Mostrar mensagens com a etiqueta Fernando Pessoa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Fernando Pessoa. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, abril 28, 2022

Varrer, podar, fotografar



Acabei de fazer zapping por todos os canais portugueses. Nas telenovelas portuguesas nem paro, não tenho pachorra. Em quase todos os demais vi gente com um certo ar de maluquice. Cada um fala de sua coisa, desde cantigas, a economia ou política, mas alguns estão com olhos demasiado abertos, outros falam como se quisessem convencer-nos que são inteligentes e há um que tem um cabelão de impor respeito, um ceo de uma coisa com nome curioso. Não sei porquê mas tenho para mim que saíram de algum ninho de cucos. 

Não sei se por isso, não consigo estabilizar em nenhum. Não estou com cabeça para tanto. 

Estou é a pensar se a mangueira que trouxemos encaixará bem na torneira que está ali do outro lado. É daquelas que parece uma serpentina e não sei se estica até onde quero. Em vez de regar os vasos com regador, seria bom regar com mangueira. Como me fio sempre na virgem, encho o regador até acima a fim de minimizar o número de idas e vindas. Mas o regador cheio leva dez litros. Ora andar cá e lá com dez quilos nas mãos, às vezes deriva para uma tendinite no ombro sacrificado. O meu marido hoje, a propósito de ser difícil darmos cabo de tanto mato, disse: 'Sabes o que é? Se calhar já não temos idade para tratarmos de tudo sem ajuda'. Fiquei a olhar. Temos tanta como antes. Não é uma questão de idade ou não idade. 

Não quero é que me arranquem os orégãos ou o rosmaninho ou o alecrim e já sei que se contratamos alguém para arrancar o mato tenho que pôr o coração ao alto pois já sei que vai tudo à frente. Conversa mais recorrente... Todos os anos por esta altura temos esta divergência.

Enfim.

Também tenho que arranjar adubo para citrinos porque as laranjeiras aqui, in heaven, também estão bem precisadas. O limoeiro já se foi e as laranjeiras estão desvitaminadas, fraquinhas.

As nêsperas ´que já estão razoáveis. Apanhei umas poucas, ainda não demasiadamente douradinhas mas já comestíveis. Perguntei ao meu marido se queria e respondeu: 'Devem estar boas... Pela cor... Come-as tu se achas que já estão boas'. É um céptico.

Certo, certo é que varri bastantes folhas, caruma, bolotas. É das coisas que gosto francamente de fazer: varrer. 

O balde grande com rodas agora está com lenha e, por isso, tive que pôr o que apanhava num balde simples, dos das esfregonas. Não rende nada. Tive que fazer não sei quantos trajectos para o despejar. Agora estou aqui a escrever e sinto as mãos um pouco doridas. Alma de camponesa, maozinhas de princesa (vá, Segismundo, ria-se, ria-se...)

Por vezes o acto de varrer é, sobretudo, uma animada coreografia entre a vassoura e o urso peludo que acha que a vassoura é um ser de outro planeta que está ali só para o desafiar. Ladra, salta, quer apanhá-la, finca-lhe. Uma luta.

Para ele isto é o seu elemento. Anda à solta, à larga, à chuva. Claro que depois chega a casa, molha o chão, molha os tapetes e, pior, molha os sofás. Aliás, o pior não é isso, o pior é outra coisa: o pior é que não consigo zangar-me com ele. 

Tenho um coração de manteiga, é o que é.

Supostamente estamos de férias. Mas as férias são bem tão raro que as aproveitamos para fazer tudo o que nos outros dias não conseguimos fazer. Portanto, não descansamos. 

Hoje, a seguir ao almoço, repimpados naquele sofá em que não chego com os pés ao chão mas que se reclina e se transforma numa coisa que me deixa a dormir, pimbas, deixei-me mesmo dormir. 

Mas logo, logo, logo a seguir, tocou o telefone e, ao meu lado, uma conversa sobre os grandes problemas existenciais (estou a gozar... eram problemas bem materiais) despertou-me. Ainda tentei voltar a pegar no sono mas outro tema da máxima relevância assomou à minha mente: onde estaria o podão pequeno, aquele jeitosinho, para ir desbastar os rebentos ladrões das azinheiras? 

E não descansei enquanto não me levantei para ir à procura. Não encontrei. 

O pior é que, ao estar na despensa à procura, rocei com o cabo de um podão gigante numa caixa de ferramentas que caiu ao chão e se entornou. Ora é sabido que entornar-se uma caixa de ferramentas é pior que entornar azeite: não se dá apanhado. Apanhei de arrastão parafusos, pregos, roscas, buchas e toda a espécie de pequenos objectos... e tudo lá para dentro. Nem quero pensar quando o meu marido vir aquilo. É que acho que, de manhã, quando estava a chover e não podia estar a dar cabo do tojo e das sílvias (que é o que ele chama às silvas), tinha estado a arrumar a dita caixa. Mas deve tê-la deixado meio de fora da prateleira, em desequilíbrio. Digo eu (para me desculpar por tê-la atirado ao chão).

Resumindo: andei a podar azinheiras com um daqueles podões que têm umas pegas telescópicas. Não dá jeito nenhum. Mas, enfim, como gosto de podar, andei de gosto. 

Já contei -- não contei? -- que, para mim, podar árvores é como aparar cabelo, coisa que, com a minha veia de cabeleireira frustrada, estou sempre pronta para passar à prática.

E é isto. Nada mais a declarar. Pouca televisão, poucas notícias, tentando não falar do que me atormenta, tentando não ir espreitar os mails, tentando preparar-me para ir dormir. Férias. In heaven.

Antes de me ir, partilho apenas o que tenho estado a ouvir. A voz da Bethânia pega bem nas palavras do Nandinho.

"Meu coração não aprendeu nada" 

| Fernando Pessoa | Maria Bethânia


------------------------------------------------------
Um dia feliz (na medida do possível, claro)
Esperança. Força. Saúde. Paz.

domingo, janeiro 10, 2021

Tudo é verdade e caminho
pelo que
don't worry, about a thing 'cause every little thing, gonna be all right

 


Tem estado muito frio. Quando fomos caminhar, estava cortante, A temperatura percepcionada era substancialmente inferior à temperatura real. Levei o meu chapéu de feltro, a minha gola polar, o meu casacão fofo e quente que já conheceu muito baixas temperaturas. Não sei quantos anos terá, seguramente mais de uma dúzia de anos. Sempre que há frio a valer, ele sai à cena. 

