd.org/tax/social-security-contributions.htm 
Ora, não vejo porque devemos admitir que esta opção política de colocar em segundo plano o esforço coletivo na construção do sistema de segurança social não se irá alterar. De facto, poderá alterar-se de muitas maneiras. Podemos, claro, privatizar o sistema, o que provavelmente tornará o sistema mais caro e, desta forma, para os mesmos níveis de protecção, necessitaremos de gastar mais. Mas podemos admitir também que a segurança social passa a ser um dos grandes desígnios de política pública e, das duas uma, admitimos um aumento da carga fiscal (com a contrapartida de um sistema melhor e mais robusto) ou, mantendo a mesma carga fiscal em % do PIB, abdicamos do papel do estado noutras áreas geridas pelo estado. Note-se, no entanto, que o estudo refere, no cenário mais negativo, a necessidade do orçamento de estado transferir para a segurança social o equivalente a 5,2% do PIB. Ora, independentemente deste valor ser obtido por via do aumento de impostos ou realocação da despesa do estado, isto colocaria o peso relativo do financiamento da segurança social ao nível do que se regista hoje em países como a Alemanha, Eslovénia ou República Checa. Nada de extraordinário portanto.

Por fim, olhemos para o problema concreto do financiamento indexado às compensações por trabalho recebidas pelos trabalhadores assalariados (salários mais contribuições para o sistema de proteção social). O indicador que mede o peso dessas compensações em função do valor acrescentado produzido pela economia tem vindo a cair ligeiramente (de 54,92% do valor acrescentado em 2000 para 50,12% em 2015 e uma ligeira recuperação para 51.87% em 2018. https://data.oecd.org/earnwage/employee-compensation-by-activity.htm#indicator-chart Ora, estes dados sugerem que um dos grandes problemas do sistema de segurança social pode ser exatamente a cada vez menor repartição do valor acrescentado produzido com trabalhadores; como o financiamento da segurança social é sensível à alocação de recursos que a economia coloca nos trabalhadores, se estes recebem uma proporção cada vez menor, naturalmente o sistema, num momento de transformação demográfica, ver-se-á sobre pressão (lembra-se daquela medida fantástica do Passos Coelho de diminuir drasticamente as contribuições asseguradas pelas empresas por cada trabalhador e aumentar as contribuições diretas do trabalhador? Vinha exatamente acelerar este fenómeno de realocação dos recursos produzidos pela economia, beneficiando a empresa e os seus proprietários). Claro que a direita argumenta que é necessário dar uma parte maior do bolo às empresas, para elas investirem e fomentarem o crescimento económico; dando crédito a esta ideia peregrina em Portugal… eu diria… sim, tudo bem, mas não vamos financiar as empresas à custa da segurança social! (e depois são os “ciganos” que vivem à custa da segurança social…)



Agora que descasquei no estudo, vamos ao que interessa mas que os senhores do estudo se esqueceram – bem como a maioria dos actores políticos no geral: existem mudanças importantes / opções políticas “indirectas” que poderiam ser adoptadas e ter efeitos muito positivos sem mudar por aí além o sistema atual (ou seja, como os senhores do estudo fizeram, assumindo o sistema atual como ele é e atuando noutras variáveis do sistema socioeconómico que alterem, de alguma forma, os pressupostos base adoptados nas previsões que fizeram). De entre essas alternativas destaco algumas que poderiam permitir aumentar significativamente a eficiência do sistema contributivo atual:

- Acabar com grande parte dos inúmeros regimes de exceção de contribuições para a segurança social, os quais abrangem desde a) isenções a empresas como forma de estímulo ao investimento e à contratação (note-se que não falo acabar com estímulos ao investimento, mas sim que os mesmos não sejam financiados pela segurança social!) até b) os regimes de trabalho não reconhecido – puxando a brasa à minha sardinha – como é exemplo os bolseiros de investigação (mais de 25 000 que não contribuem durante anos para a segurança social, na fase da sua vida em que mais “lucro” dariam ao sistema! Estamos a falar de valores que devem andar na ordem dos dez milhões de euros por ano, que o estado desvia da segurança social para outras despesas públicas… ou seja, mais uma vez, fazendo outras políticas públicas com o financiamento que deveria ser direcionado para a segurança social!)

