Não sei se na estatística das nove mulheres assassinadas desde o início do ano (e ainda estamos no início) já consta a menina de dois anos e a sua avó. Se calhar, não. Se calhar agora já são onze. Não sei a que se deve este número. Os sociólogos ou os psicólogos sociais devem conseguir explicar.
Ouvi hoje que, a seguir ao período de natal, a violência se acentua pois, muitas vezes, o período festivo força encontros indesejados ou, pelo contrário, faz sentir sofridas ausências, reprime sentimentos ou aguça ressentimentos.
Mas, situações sazonais à parte, parece haver muito ódio recalcado, muito desenquadramento, muita banalização do mal. As telenovelas portuguesas em horário nobre estão cheias de gente de pistola em punho, gente a agredir-se, a vigarizar-se, a vingar-se, filhos roubados, mentiras. Os filmes com maiores audiências estão cheios de perseguições, tareias, assassinatos, armas, armas de toda a espécie.
E depois há a pressão das redes sociais, o faz de conta, os amigos, os comentários permanentes, os likes, a exposição como forma de vida. E a raiva contida por debaixo da capa dos sorrisos e das selfies. Lê-se de vidas de 'esquemas' ou fantasias, ilusões, farsas. Ou vidas de 'seguranças' ou ex-seguranças, homens que tomam suplementos, que cultivam o físico, que são contratados para vigiarem o crime. Gente que vive nas margens da violência. Gente cujo corpo mal consegue suster as ondas de agressividade que parecem nascer do mais íntimo de si.
E depois é isto. O mal latente, comezinho, banal. A sociedade vai aceitando a violência gratuita, a pressão inaceitável e prepotente. Por exemplo: a greve dos enfermeiros, suspendendo cirurgias, podendo colocar em risco a vida das pessoas -- sendo que os doentes, indefesos, são as únicas vítimas -- é outro sinal da virulência que grassa nesta sociedade. Choca-me a tolerância com que se aceita que uma classe profissional atente contra a saúde pública da população, em especial da mais desfavorecida. É que estranhamente os enfermeiros não fazem greve nos hospitais privados quando razões de queixa também não lhes devem lá faltar. Tudo obscuro. Violento, incompreensível, inaceitável. Sementes de maldade que vão sendo espalhadas na sociedade.
Por cada mulher que morre vítima de violência doméstica, muitas outras continuam a sofrer sem coragem para denunciar a situação, com medo das consequências se ousar falar, com medo de represálias sobre os filhos. Medo, vergonha. Omissão. Até que um dia a coisa transborda. O dia em que o controlo falta. Onde vale tudo. Onde acontece o passo fatal.
Podia ser amor. Talvez tenha começado por ser amor. E o amor assume muitas formas e nem sempre tudo é bom no amor. Mas, por vezes, tudo se confunde: o real, o virtual, o social, o fatal. E depois há o momento em que o amor deixa de ser amor e passa a ser obsessão, pulsão, possessão.
E depois, por vezes, o sofrimento anónimo, silencioso e continuado, torna-se um número público.
E depois, por vezes, o sofrimento anónimo, silencioso e continuado, torna-se um número público.
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[As pinturas pertencem à colecção A Fortnight of Tears, um trabalho de Tracey Emin].