Não nos cruzámos com quem quer que seja. Por vezes sai da chaminé um odor a lareira. Alguns cães dão sinal à nossa passagem. Tal como nós já o fizemos, já praticamente não há enfeites de natal. No entanto, reparo que aqui, no móvel onde estão fotografias e máquinas fotográficas, ficou esquecido um pequeno pai-natal sentado. A ver se amanhã o arrumo. O natal já passou e, como se sabe, deixou um número absurdo de contágios e os hospitais à beira do estado de catástrofe, com os médicos a terem que decidir quem vai poder ser salvo. Assim é o mundo em que vivemos.

No telejornal da RTP 1, João Gouveia, médico intensivista, exemplar na contenção, falou no que poderão fazer para ampliar a capacidade hospitalar (por exemplo, ocupar os blocos operatórios ou as salas de recobro -- o que obviamente significa que muitas cirurgias não serão feitas durante esse período) mas que, a menos que haja uma quebra acentuada do número diário de novos infectados, o limite pode ser atingido a meio da semana que aí vem, com a necessidade dos médicos terem que escolher quem tem mais probabilidades de sobreviver. 

A seguir houve os debates e, a seguir, meio mundo avançou para os televisivos comentaderos botando douta faladura: se quem ganhou foi este ou aquele, se a Marisa, se o Tino, se a Ana Gomes, se o Ventura. se Marcelo, se João Ferreira, se um ganhou e o outro perdeu ou se perderam os outros, cada um dando seu palpite. Conversas gastas sobre conversas equívocas. Aparentemente grande parte dos candidatos não sabe quais as funções do cargo para o qual estão a candidatar-se. E cada um prepara-se tentando apanhar o outro na curva, apontando-lhe contradições. Tudo tretas. Imagine-se o que são horas de televisão em que pessoas que já andamos a ouvir há mil anos ocupam o espaço para nos enfadarem com comentários escusados, inúteis.

Sobre a situação de dentro de dias os médicos já terem que optar entre quem 'merece' ser auxiliado a viver e qual deve ser deixado à sua sorte é tema que passa ao lado de quem traça a agenda das televisões. Mas quase ninguém já vê televisões: meio mundo se entretém com as netflixes ou com os facebooks, instagrams e tretas desta vida.

Já se sabe que pessoas de Lisboa já estão a ser transportadas para outros hospitais. Também me faz impressão. Bem sei que as pessoas não podem ter visitas mas faz-me muita impressão saber que estão sozinhas e, ainda por cima, longe de casa, longe da família. 

Em menos de um ano de existência deste vírus em Portugal já aqui foram infectados quase meio milhão de pessoas e já morreram 7.700. E os números grandes relativos à óbitos, nas redondezas dos cem por dia, só agora é que começaram a apertar. Dizia João Gouveia: 'Significa que, quando atingirmos o ponto em que temos que fazer gestão de catástrofe, vão morrer mais pessoas'. Percebo: as que, apesar de todos os esforços, não resistem e aquelas que se decidiu que não valem o esforço. E escrevo isto com a mesma contenção com que ele o disse. Admito que os hospitais militares, os privados e tudo a que se pode deitar a mão já esteja mobilizado. À pergunta sobre o que mais falta, ele respondeu que os recursos humanos, em primeiro lugar, enfermeiros. Não se inventam enfermeiros. Qualquer país está dimensionado para uma situação normal, não para uma situação de pandemia. 

Entretanto, ainda não estou completamente bem. Parei com a medicação, já estava no limite do que é possível. Junto ao pescoço e às omoplatas tenho os músculos doridos. E continuo com muito sono. No entanto, durante a tarde não adormeci, estive a ler, a espreitar a televisão, a ver se conseguia dormir. A preguiçar. São dias muito frágeis, sem história.

Ontem ao fim do dia fomos a um sítio onde vendem vasos. Queria uma floreira rectangular, de pedra. Havia lá mas era tão pesada que os dois mal a conseguíamos mexer. Disseram-nos que a transportariam até ao carro. Mas e tirá-la do carro e levá-la até ao sítio...? Vi, então, um vaso de terracota escura, com um aspecto artesanal. Pensei que, se calhar, era caro. A funcionária andou de volta dele e não descobriu o preço. Colocou-o numa plataforma com rodas e levou-a à patroa. Veio de lá a dizer-me que custava vinte e cinco mas que a patroa fazia 50% de desconto. Claro que trouxe. 

E hoje estivemos a transplantar a bromelia. Está sob um telheiro. Terá muita luz mas não luz directa e, estando junto a outra, ficará relativamente abrigada. A ver se se dá bem. Fotografei-a depois da operação, antes de varrer, com o chão ainda sujo de terra mas depois de regar, como se vê pela mancha no vaso..

Andei também a pôr umas pinguinhas de água em vasos que estão debaixo do outro telheiro, não apanhando chuva. Se calhar apanham a humidade da noite e talvez isso seja suficiente mas não sei e não quero que fiquem sequiosas. Também andei a apanhar tangerinas, laranjas, um limão para pôr no bacalhau cozido do almoço e uma lima para amanhã fazer um chá. E andei a fotografar. Estas fotografias.

E apenas isto. Só mais os telefonemas. A minha mãe, aborrecida porque esta porcaria da covid a impede de circular por onde queria, aborrecida com o frio. Os meus filhos que passeiam o que podem, até às treze, com os miúdos. A minha filha mandou fotografias no parque onde andava dizendo que era muito giro e que haveríamos de lá ir todos e acrescentou: 'sabe-se lá quando'. Mas não há alternativa senão os que podem hibernar, hibernarem, trabalhando a partir de casa, tentando aguentar o máximo da máquina económica em movimento.

Acredito que com as vacinas e com as temperaturas a subir e, portanto, com mais vida ao ar livre, lá mais para Maio, Junho, as coisas possam retomar alguma normalidade. A menos que surja mais alguma má novidade, penso que é isto, mais uns quatro meses e estaremos de volta a alguma normalidade. A ver é como resistiremos até lá, nós enquanto pessoas e nós enquanto sociedades. 

No outro dia ligou-me um amigo. Estivemos à conversa e, às tantas, perguntei-lhe pela mãe. 'Morreu nos últimos dias do ano'. E ficou em silêncio. Eu também. Que coisa. A quantidade de pessoas que conheço a quem, nestes últimos tempos, morreu o pai ou a mãe... 