- Tornar os sistemas de proteção social na doença mais eficazes. É necessária uma “reforma estrutural” enérgica nas condições de segurança e higiene no trabalho: continuamos a ter estatísticas negras de acidentes de trabalho e a eficiência de utilização dos seguros de acidentes de trabalho está longe de ser efetiva (acabando quer por o serviço nacional de saúde ser onerado em muitos casos sem ser ressarcido pelas seguradoras, quer a própria segurança social que acaba por assegurar prestações e afins que deveriam ser asseguradas pelas seguradoras!). 

- Tornar o sistema de protecção no desemprego muitíssimo mais eficiente e focado naquilo que é essencial: requalificar a força de trabalho, diminuindo dessa forma as probabilidades de desemprego e aumentando o valor acrescentado que o trabalhador pode oferecer ao sistema produtivo. O sistema de proteção no desemprego atual está inundado de ineficiências – desde colocar os desempregados em formações curtas, de qualidade e utilidade questionáveis, desarticulando / segregando os desempregados socialmente, colocando os desempregados a cumprir exigências absurdas e descabidas (como a caça ao carimbo em empresas para comprovar a procura ativa de emprego) e terminando nos benefícios fiscais (mais uma vez redução ou isenções nas contribuições para a segurança social dos empregadores) na contratação de desempregados, sem que se garantam exigências como contrato sem termo, taxa de rotação reduzida, etc.


Desculpe(m) o longo comentário mas é um tema que me interessa e que me preocupa, pelo que não podia deixar de debater. E desculpe(m) a escrita enrolada (é texto bruto, sem revisão).

Permita-me só mais um comentário:

As conversas criticas / miserabilistas que refere não são propriamente uma inveja genuína sobre quem ganha razoavelmente. Essas conversas, parece-me decorrem de várias situações, das quais destaco: 1) as pessoas têm rendimentos miseráveis (o rendimento declarado por 72% dos agregados familiares não vai além de cerca de 1300€/mês mais coisa menos coisa!! cerca de 650€/mês/pessoa num agregado com dois elementos que obtém rendimento), pelo que acaba por ser difícil de compreender e aceitarem as decisões de consumo de outros que os rodeiam (até porque as condições miseráveis tornam as pessoas muito mais dependentes umas das outras e isso leva-as a criticar a pessoa que compra um livro e depois dá o golpe no autocarro e não paga o bilhete...); 2) as pessoas têm ambientes de trabalho muitas vezes inacreditáveis, convivendo com desigualdades gritantes no dia-a-dia, inclusive com a ostentação agressiva de pessoas que ganham pouco mais que elas mas o suficiente para investirem na ostentação e em mecanismos de uma patética demonstração de estatuto; e isto nem é tão pronunciado na grande empresa, onde o tal CEO , filho do patrão, ganha 153x (tipo pingo doce) mais que o empregado caixa (mas nunca se cruza com este e até mostra um certo low profile quando isso acontece) [se bem que me recordo do recente caso do senhor da altice que veio visitar o centro de investigação e desenvolvimento da empresa que comprou (PT), de helicóptero, com aparatos de rock star... e passado uns tempos desatou a despedir malta de forma agressiva... e estamos a falar de malta altamente qualificada nas tecnologias de informação... ], mas por vezes não se imagina a violência dessa ostentação agressiva a que as pessoas são sujeitas na "chafarica" da porta ao lado, onde trabalham, numa pequena / média empresa familiar, em que 50% dos funcionários são familiares em primeiro ou segundo grau, que não cumprem códigos do trabalho, de segurança e higiene, etc (e o nosso tecido económico é maioritariamente constituído por pequenas e médias empresas).

Sim, por cada exemplo mau, acredito que haja pelo menos um bom. Mas ainda assim... para quem vive com a corda na garganta todos os meses até o mais ínfimo luxo (um livro) pode ser uma "afronta". 



A classe média é importante sim. Mas infelizmente ela é muito reduzida e não tem propriamente aumentado. O que temos é muitas situações miseráveis e uma massa de malta remediada mas que tem pouco autonomia, depende muito da decisão do vizinho do lado (porque se ele se mostrar muito aberto a luxos, aumentam o pão...) e por isso pouco racional nas observações que faz sobre a vida dos outros.

Um problema complicado!




