Dove sei, dove t'ascondi
[Bononcini (Polifemo), Martina Bovet]
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Lídia estava muito em baixo. Tinha chorado, os olhos estavam inchados, vermelhos, tinha olheiras. Uma sombra, como sempre.
O que é agora isso?, perguntou Nita quando chegou; e enquanto perguntava, mudava a fralda à idosa, limpava-a, punha-lhe cremes, ajeitava o resguardo, tirava as luvas, uma rapidez de movimentos que só visto, dir-se-ia que toda a vida fizera aquilo. Depois deu-lhe uma papa, limpou-lhe a boca, deu-lhe os medicamentos, ajeitou-a na cama, puxou o cobertor para cima, entalou-o dos lados. No fim fez uma festa na cabeça da senhora. Lídia, como se ganhasse força, levantou-se e deu um beijo na mãe, durma bem, mãe. A mãe perguntou-lhe, sabe a que horas é que a minha filha chega? Lídia fez-lhe uma festa ao de leve na cara e respondeu, está quase a chegar.
Nita olhava para ela, mas então foi-se outra vez abaixo ou quê?
Lídia encolheu os ombros, fechou os olhos. Depois disse, combinei ir amanhã pagar o dinheiro àquele polícia que me ajudou.
Nita ficou à espera, E...? Como Lídia não respondesse, insistiu, Sim, e então, que é que isso tem?
Lídia não queria falar nisso mas como Nita continuasse à espera, de mãos nas ancas, explicou, e toda ela uma hesitação na voz, Eu não quis que ele viesse aqui a casa... combinou irmos a um café...
A outra continuava sem perceber, E então? que é que isso tem?
Há anos que não vou a um café, sentar-me numa esplanada, e ainda por cima à hora de trabalho.
A outra pensou que ela estava com medo de ser apanhada numa fiscalização, Não tem problema! Então, a sua baixa é psiquiátrica, a senhora pode sair, só lhe faz é bem, devia era sair mais.
Lídia viu que ela não tinha percebido, mas nem sei estar num café, não me dá jeito.
Ora, D. Lídia, mas o que é isso de dar jeito? Não é para estar sentada a uma mesa...? Que jeito é que é preciso para estar sentada a uma mesa...? e riu-se.
Lídia ganhou coragem, Mas ele é casado.
Nita deu uma gargalhada, Ora essa! E então ser casado é ter peçonha?
Lídia, envergonhada, já com medo, Se me vêem sentada num café com um homem casado...
A outra ria-se, Oh D. Lídia mas está a pensar ir arrancar-lhe algum pedaço...?
Lídia sorriu. E nem sei o que hei-de vestir... e estou tão magra.
Nita pegou nela pela mão, Bora lá, vamos lá então escolher a toilette e levou-a até ao quarto.
Depois de vasculhar, confessou, rindo, Pois é, D. Lídia, este guarda roupa bem merecia uma boa reforma, que roupas mais tristes, senhora...
Mas lá escolheram.
Nessa noite Lídia mal dormiu. Levantou-se cedo, tomou banho, vestiu-se logo, aprontou-se, guardou o livro de cheques e a meio da manhã estava pronta. Mal conseguiu comer tal era a ansiedade. Depois uma outra questão começou a atormentá-la: queria lembrar-se da cara de Paulo e não conseguia. Começou, então, a temer chegar lá e não o reconhecer.
A mãe chamava-a, chamava pela mãe, pela prima, pelo marido, estava levada da breca, uma agressividade difícil de aturar, que as janelas estavam escancaradas, que os ladrões entravam, que entrava o frio, que entrava o vento, que entravam os gatos, que os gatos davam conta de tudo, e Lídia, não estão nada, mãe, estão fechadas e a mãe, sua mentirosa, estás a gozar comigo, então eu não vejo tudo aberto, a chuva a entrar, o chão todo molhado, os tapetes encharcados, sua estúpida, sua malvada, queres é que eu morra, não é?