Quero ser optimista, é da minha natureza. Mas tudo isto e o frio e este afastamento é coisa que pesa. O meu filho hoje dizia que poderíamos ir passear para a praia. Pois podíamos, e se nós gostamos de praia. Mas junta-se este meu estado físico, ainda longe da minha forma física habitual. E tanto frio. Imagino o frio que deve estar na praia. Capaz de ainda vir de lá pior, sei lá, parece que não tenho vontade, receio piorar. Estivemos lá na antevéspera do ano novo, os miúdos até andaram em tronco nu, a brincar na água. Estava-se bem. Agora não se deve conseguir estar.

Enfim. Estou para aqui nesta conversa. Não se aproveita nada. Vou andando.


__________________________________________________________

Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza

Cine Povero


Desejo-vos um belo dia de domingo

segunda-feira, novembro 30, 2020

Tudo é verdade e caminho

 


Estava de pé, no terraço, e olhava a chuva que caía copiosamente. Um silêncio só quebrado pelo som da chuva. Fui seguindo o seu cair, os regatos de água que se foram formando. Um pássaro grande saiu de dentro da copa de uma árvore e, numa corrida, foi abrigar-se numa outra. Caíram duas laranjas. A laranjeira está muito pesada. Apanhei uma das laranjas do chão e comi-a logo ali. Estava fria, sumarenta, quase doce. Emocionei-me. Esta é agora a minha casa e já tem frutos para me oferecer. 

Mais à frente, quase aparentando um pedaço de raiz à vista, um grande cogumelo, solto, tombado -- certamente pelo peso da chuva. Virei-o com o pé. Desfez-se. Rendilhado, delicado. Os cogumelos intrigam-me.

Reparei que um dos vasos que tinha uma qualquer verdura junto à terra, tem agora essa verdura toda florida. Mas são umas florzinhas que nunca antes tinha visto. Persicaria capitata. Surpreendo-me e encanto-me. Uma dádiva. Presentes que recebo quando menos espero.

Fui a casa buscar a máquina fotográfica e, quando parou de chover, fui fotografar os pingos de água escorrendo das flores. Debruço-me para cheirá-las. A água leva o seu perfume. Lava o seu perfume. Encanto-me, encanto-me. Depois fui buscar o telemóvel e fotografei flores e árvores para enviar as fotografias à minha mãe. Respondeu que é uma maravilha.

Entretanto, chegaram dois cães à casa do lado. De tarde vi o que deve ser o meu novo vizinho, sentado na varanda a fazer festas a um dos cães. Quando morava num andar não via os vizinhos. No campo também não. Para mim isto é uma novidade, parece que estou a voltar a quando era pequena, na rua todos a conhecerem-se uns aos outros.

Reparei, de novo, na iluminação de natal que puseram na varanda no primeiro dia em que para cá vieram. Nós ainda não fizemos nada. Não sou muito dada a enfeites, só tenho vontade de ter a casa com luzinhas quando vêm os meninos. Tenho umas árvores pequeninas com luzinhas amarelas que piscam-piscam e que dão uma luz acolhedora. A ver se amanhã as vou buscar à cave, pode ser que faça sentido. De qualquer forma são bonitas. Temos no sótão um baú com grandes bolas de Natal. Não sei se deveremos tentar pô-las nas árvores ou arbustos do jardim, na cameleira, por exemplo. Ou na cerejeira do japão. 

Não faço ideia de como será o natal. Por vezes tenho vontade de pensar: que se lixe o corona, quero é estar com o meu pessoalzinho, com todos, abraçá-los, ouvi-los, rir com eles. Mas depois contenho-me: não sou só eu, não é coisa apenas minha, não podemos dar-nos ao luxo de nos arriscarmos a ser mais um ou fomentarmos o contágio. Qualquer um de nós, se precisar de ser hospitalizado, pode ocupar uma cama que faça falta a outra pessoa. Há uma consciência cívica que não podemos deixar que abrande.

Também me faz impressão a minha mãe, sozinha. Agora faz todos os dias uma caminhada com uma amiga. Há dias em que tem aulas da universidade sénior. E está a fazer um casaco de tricot para a minha filha. Está entretida. E diz-me que evita sair e que não se importa de estar sozinha em casa, diz que receia expor-se ao contágio. Não quero forçá-la a nada até porque uma coisa é o verão em que podemos estar na rua e outra é agora, em que estando em casa, os riscos são maiores, especialmente estando sem máscara; e, em casa, quem é que vai estar de máscara durante todo o santo dia?

De vez em quando sinto saudades sem saber dizer, ao certo, de que é que tenho saudades. Talvez tenha saudades de algumas pessoas. Sim, tenho. Sei bem de quem. Talvez também de uma liberdade que agora não tenho. Ou dos hábitos que tinha e que abandonei. Há hábitos que não precisava de ter abandonado mas que abandonei. Por exemplo, passear à noite junto à praia. Íamos jantar e passeávamos antes ou depois. Como agora não vamos a restaurantes, deixámos de ir, à noite, passear mas isso é por comodismo, por não termos ainda conseguido crivar os hábitos possíveis dos que deixámos para trás. 

Tenho vontade de continuar a fazer reset na minha vida. Adquirir novos hábitos, retomar antigos, ir descobrir mais coisas mas não tenho disponibilidade. O trabalho prende-me e condiciona-me, Dantes, não sei como, o tempo dava-me para tudo e agora parece que não. 

Agora que falo nisto, vi no outro dia uma coisa de crochet que não me sai da cabeça, um trabalho em linha fina. Gosto de fazer crochet. Teria que ver onde aplicar mas acho que ficaria muito bonito. Mas quando terei eu tempo para fazer trabalhos de crochet em linha fina? Mas, de qualquer maneira, quando falava em adquirir novos hábitos nem era nisto que estava a pensar, era em mudança mais radical. 

Estive a ler um artigo sobre como será a vida pós pandemia. Há coisas óbvias. O coisinho-19 revirou o sistema. Por exemplo, ser piloto de avião era uma grande profissão, tinham grande poder reivindicativo, não chegavam para as encomendas. Agora é a reviravolta total: a TAP anunciou que vai despedir quinhentos. Todas as companhias aéreas enfrentam a mesma hecatombe. Aviões e aviões em terra. Não vai voltar a ser o que era. Os pilotos, assistentes de bordo, etc, são apenas algumas das profissões que estão em acentuado declínio. Há aquele exemplo das máquinas kodak, das máquinas de película. Não perceberam a tempo que a fotografia estava a tornar-se digital. Com o corona, parte do mundo parou e repensou-se, só que parece que ainda não fomos capazes de perceber como se vai sair desta. Quando houver vacina e tratamento, dificilmente se retomarão todos os hábitos do passado pois, entretanto, teremos adquirido outros. Sofrem os que dificilmente se vêem a fazer outra coisa mas a sociedade, no seu todo, irá reorganizar-se e reequilibrar-se. Surgirão novas profissões ou haverá escassez de outras. Sairão melhor deste pesadelo as pessoas que saibam fazer a leitura correcta dos factos e das necessidades que se criarão.