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* O texto que acima transcrevi é da autoria de Paulo Batista e gostei tanto de lê-lo que tomei a liberdade de o puxar dos comentários do post dos 'misteriosos pobrezinhos'  aqui para cima.

Fui intercalando pintura contemporânea da Argentina apenas porque me apeteceu ter aqui cores vibrantes e juntei-lhe Itzhak Perlman a tocar o meu tango preferido  só porque sim.

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Posfácio de Paulo Batista, depois de reler o texto publicado:


Acabei de reler o texto.

Desde logo fico preocupado: a displicência "gramatical" com que escrevo nos comentários deixa-me envergonhado exposto assim. Desculpe (e desculpem) o menor cuidado.

Fazendo alguma autocrítica ao texto, não posso deixar de salientar que talvez tenha sublinhado demasiado um certo conflito trabalhador versus empresa, quando não é tanto esse o ponto fulcral. Por exemplo, quando falo na opção de aumentar a carga fiscal não é tanto nesse dualismo trabalhador vs empresa. De facto, não sublinho o problema essencial que não permite que tal medida possa sequer ser equacionada: as enormíssimas desigualdades de rendimentos dos indivíduos e, sobretudo, a enormíssima desigualdade na taxa de esforço nas contribuições. Ou seja, o foco não é tanto um problema na divisão do bolo entre os trabalhadores e a empresa em abstracto, mas o comportamento, cada vez menos solidário, dos indivíduos que lideram essas mesmas empresas - não só aqueles que delas extraem o grosso dos seus rendimentos, mas também daqueles que as lideram, extraindo um quinhão substancial do rendimento gerado (os tais que ganham 153x mais que os trabalhadores que menos recebem). 

São estes grupos de indivíduos que não só recebem uma proporção pornográfica do rendimento, como ainda por cima contribuem substancialmente menos que a generalidade do trabalhador assalariado de baixo e médio rendimento - ou seja, são estes que subtraem a responsabilidade social das empresas que lideram em benefício próprio.

Alarmante ainda é a completa cegueira política, não só sucessivamente incapaz de desenhar soluções para esse problema, de redistribuição dos esforços, como tendo vindo a promover exatamente medidas que amplificam estes problemas. 

O problema não é assim tanto de desigualdade entre trabalhadores assalariados ou até dos esforços contributivos genéricos / proporções dos contributos trabalhadores vs empresas (enquanto instituição coletiva). O problema está nestes buracos negros de privilégio - dos monopólios entregues pelo estado e por ele protegidos, das suas concessões e parcerias ("público - privadas"), das suas ações de discriminação "positiva" desses mesmos "rendistas" (o caso do imobiliário é gravíssimo embora se fale pouco por desse fenómeno...), da proteção dessa elite "gestionária"(nomeadamente, da elite financeira / bancária), (etc etc etc), porque a estes "buracos negros" estão associados esses indivíduos que subtraem a esmagadora maioria do rendimento gerado, fazendo-o desaparecer (tantas vezes legalmente!), sem qualquer contribuição.

Concluindo, coloquei demasiada ênfase naquilo que são opções políticas, quando na verdade faltam até as condições de base para essas opções políticas serem discutidas. 

Um problema ainda complexo... 

terça-feira, abril 16, 2019

A vida dos pobrezinhos é um mistério




Sou completamente avessa a conversas miserabilistas em que se invectiva quem ganha razoavelmente ou condena quem faz uso do que ganha para ir a um bom restaurante, comprar meia dúzia de livros ou passar férias num bom hotel. Sou avessa porque racionalmente isso não faz sentido até porque, se não houver quem tenha poder de compra, a economia soçobra pois a classe média é o verdadeiro motor da economia. Um país em que a classe média é débil descamba em desemprego e em miséria. Percebo que quem ganhe mal olhe para quem ganhe bem com algum despeito mas é uma reacção que tem mais de emocional do que de racional.

Dito isto, tenho que dizer que penso que deveria haver limites para as disparidades. Não sei se deve haver limites legais mas, seguramente, limites éticos devem existir.

E, caso a ética não seja intrínseca aos bafejados, então a condenação social pode dar uma ajuda.

Concretizo.

