Mostrar mensagens com a etiqueta Rafael Silveira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rafael Silveira. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, março 05, 2019

Um dia muito bom
(para quem aprecia o género, claro)




Está a dar o Lolita do Kubrick na 2. A sala está quentinha. A lenha arde na salamandra e deixa um perfume bom. Está-se bem.

O meu dia de férias, que veio no seguimento do fim de semana, foi supimpa. Serrei ramos de azinheira, uma madeira rija que só visto. Às vezes, a meio, tenho que parar, respirar fundo, descansar, pois parece que me faltam as forças. Em comentário ao post anterior, Leitor simpático fez uma pergunta muito oportuna: porque não compramos uma serra eléctrica? Pois, tem razão. Já temos, sim senhor. Mas, por motivo que me transcende, solta-se-lhe a corrente. Já a pusemos vezes sem conta. Deve ser problema nosso, falta de jeito. Mas também não estou a ver se, para este fim, seria uma boa solução. É que, ainda assim, aquilo é pesado. Estar a subir muros ou rocha para chegar lá acima e com uma serra eléctrica nas mãos não sei se seria grande ideia. Numa escada, então, nem pensar. Aliás, não me afoito a ir para a escada, dá-me medo de cair. O que resulta comigo é o serrote que o meu filho ofereceu ao pai pelo Natal, um serrote com um cabo gigante.  Ao princípio não me ajeitava, mas agora sim, já aprendi a dirigir a força. Vamos ter que arranjar maneira de pôr a serra a trabalhar é para serrar os troncos grandes em troncos pequenos para caberem na lareira ou na salamandra, à mão será impensável.


Também apanhei folhas, bolotas e restinhos de tudo o que há misturados com terra. Carrinhos e carrinhos de mão cheios. Um amigo falou-me num aspirador que é uma maravilha para isto. Depois, um dia, enviou-me uma sms a dizer que estava em promoção no Leroy. O meu marido achava que, para o fim em vista, aquilo era uma treta, que não ia servir para nada; mas, como geralmente quem varre sou eu, acabou por me fazer a vontade. Mas, na verdade, tenho que confessar, ele estava certo: aquilo revelou ser um fiasco. Se calhar é bom para coisinha ligeira e miúda, folhinha cosmopolita em jardim de cidade. Aqui entupiu vezes sem conta. As folhas de nespereira, as folhas de plátano, a folhagem húmida pela chuvinha da noite, tudo se compacta a meio do tubo e, pronto, caldo entornado. Desentupi uma dúzia de vezes até que desisti e regredi: voltei ao ancinho, pá de pedreiro, vassoura de arame. 


Com tanto que trabalho dá-me calor e acabo de top de alcinha fina e calcinha à pirata. Não há frio que me chegue. Mais um pouco e punha-me de fato de banho. Mas, como sempre, acabo arranhada de uma ponta a outra. É que, no meio da faina, o corpo enrijecido, nem dou por ela. Quando, ao fim da jorna, tomo banho e me vejo, é que constato a linda figura em que estou. O meu marido arrelia-se mas apenas moderadamente porque já desistiu de me educar. Ele, em contrapartida, anda de jeans, manga comprida, luvas e, quando anda com a roçadora, põe protecção nas pernas e óculos. Trabalha como um camponês mas sai de cá sem uma beliscadura. E eu nisto:  parece que fui martirizada. Mas, enfim, não me queixo. Só me incomoda um bocado é ver as pessoas que não estão muito por dentro da minha intimidade, a olhar de soslaio para o estado dos meus braços e mãos. Felizmente não vêem as pernas ou as costas. Devem ficar intrigadas, sem perceber se caí dentro de um saco de gatos ou se andei perdida numa floresta virgem, a passar por entre silvas e heras cheias de espinhos.


O meu marido também teve mais um dia daqueles... Andou à cata de tojo, um tojo agora completamente viçoso e cheio de florzinhas mimosas e espinhos maléficos, cortou ramos mais grossos ou mais acima nas árvores grandes onde eu não consigo chegar (que isto de desramar árvores até aos quatro metros é obra), transportou-os, limpou mato rasteiro com a roçadora, sei lá. Há bocado disse que não sabia onde tinha a cabeça quando tirou um dia de férias. 