Mas, enfim, é tarde, nem digo que horas são da manhã. Portanto, melhor fora que dissesse que é cedo. 

Se há seres de outros planetas ou outras formas de vida que desconhecemos e que nos andam a estudar, se me localizarem, talvez fiquem sem perceber que ser é este que, no meio de um casario adormecido, se mantém acordado, sozinho, apenas uma pequena luz sobre as suas mãos, dando mostras de gostar de estar aqui, noite adentro, noite após noite, escrevendo como se não houvesse amanhã. 

E será que há amanhã? Quem o sabe?

(E que interessa isso, se há ou se não há amanhã? Que diferença faz isso para quem parte, depois de ter partido? E para quê perder tempo a tentar adivinhar sobre que face cai o dado que um qualquer deus atira só por desfastio? É viver e fazer o que nos faz feliz enquanto se pode. Convém é, já agora, saber o que nos faz feliz para não andar a deixar passar a felicidade ao lado, só porque não a soubemos identificar) 

______________________________


Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza

(de onde extraí o título deste post)

[De novo, pela mão do Cine Povero]

____________________________

Fotografias cá de casa na companhia de Agnes Obel com "Mary"

_________________________________________________________

E queiram continuar a descer caso vos apeteça ler cartas de Agustina à mãe

_________________________________________________________

Desejo-vos uma boa segunda-feira com saúde, amor e beleza nas vossas vidas.

domingo, novembro 29, 2020

Acidentes, regressos e manuscritos de Felipa
[Ah...se eu pudesse trincar a terra toda]

 



Não há muito a dizer. O jardim está verde e florido e a chuva torna-o ainda mais viçoso. Mas a partir do princípio da tarde começou a chover, choveu, choveu, e escureceu de tal maneira que, para ler, só de luz acesa. 

Tenho um hábito: quando me levanto, dou a volta à casa, levanto os estores e vou pondo as janelas na posição basculante. Gosto que entre ar fresco. E, geralmente, gosto que fiquem assim todo o dia. O meu marido agora não concorda, diz que está frio demais para tanto ar fresco, diz que arrefece a casa. Por isso, geralmente, quando me apanha distraída, vai fechar as janelas. Se acordo a meio da noite vou, sorrateiramente, abrir a janela do quarto, gosto de sentir o ar fresco da noite. Se ele dá por isso, passa-se, diz que sou maluca. Mas gosto tanto.

De manhã não choveu. Fomos fazer uma caminhada. Mais de uma hora a bom passo. Uma caminhada bem mais longa do que o costume. Vamos conversando. Às tantas disse ao meu marido que ele sobretudo ouve e responde ao que pergunto. Ele respondeu: 'e não é preciso mais'. Ri-me. Sempre assim foi. Raramente é ele que puxa assunto. Ou tem assuntos de trabalho que o preocupam ou ouviu alguma notícia que achou relevante ou, então, alinha na minha conversa. E assim, nesta conversa solta, nem se dá pelo tempo a passar. 

Este domingo, que parece que vai chover todo o dia, não sei como vamos fazer. Já andámos muitas vezes com chapéu de chuva mas é uma maçada, em especial quando a chuva é forte ou faz vento. Mas ficar sem caminhar é que não.

Tinha ideia de ir fazer umas arrumações mas deu-me uma total preguiça. Estive a ler. Fui fazer a monda aos livros que trouxe no outro dia a ver os que tinham vindo para mim. E estive a ler parte de cada um. Enquanto lia, ia tentando descortinar quais as partículas elementares que ali se encontravam e que não encontro noutros autores. 

Mas não foi pacífico, devo confessar. Pensei que ia ficar rendida mas estou vacilante. Por exemplo, estranhei a linguagem deste Acidentes. Parece que lhe falta ali o sopro de deus. 

E, lá está, quem sou eu para falar em deus? A última pessoa a poder fazê-lo. Mas é o que penso: nos poemas que me parece conterem verdadeira poesia eu acredito que há ali mais do que apenas a inspiração ou a técnica do poeta, há uma qualquer transcendência, a mesma que encontro numa flor perfeita, numa música improvavelmente bela, numa pintura que sobrepõe sentimentos e luzes e sombras e inexistências. Penso: é um sopro divino. Um deus que reina sobre os acasos e se diverte a deixar que uns afoguem algumas coisas e outros elevem as coisas a um patamar tal que quem se apercebe deles tem vontade de se ajoelhar. Mais do que um patamar, um altar. 

O da Mónica Baldaque já cá estava em casa e o do Harari não é dos meus

Mas é isso: ainda não li tudo e talvez não com a devida concentração. Mas, do que li, sinto que há ali palavras destituídas de música ou de luz ou de não sei o quê. Tenho ideia que há palavras que não têm cabimento no reino dos céus que é o reino onde habita a poesia.

Da Adélia Prado parece que também não estou a encontrar nestas páginas a dose habitual de desalinho e a irreverência que nela tanto me cativam. Mas, de qualquer maneira, estou a gostar. Há sempre ali uma graça, um drible, um sorriso escondido por detrás da palavra. Para gostar de um livro tenho que sentir a inteligência mas sem exibicionismo, tenho que sentir o conhecimento profundo da natureza humana mas um conhecimento sem pergaminhos. Não sei explicar.

Do primo, ainda apenas espreitei. E ali encontrei a elegância do costume, a fluidez, o espírito. Lerei depois. Por enquanto, contento-me em folhear, apanhar fragmentos, deixar-me ir pela mão. Depois saltar, ler outro bocado. Há ali aquele saber escrever antigo, aquela prosa bem costurada, aquele saber contar. Não há futilidade, superficialismo. Há o prazer de escrever e partilhar ideias ou conhecimentos.