Acho escandaloso -- e, sendo escandaloso, acho que deveria ser inaceitável -- que elementos das administrações ganhem cem (ou duzentas ou trezentas!) vezes mais o salário mínimo (ou médio) praticado na empresa que administram.  Acho escandaloso que elementos das administrações de empresas ganhem chorudos bónus (de centenas de milhares de euros) quando a grande maioria dos funcionários da empresa que, no seu conjunto contribuíram para os lucros, ganham esquálidos bónus da ordem das poucas centenas de euros que não dão sequer para pagar o seguro ou a reparação do carro em segunda mão.

Acho inconcebível que se gastem fortunas a pagar principescamente a meia dúzia de pessoas (já para não falar nas fortunas que se gastam a pagar projectos de fachada, alguns supostamente destinados a fomentar a felicidade dos trabalhadores) quando parte dos ditos trabalhadores anda a pedir adiantamentos de subsídios de férias para pagar explicações dos filhos ou de subsídios de natal para pagar o material escolar das crianças ou algum arranjo em casa.

Refiro-me, sobretudo, às grandes empresas seja qual for o seu ramo de actividade -- bancos, distribuição e retalho, saúde, energia, aeroportos, etc. Estas empresas são os grandes empregadores do país e as práticas que seguem definem os standards que alimentam o benchmarking que quase tende a ser lei. 

Quem vê a sua conta bancária aumentar escandalosamente todos os meses e, ao mesmo tempo, consegue alhear-se das dificuldades pelas quais passam os trabalhadores que ganham menos na empresa que administra perdeu forçosamente a noção da realidade.

E às tantas temos as Fundações financiadas por essas empresas a fazerem estudos sobre como regular a vida dos pobrezinhos, de forma a terem sustento quando forem velhinhos. E esquecem-se que, se cortarem nos seus escandalosos rendimentos e aumentarem os ordenados dos trabalhadores ou as contribuições para a Segurança Social, isso, sim, seria uma ajuda para resolver o problema (se é que há problema). E se o egoísmo ou a estupidez tal não lhes permitir, pois que fiquem calados. É que é isso: se é para dizerem, escreverem ou financiarem estudos que são meras alarvidades, melhor seria que ficassem sossegados.

Talvez por isso, bato palmas a esta congressista democrata desejando que a prática se propague -- e peço que vejam o vídeo porque é exemplar:
California Democratic congresswoman Katie Porter spelled out to JP Morgan's CEO, Jamie Dimon, the real-world implications of the low wages his bank pays its junior employees at a senate hearing on Wednesday. After running Dimon through the numbers, Porter found that a single mother on the bank's starting salary for a teller would be $567 in the red at the end of each month. Asked how a woman in that situation could get by, Dimon said, 'I don't know'

Congresswoman grills billionaire CEO over pay disparity at JP Morgan



Um exemplo a seguir, o de Katie Porter.

sábado, setembro 15, 2018

Sorry, Sr. Presidente, não lhe segui o exemplo:
não fui capaz de mergulhar na Fróia*...


Só para desfazer já as ilusões: não foi por mais nada, foi mesmo só pelo bucho e pelos maranhos. Love, love, love. Ou seja, estando por ali, nem pensar em vir embora sem os ir manjar onde eles são de a gente se lamber e chorar por mais. 

Portanto, o percurso de volta passou pela Sertã e, de caminho, por Proença-a-Nova.




E, já que estávamos em Proença, nem pensar em passar por lá sem ir até à Fróia, essa bela praia fluvial.
* E, note-se, não sei se o Marcelo também por lá banhou o seu mundano corpo mas, dado como é a tirar a roupa em qualquer lugar, se esta praia fluvial lhe escapou foi por mero acaso e, de resto, nada nos garante que um belo dia não estejamos nós de mantinha sobre os joelhos a ver televisão e não nos entre ele, todo lampeiro, sala adentro, a mergulhar nas verdejantes águas da Fróia.
Adiante.

Pensámos: para lá chegarmos, deve haver indicação, placas, quelque chose. Mas perceber que quem não é do sítio precisa de ter placas de orientação é coisa que os nossos municípios, de maneira geral, ainda não perceberam. Podíamos ter tentado logo o gps mas resolvemos, antes, fazer as coisas à moda antiga. Ir até ao centro, dar um passeio, ir até ao Turismo.


E foi o que fizémos. Démos uma voltinha a pé, procurámos os Paços do Concelho e lá démos com o Turismo. Uma jovem simpatiquíssima deu-me um mapa, explicou-me.

