Há sempres partes dos meus dias de que aqui não falo. Mesmo quando parece que falo de muito, em geral aquilo de que falo não é senão o que se passa in between. Geralmente também não falo do que me preocupa enquanto me preocupa. Quanto muito, falo quando já não estou preocupada.

Mesmo que eu aqui expusesse os meus dados biográficos, o meu curriculum vitae detalhado, a minha ficha clínica e as actas das reuniões em que participo não se poderia concluir muito. A vida de uma pessoa é sempre tão mais do que aquilo que parece ser.

Portanto, ninguém conhece ninguém, excepto, quanto muito, quando se trata de pessoas bidimensionais, desinteressantes até à quinta derivada, pessoas que se comprazem numa vida de inutilidade absoluta. Conheço pessoas assim. Olha-se e dir-se-ia que são pessoas que vivem vidas absurdas de tão desprovidas e nulas que são e, no entanto, são felizes nas suas rotinas e gestos inúteis. Dou por mim a pensar que, justamente, talvez sejam essas as pessoas que me melhor interpretam o absurdo ofício que é viver.
Estou com isto pois hoje, de tarde, estando no campo, dei por mim a olhar alguns dos livros que por lá param. Geralmente são livros que levo para ler e que acho que é melhor lá ficarem para os completar no fim de semana seguinte ou para quando tiver tempo. Ou livros que acho que é melhor que estejam à mão quando quiser ir ler à sombra. Ou livros que quero ler com mais tempo, talvez nas férias. E pensei: será que, por estes livros desirmanados, alguém poderia decifrar o meu ADN?
Fui buscar a máquina e fotografei alguns dos montinhos. Ao ver agora as fotografias descobri alguns, poucos, uns dois ou três se tanto, que não sei bem o que são. Provavelmente esses ficaram justamente por não saber isso mesmo: o que são e onde melhor se encaixarão.
Já agora, a propósito, um apontamento confessional: andei a ver aquilo de que a casa está precisada. E é tanto. Falta-me tempo para deitar mão a isso mas não poderemos adiar por muito mais. A parte mais antiga precisa de pintura por fora e por dentro, as madeiras do chão e do tecto precisam de óleo protector. Se calhar no chão, cera. Gosto muito do cheiro da cera. Dá mais trabalho mas o cheirinho é um consolo.
Também estive a abrir os roupeiros dos quartos que eram dos meus filhos e constatei que estão cheios de roupas que eram deles. Penso que jamais as voltarão a usar mas, com alguma esperança, iludo-me que, talvez um dia aos miúdos, os seus filhos, lhes dê jeito usar alguma daquela roupa, ou porque se sujaram ou porque se molharam. Mas tenho que rever o que ali está pois o mais provável é que tenha os armários cheios de coisas inúteis.
Entretanto, a minha filha pediu que tentasse encontrar os seus livros de pautas de quando estudou piano. Por isso, fui ver a grande estante que está na despensa e que, quando comprámos a casa, estava em lugar de destaque na sala da lareira, e descobri não apenas imensos livros e brinquedos de ambos, de vários escalões etários, bem como cadernos e livros da escola -- e também pensei que não sei se faz sentido ter aquilo tudo ali, entocado e inútil. E, como sempre acontece quando procuramos alguma coisa, tudo menos pautas. Fui, então, à casinha lá fora onde estão as máquinas de cortar mato, a serra eléctrica, tintas, uma mesa de ping-pong, uma mesa de plástico desmontada e uma grande arca antiga, de sândalo, trabalhada, e para a qual nunca descobri um lugar digno e visível. Pensei que talvez as pautas ali estivessem. Mas não. Estava um grande saco com cobertores e um outro com lençóis bordados e com rendas. E isso encheu-me de pena. Eram de tias do meu marido, talvez até dos avós. Na altura, tive pena de deitar fora coisas que eram tão estimadas e que estavam numa casa tão bonita, tão bem cuidada. O meu marido queria deitar fora, dizia que nunca iríamos utilizar. Não fui capaz. Mas agora, ao ver que tinha posto ali as coisas e que nunca mais delas me tinha lembrado, pensei também que tenho que repensar algumas decisões. Guardo coisas que penso que têm memórias associadas a elas, coisas que, daqui por algum tempo, alguém possa gostar de conhecer. Mas quem? Quando?
Mesmo os livros. Receio o que um dia lhes venha a acontecer. As pessoas têm as suas casas e elas não são elásticas, podem não conseguir acomodar o que lhes possa ser destinado. Vi quando foi dos meus avós, de qualquer deles. Nenhum dos meus primos quis ficar com alguma coisa. Disseram que não tinham onde pôr. Pude ficar com tudo o que quis mas, verdade seja dita, pude porque tenho uma casa no campo, com espaço.
Ao ir agora escolher uma música para ouvir enquanto escrevo, o YouTube tinha para me mostrar estantes em casa de pessoas conhecidas. Claro que vi todos os vídeos, e com que interesse os vi. Uma estante é um mundo e o amor que se tem a cada um dos livros que ali está transporta um pouco de nós para aquele lugar que, para quem ama livros, é do domínio do sagrado.
Mas fico a pensar, tal como penso em relação a mim: o que acontecerá quando a pessoa for desta para melhor e alguém se vir a braços com tudo isto, tendo que dar destino a todos estes volumes?
Há coisas que fazemos que só fariam sentido se vivêssemos eternamente. Assim é tudo meio louco. E o melhor é nem pensar nisso.
E estas são algumas das estantes de alguns deles
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As fotografias foram feitas esta terça-feira in heaven e achei que uma Bachianas Brasileira de Villa-Lobos vinha mesmo aqui a calhar
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Desejo-vos uma bela quarta-feira