Ao início da noite fiz encomendas online e falei ao telefone. Antes fui para debaixo do telheiro ver a chuva e fotografar. Também fotografei os livros e algumas coisas em volta. E respondi aos comentários atrasados e descansei. Não é fácil ocupar o tempo quando se está habituado a não o ter. Inconscientemente parece que me sinto ociosa. Dou por mim a pensar se tenho alguma coisa atrasada para fazer, como se não me fosse concedido o direito a estar sem nada que fazer. Geralmente, ou tínhamos a família cá em casa ou íamos visitar a família, ou íamos encontrar-nos com alguém a algum lado ou íamos para o campo onde há sempre mil coisas para fazer ou íamos às compras ou qualquer outra coisa. Agora aqui em casa, num dia de chuva, sem se poder sair, parece que fica aquela sensação estranha de não saber bem o que fazer com o tempo. Mas foi bom, então não...?



___________________________________

E, de repente, ocorreu-me que há muito tempo aqui não tinha o Cine Povero, bateu a saudade. 

E cá está: vem com Alberto Caeiro na voz de Pedro Lamares


________________________________

E desejo-lhe, a si muito em especial, um bom domingo.
Descubra o que lhe traria felicidade e procure-o. 
Geralmente não é nada de transcendente, está certamente ao seu alcance.
Be happy

segunda-feira, maio 06, 2019

Balanço de um sarau em que alguns dos ginastas primaram pelas cambalhotas trapalhonas.
Fails, fails e mais fails
[E um breve apontamento sobre sindicalismo]


Estive no campo mas vim cedo para a cidade para preparar a janta já que a casa se ia encher e viriam cedo. Não tem a ver com ser da Dia da Mãe. Há coisas que não são de uns dias, são de uma vida. E vieram e a mesa esteve cheia e, como sempre, rimo-nos e houve jogos e cantoria. E, portanto, foi mais do que bom -- e a desarrumação foi também a condizer com a animação. E é mesmo assim, impossível controlar a energia de cinco crianças juntas (e de uns quantos adultos bem dispostos e a alinharem na brincadeira).

Estava eu a na cozinha, atarefada, quando o Rio apareceu a espadeirar à esquerda e à direita, à frente e retroactivamente, matando tudo o que era mosca e mosquito que lhe aparecesse no raio de meio metro. E foi isto que eu vi. E se ali não havia moscas e mosquitos, então não se passou nada, só mesmo o acto de espadeirar em seco. Só se for a cambalhota final da qual caíu fatalmente mal.

Além disso, no meio da afobação, mostrou o desatino que lhe vai na cabeça -- ele, tal como a madame Cristas, zanzando em volta do próprio rabo, dizendo que só pagam aos professores quando houver dinheiro --
- e toureando as outras classes profissionais, os pensionistas e contribuintes também vítimas da crise mais os que ficaram desempregados ou emigraram (que, pelos vistos, por eles, ficariam a chuchar no dedo) e sem explicarem que, se um dia, no tempo de São Nunca, houver dinheiro para isto tudo e pagarem e, no ano seguinte, perceberem que isso arruína as contas públicas... tiram outra vez tudo... 
E, aos saltinhos sobre a sua própria auto-importância, gabando-se não se sabe bem de quê e, de seguida, dando o dito por não dito, acabou a faena na maior deselegância e despropósito, mostrando o seu amargo mau perder, trazendo à liça as pessoas que morreram nos incêndios e os que morreram na estrada desprotegida, no maior desrespeito por quem morreu, ficou ferido ou por quem perdeu os seus entes queridos. Uma vergonha desagradável de presenciar.

Os portugueses ficaram, portanto, a saber que Rui Rio não apenas não sabe liderar o partido, não sabe ser coerente, não sabe conjugar o curto com o médio e o longo prazo, não é inteligente nem simpático, como nem sequer sabe ser bem educado e respeitador. 

Terminou dizendo que vai incluir no programa eleitoral do PSD isto de devolver tudo aos professores. Mais uma piadinha. Como se não estivesse careca de saber que não tarda já está com um par de patins e que, na próxima legislatura, não apenas não estará no governo como não estará no PSD. A dúvida, entre as hostes laranjas, é saber quando. Quando lhe põem o par de patins. 

Quanto à Cristas, mostrou que não apenas é uma peixeirona, uma troca-tintas, uma criatura que faz tudo e o seu contrário e, se necessário for, vende a alma ao diabo, juntando-se à direira mais extremada e mais populista e agora, também, à CGTP, ao BE e ao PCP, na ânsia de conseguir agradar não se sabe bem a quem como, depois, nem sabe disfarçar que é uma maria-tonta. É que, como se viu, quando a coisa sai furada, volta atrás, dá o dito por não dito, dá uma cambalhota trapalhona, estatela-se ao comprido e, a seguir, levanta-se a culpar os outros, aponta o dedo a quem vai no outro lado da rua, ao passarinho que canta em cima da árvore, ao que calhar. E assim, para desconsolo e enfurecimento dos centristas, vai desgraçando o CDS.

E nem vou falar de quão patético me soou o apelo de Catarina Martins a pedir a Costas que não se zangue, que continue a dar-lhe a mão, que a deixe continuar a brincar às geringonças. Claro que Costa vai continuar a ter paciência para as atitudes irreflectidas dela e do BE em geral, algumas a raiar a deslealdade. Mas há coisas que deixam algumas marcas. Mesmo pessoas com a pele dura e optimistas a toda a prova, como é o Costa, sentem quando um espinho se espeta no pé. Contudo, acredito que o Costa ache que é bom que haja um partido que acomode a esquerda sonhadora, romântica, saudosa de causas minoritárias e nobres. E, portanto, o Louçã há-de continuar a orientar a Catarina e a Catarina há-de continuar a andar por aí, bem intencionada, narizinho arrebitado, a agitar o punho e bandeiras coloridas. E tudo bem. 

Apesar de tudo, o PCP é mais reliable. Podem ser muito datados, muito agarrados a um proletariado e funcionalismo público que já é apenas uma pálida ideia do que é a classe trabalhadora da actualidade, podem ser um bocado casmurros, gente casca dura com um discurso muito já-era. Mas são gente de palavra, gente séria. Lá isso é verdade. Como parceiros de caminhada, antes gente assim, a atirar para o bota-de-elástico, do que gente que volta e meia tem fricotes, que vem com causas pseudo-fracturantes no meio de assunto sério e depois sobe ao palco a desfraldar bandeiras que nem se percebe bem a que propósito aquilo vem. Além disso, não há partido com homens mais giraços do que o PCP. Cada um mais sexy que o outro. E esta malta nova tem um discuro bem articulado, é gente serena para quem dá gosto olhar. O João Ferreira, então, faz favor: é mesmo um caso sério. 