Lídia, enervada, impaciente, Que ideia, mãe, está tudo fechado. Quando se ia chegar à mãe para lhe ajeitar a mantinha sobre as pernas, a mãe quase a agredia, julgas que eu estou velha, que já me podes enganar? dou-te um par de estalos para veres quem manda aqui.
Sentiu o cheiro, aquele horrível cheiro. A mãe estava suja, devia mudar-lhe a fralda. Mas queria era ir-se embora, estava ansiosa, impaciente.
Infeliz, a sentir-se culpada, saíu da sala. Foi ver-se de novo ao espelho. Desengraçada, ultrapassada, mosca morta, solteirona, menina velha, desmereceu-se em pensamento. Mudou de casaco, vestiu um mais claro. Depois saíu de casa, enervada, culpada, culpada por deixar a mãe assim, culpada por se ir encontrar com um homem casado. Viu as horas, a D. Fátima deveria estar quase a chegar, limparia a mãe, da-lhe-ria o almoço.
Chegou ao Cais do Sodré antes da hora e o coração batia, batia, pancadas incertas e audíveis. As pernas tremiam-lhe, a boca seca, as mão molhadas. Podia colapsar a qualquer momento.
Não sabia o que fazer, se devia entrar, se devia ficar por ali a fazer horas. Era uma estranha naquele ambiente. Havia gente descontraída nas almofadas cá fora, gente junto ao rio, pareciam todos felizes, bem vestidos, descontraídos. Lídia não sabia se haveria de ir para ali, tinha vergonha, tinha medo, não costumava andar em sítios assim, medo que a assaltassem, medo também que algum homem se metesse com ela, medo que Paulo não aparecesse, medo, medo, sempre aquele insidioso medo, sempre, um medo surdo a tolher-lhe a vida..
Mas, mal se aproximou, viu Paulo. Estava perto da entrada, mãos nos bolsos. Era alto, forte, uns cinquenta anos, talvez mais, parecia quase um homem do campo e também ele parecia ali ligeiramente deslocado.
Quando a viu, riu e avançou para ela. Parecia ir aproximar-se para a beijar mas Lídia estendeu-lhe uma mão gelada, húmida. E mal o fez logo se arrependeu, que vergonha, porcaria de mãos, vai ver que estou neste estado, mas ele deu-lhe um vigoroso aperto de mão, Então como está?
Lídia, atrapalhada, estou bem, obrigada. E só pensava em entrar e esconder-se num canto, sentar-se de costas numa mesa escondida.
Paulo, disse, Não quer vir aqui até à beira do rio? e Lídia já numa aflição, a voz a tremer, Não, não quero ser vista consigo aqui a passear.
Paulo parou espantado, Hom'essa, mas então porquê? Eu sou dos bons. Eu prendo os maus. Eu não sou nenhum bandido. Tem vergonha de ser vista comigo porquê?
Lídia sentiu-se corar, a voz sumida, Porque é casado...
Paulo deu um passo atrás, espantado. Casado, eu? Mas onde é que foi arranjar essa ideia? E se fosse? Essa agora é boa...
Lídia assustou-se, pensa, já estou arrependida, bem diziam que devia ser um meliante, é um mentiroso, bem me avisaram contra gente desta, agora pensa que me vai enganar, julga que se pode aproveitar, vou-me mas é já embora. Pago e vou-me embora, nem me sento à mesa. Tem ar de sabido, credo..., nem tinha ideia que fosse assim, julga que me pode enganar, ah que pouca sorte a minha, olha como sorri a ver se me leva na conversa.
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Caso vos apeteça passear comigo pelo
Ginjal, teria todo o gosto em vos ter por lá. Boccherini continua a ser uma presença envolvente e hoje as minhas palavras pintam rios e pontes para me unirem a vocês, meus Caros Leitores, junto a um belo poema de Pedro Tamen.
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Desejo-vos, meus caros leitores, um belo dia. Está um fresquinho e uma chuvinha de Outono, é bom.