Ao entrarmos no carro, lá transmiti as indicações mas o meu marido, achando que eu não estava a ser clara, insistia: há-de haver indicação de praia fluvial ou de aldeias de xisto, qualquer coisa. Sim, sim, era bom. Sendo pontos de atracção no concelho, era normal que estivessem devidamente assinalados. Nada. Acabei por tentar o gps e felizmente lá tinha a Fróia. Sorte. É que só mesmo junto ao sítio onde se vira é que tem uma placa. O costume.

Mas, chegando lá, a gente esquece a falta de visão dos autarcas e focamo-nos é no que a nossa própria visão nos dá a ver.

Uma maravilha. Já conhecíamos mas a lugares assim pode sempre voltar-se que nunca será de mais.

Verde que te quero verde. Um mundo tranquilo todo em verde. Lá em cima, na estrada fazia um calor abrasador mas cá em baixo, junto à água, no meio do arvoredo, estava um fresquinho verde de dar gosto.



Não sei que erro de paralaxe é este que, ao projectar-nos nas águas, me deixa redonda e  põe o meu marido barrigudo e mais pequeno que eu
Por estas e por outras é que não gosto de selfies: parece que desfavorecem uma pessoa, credo

Estava, pois, com vontade de seguir o conselho do nosso ubíquo Presidente-Nadador e mergulhar nas águas da praia fluvial. Mas, olhando para o fundo, não consegui. A água escura, na beira um fundo pedregoso e a meio nem se via o fundo. Não consegui. Não sei que monstros se escondem em águas assim, não sei se haverá piratas submarinos a puxar as pernas das ladies que se afoitam, não sei se há tubarões de água doce, polvos gigantes ou medusas enleantes e perigosas. Não. A mim não me apanham em águas que não sejam transparentes. Aliás, corrijo: a água até é capaz de ser transparente mas o fundo e as margens devem ser escuras e toldam a visão. Ou isso ou outra coisa qualquer que não deixa ver. Portanto: andei e passarinhei, fotografei mas não mergulhei.


Agora uma coisa tenho eu a dizer: ainda não sabemos valorizar o património riquíssimo que temos. Lugares paradisíacos como estes são ainda quase desconhecidos do mundo. E quando falo do mundo não preciso de ir longe. Num dia de calor (trinta e tal graus) e com muita gente ainda de férias (já para não falar nos que não trabalham como, por exemplo, os reformados) não estava lá mais do que uma dúzia de pessoas. 

Está certo que não é preciso que haja enchentes que estraguem ou descaracetrizem a beleza natural dos lugares mas o turismo de qualidade sabe conciliar o melhor dos mundos. Mais turismo traz mais riqueza aos lugares, mais emprego, mais oportunidades. 

Proença-a-Nova tem um potencial que, à vista desarmada, se vê que é enorme e, no entanto, do que conheço (e que, confesso, não é muito), não parece saber tirar partido disso.

Adiante. 

Dali rumámos à Sertã. Estava muito calor, mesmo muito. Demos um passeio no bonito e cuidado jardim e, de seguida, até porque estávamos quase no limite do horário, fomos então ao bucho e ao maranho. Bons, bons, bons.


E dali iniciámos o caminho de regresso. Já cá estou, in heaven. O bem que me sinto aqui, a alegria com que chego a casa, são difíceis de explicar. Já andei a varrer a caruma à volta da casa, já andei aos figos, já assei um cabrito no forno, com alecrim e mel. E aqui estou, sossegada, partilhando convosco estas minhas andanças.

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E, agora que já acabou o filme Eu, Daniel Blake que passou na rtp2, devo dizer que, se não viram, devem vê-lo. Penso que é imprescindível e urgente vê-lo. A situação de quem se vê numa situação de fragilidade, sem meios, sem ter a quem recorrer, à mercê de mecanismos e organismos frios, insensíveis, onde não há consideração pela dignidade humana nem compreensão para com a vulnerabilidade de quem nada tem, pode ser de total desespero. A história de Daniel e de Katie é de partir o coração. E é, acredito, o retrato realista do que se passa nessa parte do mundo real em que as pessoas são a parte menos importante, nesta Europa que, por vezes tratar assim os seus cidadão. E é isto que tem vindo a abrir a porta ao populismo, à xenofobia e a tudo o que de mais temível está à espreita. Tentem ver este filme, é o que vos recomendo.