E assim sendo, agora que a crise acabou e que já está mais claro com quem é que se pode contar, resta saber o seguinte:

1º - Quando é que os professores vão arranjar um representante sindical que lhes permita aparecer de cara lavada, que lhes permita limpar a má imagem que este Nogueira tem andado a espalhar junto da população. Os professores merecem mais e melhor -- e que seja rápido, se faz favor. 

2º - Quando é que o nosso Prof. Marcelo, por quem tanta gente anseia que se pronuncie, virá louvar a democracia portuguesa, madura de dar gosto, feita de gente que sabe dar cambalhotas e flic-flacs, andar de gatas, fazer o pino num só dedo, e tudo a bem do povo português. E que todos temos razão para festejar. Hip-hip-urra, efe-erre-á. Á. 

----------------------------------------------

E, portanto, agora que a crise está morta e quase enterrada, passo ao ponto do Sindicalismo. 

Começo, contudo, por um ponto prévio. Acho que devo andar com dificuldades de expressão pois ao criticar o que considero ser um mau sindicalismo há quem perceba que sou contra o sindicalismo. Isto deixa-me preocupada pois esforço-me por ser clara e, pelos vistos, não o sou.

Vou, então, tentar que não subsistam dúvidas: sou totalmente a favor de movimentos que representem os trabalhadores. Podem ser sindicatos, podem ser comissões de trabalhadores. Totalmente a favor.

Mas não me revejo nem nas causas nem na forma de agir destes sindicatos que conheço. São movimentos que, nuns casos, são correias de transmissão da linha mais ortodoxa e antiquada dos partidos aos quais estão ligados e, noutros, são movimentos corporativistas.

Os sindicatos que conheço pouco acrescentam. De vez em quando armam um banzé para convencerem os filiados que, se não fossem eles, os dirigentes sindicais, estariam perdidos. E vão para as negociações, focados em aspectos marginais, em relação aos quais pedem o dobro daquilo que acham razoável. E quem, do outro lado, vai negociar com eles, oferece metade do que está disposto a dar pois sabem que isso é importante para os dirigentes sindicais, para que possam exibir a vitória que conseguiram. Conheço bem tudo isto. Uma coreografia que não passa disto. Uma indigência.


Eu sei que que há quem, trabalhando todo o dia, chegue ao fim do mês com uma miséria. Sei tudo isso e muito mais.

Sei também da multidão que trabalha para empresas de trabalho temporário onde os ordenados são uma vergonha e as condições miseráveis. Sem ninguém que os represente.

Sei da multidão que trabalha em falsas empresas de prestação de serviço que mais não são do que empresas de mão de obra encapotada. Sem ninguém que os represente.

Sei de empresas de call center onde os empregados são em grande parte jovens licenciados que fazem um trabalho desgastante, com ordenados e horários do pior que há. Sem ninguém que os represente.

Sei de jovens investigadores sem segurança quanto ao seu futuro e sem condições que os motivem e segurem. Sem ninguém que os represente.

Sei de trabalhadores que trabalham sob uma pressão permanente, em turnos, muitas vezes integrados em equipas variáveis  com quem têm pouco em comum excepto o medo de perder o emprego. Sem ninguém que os represente.

Etc.

E sei dos problemas dos trabalhadores (problemas esses que vão muito além do que os 1% ou 2% de aumento de ordenado, no qual os sindicatos se focam):

  • o tempo que gastam em transportes, em especial nas grandes cidades; 
  • o dinheiro que gastam com creches ou ATL's para os filhos e as dificuldades que enfrentam para chegarem a horas; 
  • a angústia quando têm filhos doentes que precisam de ajuda, ou pais velhos e dependentes, e não podem ficar em casa a menos que metam férias ou tenham faltas que cortarão os ordenados no fim do mês; 
  • como, por mil razões, andam cansados para acomodarem a vida profissional e a vida familiar. 
  • A desmotivação por fazem trabalhos aquém da sua formação e das suas capacidades. 
  • A incerteza e precariedade que os impede de serem independentes e formar família. 
  • A dificuldade para os mais velhos em manterem-se em empresas que os olham como velhos apesar de não terem idade para se reformarem. 
  • A dificuldade dos que não suportam sentirem-se desmotivados ou indesejados e arriscam o desemprego ou uma reforma antecipada com cortes muito penalizantes. 

Etc.

E sei como estão prestes a mudar grande parte dos postos de trabalho. A transformação digital, as comunicações 5G e tudo o que já aí está a rebentar vão mudar drasticamente o mundo do trabalho. E sei que grande parte das pessoas vai ter que se reconverter profissionalmente e sei que grande parte das empresas não está a preparar-se convenientemente para isso.


E falo em empresas, que é a realidade que conheço melhor, mas a mesma coisa presumo que se diga em relação à administração pública.

E sei também como as empresas e os organismos de estado e outras instituições têm tantas vezes nas suas equipas de gestão pessoas completamente insensíveis em relação a tudo isto -- e não têm ninguém que represente os trabalhadores.

Gasta-se, por vezes, tanto dinheiro em projectos inúteis quando há tanto que fazer para aumentar a produtividade, conseguindo, em simultâneo, satisfazer as necessidades prementes dos trabalhadores e aumentar a sua qualidade de vida.

Portanto, acredito plenamente na necessidade de haver quem represente convenientemente os trabalhadores -- sob pena de a coisa se descontrolar. Sejam sindicatos, sejam comissões de trabalho. São vitais e deveriam ter uma representação forte junto das comissões directivas, representando com inteligência os trabalhadores (não partidos políticos, não causas escusas).

Os movimentos inorgânicos como o dos coletes amarelos ou os pseudo-sindicatos, que mais parecem agências -- onde dá ideia que os sindicatos ganham à comissão -- e onde em vez de beneficiarem os trabalhadores, apenas os desgraçam ao mesmo tempo que minam a democracia, aparecerão cada vez se o enorme vazio que referi assim se mantiver: vazio.

A não ser capaz de se reinventar, o sindicalismo definhará e poderão avizinhar-se tempos sombrios para os trabalhadores.


___________________________________________________________

E um pouco de poesia para cortar a aridez da conversa


__________________________________________

Lamento não conseguir responder aos comentários -- e tantos e tão interessantes que são e que bela conversa se poderia ter. Mas passa das duas da manhã e daqui a nada tenho que estar a pé. Alonguei-me demais na escrita. So sorry.

