Quando eu trabalhava, usava, por vezes, uma expressão idêntica (salvo as devidas distâncias) à que António Costa usou no outro dia.
Em especial, quando fui responsável pelas Exportações e pelas Compras das Empresas para as quais trabalhava e em que tinha por função comprar e vender nas melhores condições possíveis (baixo preço ao comprar, preço alto ao vender), quando me invocavam relações de longo prazo para obter condições de algum favor ou condescendência, eu dizia: 'um director não tem amigos'.
Numa vez em que comprávamos regularmente uma matéria prima (que, de cada vez que era adquirida, custava a preços de hoje, milhões de dólares), decidi não a comprar ao fornecedor mais usual por não estar a fazer as condições que eu queria. O vice-presidente dessa companhia internacional meteu-se num avião para vir tomar-se de razões comigo e, já o contei aqui, foi uma das raras vezes em que, intimamente, me senti vagamente intimidada. Tínhamos tido, de manhã, uma acesa discussão ao telefone em que ele não conseguia aceitar que eu mudasse de fornecedor. De tarde, sem que eu o esperasse, apareceu-me à porta do gabinete. Muito alto, muito bonito, muito charmoso... e furioso. Estava chocado com a minha decisão e tentou dar-me a volta ao vivo e a cores e, se eu não cedesse, já tinha pedido uma reunião de urgência com o presidente da empresa. Não cedi, claro e toda a minha argumentação se baseou em que 'um responsável por fazer negócios não tem amigos'.
Não teve outro remédio senão encaixar até porque, obviamente, eu estava respaldada. Mantivemo-nos amigos mas, a partir daí, ele passou a tratar-me por 'UJM, la femme infidèle' (claro que, em vez de UJM, dizia o meu nome).
Mais tarde, enquanto membro de uma Comissão Executiva, dizia isso a torto e a direita. Se queriam aumentos ou promoções, aceitação de dilatação de prazos ou o que fosse, e se se posicionavam como sendo nós conhecidos de longa data, tinha que lembrar que a minha função não tinha amigos.
Ou seja, é a função que não tem amigos. No trabalho, temos que ter distanciamento, não podemos tomar decisões com base em afectos ou emoções.
Quando António Costa disse que 'um Primeiro-Ministro não tem amigos' é isso. Enquanto Primeiro-Ministro gere o que tem a gerir com base em critérios racionais, objectivos, e não com base em amizades.
Ele, enquanto pessoa, tal como eu, enquanto pessoa, temos os amigos que temos. Mas não é no patamar da amizade que tratamos de assuntos profissionais.
Contudo, por todo o lado, desde jornalistas descerebrados a comentadores avençados, toda a gente diz que António Costa disse que ele, ele próprio, não tinha amigos. Ora não foi isso que ele disse. Ele não disse: 'Eu não tenho amigos'. Ele disse: 'Um Primeiro-Ministro não tem amigos'.
Creio que apenas sou lida por pessoas inteligentes pelo que terão percebido isso desde que António Costa falou. Mas caso conheçam gente burra, dessa que não consegue perceber a diferença entre uma coisa e outra, peço que façam o favor de encaminhar este meu mail.
Agradecida.