______________________________________________________________

Desejo-vos uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
Saúde, alegria, sorte e tudo o mais que vos venha de feição.

terça-feira, maio 01, 2018

Diferentes e sozinhos, sob o chasco e o insulto da canalha
+
O discurso do Grande Ditador






Assim, muitas vezes, o que nos parece a loucura dos outros não é mais que a nossa própria incompreensão. 

Como sabem os estudantes, como sabe quem quer que seja, se o orgulho desmedido do dr. Raul Leal não é ilegítimo hoje só para ter sido sempre legítimo amanhã? Acham excessivo, mesmo como doença , o aspecto desse orgulho? Acham sofística a demonstração de que não é louco quem diz que quer fundar uma nova religião, "o terceiro reino divino"?

Por muitos que sejam os sintomas de desequilíbrio que uma psiquiatria justa possa encontrar no dr. Raul Leal, não são tantos quantos os sintomas de loucura, de degeneração, de perversão intelectual e moral que um psiquitra eminente, o dr. Binet-Sanglé, encontrou na pessoa de Jesus Cristo, o qual, contudo, fundou uma religião, como mesmo os estudantes de Lisboa devem saber.

Os três volumes intitulados La folie de Jesus constituem, sem dúvida, um exemplo de probidade clínica e de exposição psiquiátrica. Neles podem os estudantes aprender, lendo, como se demonstra um caso de loucura. Fechados eles, porém, podem aprender, reflectindo, que é a loucura que dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam.

----------------------------------------------------

O grande ditador

Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade!


.................................................................................................................................................

O texto lá em cima bem como a primeira parte do título deste post são excertos de "Sobre um manifesto de estudantes" de Fernando Pessoa

O vídeo acima mostra um excerto do filme 'O grande ditador' de e com Charlie Chaplin

================================================================

As anedotas e o apelo a sério vêm já a seguir

...........................................................................................................................................

sexta-feira, março 09, 2018

Algumas mulheres:
ladras, doridas, muito bonitas, sem maquilhagem, com mais de 100 anos, diseurs de poesia e capazes de tudo por amor


Tenho conhecido tantas mulheres, tantas com vidas complexas, que poderia ter um blog só a falar delas.

Estou a lembrar-me de uma que conheci de perto, durante anos e anos. Trabalhava na mesma empresa que eu. Era exemplar, a Luisinha. Nunca nada ali falhava. Não protestava com nada. Sempre com um sorriso nos lábios, despachava trabalho a um ritmo impressionante, como uma máquina. Lembro-me de uma vez ter dito ela ao meu colega, chefe dela: 'É uma máquina, ela'. Ele sorriu e disse: 'Um avião'. Tinha um rosto engraçado, usava o cabelo muito curto, pintado de louro platinado. Não sendo uma miúda, longe disso (um dia soube que tinha um filho já na universidade o que me deixou perplexa), era  alta e esguia e de tal forma que, com o maior dos à-vontades, vestia mini-saias ou jeans justíssimos, tops transparentes e decotados. Numa outra qualquer o que ela vestia torná-la-ia escandalosa. Mas nela aquilo não gerava escândalo. Mas gerava espanto. No entanto, por algum motivo que nunca percebi muito bem, não era sexy. Acho que lhe faltava aquela malícia e apelo de sedução que torna as mulheres atraentes. 

Um dia, pouco tempo de eu ter mudado de empresa, encontrei um ex-colega que me pôs ao corrente das novidades: a Luisinha tinha sido despedida. Fiquei sem conseguir acreditar. Ele disse-me que toda a gente reagiu assim: ninguém conseguia acreditar. Explicou-me. Tinha desviado bastante dinheiro. Eu estava atónita. Nunca, na vida, poderia imaginar tal coisa. Era uma pessoa do mais sério possível. Numa empresa sujeita a sistemáticas auditorias, nunca nada ali se afastou um milímetro dos procedimentos estipulados. Contou-me ele. 'Coitada. Tinha o marido desempregado. Queria que não faltasse nada em casa, sobretudo ao filho que ela queria que vivesse uma vida confortável'. 

Até hoje não me esqueci disto. Anos a ser uma profissional séria e exemplar e acabar assim, despedida por roubo. Imagino o vexame pelo qual passou. E imagino o sofrimento dela a querer manter o nível de vida anterior, com o marido desempregado. Situações impensáveis.

Também me lembro da mulher que um dia, no jardinzinho onde eu estacionava o carro ao fim do dia, veio ter comigo e, do nada, me disse que lhe tinha morrido o filho com quem vivia e que não conseguia ir para casa. Eu conhecia de vista o filho. Andava às vezes a passear com a mãe. Teria ele uns trinta e muitos ou quarenta e tinha um ar um bocado estranho. O meu marido dizia que ele devia ser drogado. Não sei se era. Trazia geralmente uma boa máquina fotográfica e por ali andava a fazer fotografias na companhia da mãe. Perguntei-lhe se ele estava doente. Ela disse-me que sim, que estava no hospital mas que ela não tinha percebido que fosse grave e que nunca lhe tinha passado pela cabeça que ele pudesse morrer. Chorava, com a voz presa. A amargura dela era contagiosa. Disse-me que ia todos os dias ao cemitério e que andava pela rua porque não conseguia ir para casa. Já passaram alguns anos. Via-a todos os dias. Depois daquele período em que a via sentada, de luto, ausente, aos poucos foi parecendo retomar a normalidade. Depois deixei de vê-la. Há muito tempo que não a vejo. 

Enfim. Não vou continuar no tema. São tantas as mulheres que tenho conhecido que tenho dificuldade em encontrar um fio condutor para escolher uma ou outra para aqui as juntar.

Muitas não são perfeitas. Aliás, quase nenhumas são perfeitas. Mulheres de verdade não são perfeitas. Mas cada uma tem a sua história e todas as histórias de vida são especiais.

Está a acabar o dia 8, o dia da Mulher e dia que cada um comemora como quer. Há pouco, ao fazer uma caminhado nocturna fui surpreendida com magotes e magotes de mulheres, todas numa animação festiva, a entrarem para um restaurante. Penso que se sentiriam esfusiantemente livres. Mas, para estarem naquela animação, se calhar é porque nos outros dias não se sentem livres.

À hora de almoço, num centro comercial, vi uma longa e ruidosa fila de mulheres que, desde o corredor, entrava para uma loja. Vi pelo cartaz que estavam a oferecer uma loção corporal. 

Na caixa do correio tinha um mail que me enterneceu, com bouquets de violetas. E tinha um outro, transcrevendo um artigo do The Guardian, falando de Hedy Lamarr. Ontem tinha recebido um outro com um vídeo sobre a Ethel Kennedy, dizendo: A Ethel tinha a dose de loucura certa e uma forma de estar.... Isto para lhe dizer que, por vezes, ao ver videos deles comparo a Ethel consigo.

E eu, escrevendo isto, penso nas histórias de algumas Leitoras, tantas vezes tão tocantes, que tenho sabido por elas. Gostava de também aqui poder contar as vidas difíceis, insuportáveis, de algumas delas. Ou vidas intensas, quase demasiado intensas. Obviamente não conto. Do que sei guardo absoluto segredo. A menos que alguma me autorize, jamais divulgarei uma palavra que seja. Mas, no silêncio do segredo que guardo, penso muito em tudo o que vou conhecendo.

A vida das mulheres é tão multifacetada, tão cheia de zonas de sombra e de segredos, tão cheia de inesperados momentos, tão cheia de sonho, de saudades, de incertezas, de angústias...

Se as mulheres de todo o mundo dessem as mãos pintariam o mundo com a magia que transportam nos seus corações, envolveriam o mundo com o amor que transborda das suas mãos, iluminariam o mundo com a luz que brilha no seu olhar. Amparar-se-iam, cantariam, fariam crescer flores e frutos da terra árida, caminhariam sobre os rios, voariam sobre as montanhas.


.......................

Alguns vídeos ao acaso

Sobre mulheres ditas sobreviventes (e outras)



Mulheres sem maquilhagem


Como sentir-se bela, segundo mulheres com mais de 100 anos


A mulher que dizia poemas


E tu? o que farias tu por amor?


.........................

Vivam as mulheres.

...................................................

Com excepção da fotografia da Charlize Theron, as restantes são da autoria de Henri Cartier-Bresson

......................................

sexta-feira, dezembro 01, 2017

Se eu morrer novo

Cedo demais, Zé Pedro
____________________________________________

(...)
Se eu morrer muito novo, oiçam isto: 
Nunca fui senão uma criança que brincava. 
Fui gentio como o sol e a água, 
De uma religião universal que só os homens não têm. 
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma, 
Nem procurei achar nada, 
Nem achei que houvesse mais explicação 
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum. 
(...)


............................

Poema Se eu morrer novo de Alberto Caeiro em mais um vídeo do Cine Povero.


.................................

Um bom feriado a todos quantos por aqui passam.

..................................................

segunda-feira, novembro 27, 2017

Bordalo II, uma fadista e um Sto. António, uma musa pouco estimada, gaivotas e árvores, casas e barcos.
Lisboa, a bela, num dia de Outono






Caminhar. Descobrir. Rever como se nunca tivesse visto. Espreitar pela lente. O prazer da primeira vez.

Alfama, vielas, becos, escadinhas, arcos, varandas e varandinhas, vasos, piropos, roupa estendida -- e muitas casas reabilitadas.

Grandes armazéns e velhos prédios estão agora a ser restaurados, com bons materiais e bom gosto. Um hotel privado. Janelas de pedra, cortinas, gatos. Recantos que vêm de outros tempos.


Foi, pois, dia de passeio pela cidade. Eu turista, visitante de primeira viagem, sempre encantada, sempre à descoberta. Lisboa, a bela, tão visitada, tão cosmopolita e, no entanto, tão acolhedora, gente de todas as nacionalidades, raças, idades. Uns vestidos de invernia, outros de verão. Casacos, agasalhos. Calções, cavas.

E eu à procura de graffitis, de recantos, de gentes. Espreito as paredes, detenho-me, fotografo.


Na 24 de Julho, um fantástico novo trabalho do Bordalo II. Restos, lixos. O prédio abandonado ganha uma nova vida.

E os largos com árvores tingidas de Outono. Lindas, lindas. Fosse eu capaz de transformar emoções em palavras e haveria agora de estar aqui imaginando romances vividos em casas com vista para o arvoredo. Fosse eu dotada de capacidade de síntese e de musicar ideias e haveria de estar aqui a escrever poemas que soubessem transportar os cheiros da cidade, as cores e os sons e as saudades de todos quantos por aqui, ao longo dos tempos, se sentaram nas esplanadas e escreveram postais aos amados que ficaram noutras paragens.


O novo espaço do Campo das Cebolas quase pronto, uma engenhosa e bela solução que eleva o piso, cria uma nova zona de lazer ampla e luminosa com vista para o casario e para o rio. Um dos espaços mais inesperados da capital, que, certamente, irá trazer ainda mais pessoas para dentro da cidade e para bem próximo do Tejo.


Esta Lisboa que eu amo cada vez mais estimada, mais inteligentemente aproveitada. O novo e o velho, o luminoso e o escuro, o amplo e o esconso. Os azulejos gastos e os novos, os candeeirinhos, as escadinhas.

Há uma arquitectura muito própria que acompanha a orografia da cidade e há uma clarividência extraordinária de quem sabe inventar espaços novos que convivem com os antigos.


E os desenhos, os cartazes, o humor, a graça, o grito, o queixume, a rebeldia, a melancolia. O jeito lisboeta de ser onde a truculência se mescla com a nostalgia, o humor com a poesia, a exuberância da cor com a lágrima sentida.




E, depois, almoço no cantonês, caminhada à beira rio, o frescor do ventinho trazendo a maresia da baixa mar, as gaivotas, as muitas gentes, as muitas línguas.




E, de novo na avenida ribeirinha, o novo terminal de cruzeiros. Ao lado, um paquete enorme por onde entravam os viajantes. As árvores ainda são novas, os acabamentos ainda faltam mas já se percebe ali um outro espaço de modernidade. Não deu para andar por lá a cirandar, apenas o vimos do lado de cá. Um dia destes aproximar-me-ei pois ficámos em dúvida sobre se parte do edifício está ou não sobre a água.


E o Terreiro do Paço e o Cais das Colunas, lugar sempre tão tranquilo apesar da quantidade de gente que por ali anda. O símbolo da abertura portuguesa ao mundo. 


Quando voltámos a casa já a tarde se estava a pôr, já Lisboa anoitecia. Uma suave e serena tarde de Outono.

Era bom que chovesse mas não chove. Se chovesse não teria podido andar a palmilhar o ruedo e as avenidas da cidade, fotografando como se nunca tivesse visto a cidade que diariamente percorro. Mas era tão bom que viesse a chuva.

.................................................................................................................

Álvaro de Campos e Alberto Caeiro 

Lisboa e o Tejo




..................................................................