Depois de almoço, e já eram quase três da tarde, viemos recostar-nos no sofá. Eu, por via das dúvidas, tapei-me com uma mantinha. Pois só vos digo que, tal o estado em que estávamos, adormecemos e só acordámos às cinco. Nem queríamos acreditar que já era aquela hora. Mas depois andámos, de novo, na lida até já ser noite. Gosto de andar na penumbra, entre sombras misteriosas, junto ao vulto das minhas amadas árvores, a trabalhar ao relento, a humidade nocturna a fazer-se sentir sobre a pele.


Com isto tudo, ainda não peguei no tapete de arraiolos e mal tenho lido. Tirando esta jardinagem campestre, praticamente só tenho cozinhado. Também tenho feito algumas fotografias mas agora estou com uma tremenda preguiça, não me apetece ir buscar a máquina para escolher algumas para aqui. Mas o mais extraordinário é que gosto disto. O cheiro a madeira cortada, a erva ceifada, o perfume das flores,  as cores do dia, o silêncio apenas entrecortado pelo canto dos pássaros ou por um sino ao longe, tudo me traz uma tal sensação de bem estar e felicidade, uma tal serenidade, que todo o trabalho braçal que faço me sabe a coisa boa, a festa, a vida a sério.


A minha mãe insiste: vocês não têm vida para isso, deviam arranjar um caseiro. Não é a única a dizer isso. Outras pessoas que conheço, que têm uma vida na cidade e casas no campo, têm quem as ajude. Ao princípio também tínhamos, um senhor da aldeia. Ao fim de semana vinha reportar o que tinha feito durante a semana. Passávamo-nos: nós a queremos descansar e ele a querer que o ouvíssemos. Outras coisas, fazia questão de as fazer connosco ao pé. Desesperávamos. Felizmente foi ficando velhote e disse-nos que, se não levássemos a mal, deixava de cá ir cuidar das nossas coisas. Foi uma libertação. 

Isto pode ser pesado -- e é, porque é muito intensivo, porque temos pouco tempo disponível para tanta coisa para fazer -- mas é um prazer, um grande, grande prazer.

(Há malucos para tudo).


---------------------------------------

As ilustrações são de Rafael Silveira e vêm ao som de Passenger com New Until It's Old

---------------------------------

A todos desejo uma boa terça-feira, de Carnaval ou do que quiserem

............................................................

sexta-feira, dezembro 28, 2018

Balanço do ano:
2018 em revista à moda de Um Jeito Manso





Não quero que venham ao engano. Vou já avisando que não vou ser capaz de dizer coisa que se aproveite. Gostava de saber dizer alguma coisa, a sério. Quando for grande quero ser apertadinha, organizadinha, bem alembradinha. Mas, infelizmente, ainda não cheguei lá.

Não me lembro de nada sobre coisas importantes deste ano que está a dar as últimas. Se se puserem a dizer coisas aqui à minha frente acho que me vou lembrando mas eu, por mim, não consigo. Não consigo discorrer sobre o passado de forma limpinha, hierarquizadazinha, sequencial -- só se for aos bochechos ou às arrecuas. Para mim o que passou, passou, e, quanto muito, decanto para deixar sair as impurezas e reciclo o que resguardei. E só guardo o que é bom, o que envelhece bem.


E depois tenho outra fraqueza: sou míope, vejo as coisas de forma esbatida, impressionista. E gosto.  Desabituei-me de usar lentes ou óculos. Já me habituei a não ver os pormenores. Prefiro assim, ganhei-lhe o gosto: das coisas prefiro ver a grande mancha, não quero saber de malhas caídas, pegões, ruguinhas de nada, nodoazinha imberbe na gravata, inofensivas minudências. Juntando isso àquilo de decantar não sobra muito. 


Portanto, dizer o quê de 2018? 

Não sei bem. Juro que não. Talvez que não foi mau de todo. Acho até que foi bom. Não me lembro agora exactamente dos sucedidos para me ter ficado esta impressão mas também confesso que geralmente acho que os anos são bons. Por maus que sejam, no conjunto acho-os bons. Mas também não sei bem explicar porque digo isto. Na volta é porque o meu corpo larga muita serotonina e o meu cérebro amanha-se logo com ela e é com cada piela que só visto, e eu, à conta disso, toda peace and love.



Podia falar de ter estantes novas e os livros organizados que é coisa que me deixa mesmo feliz e que foi coisa marcante na minha vida ou de ter retomado os tapetes de arraiolos que é coisa que me motiva muito  mas isso é capaz de ser muito petite histoire, coisa daquelas que não é para vir no jornal. Só se falasse do novo presidente de Angola que está a dar com os outros em malucos e a mudar aquilo tudo mas, não sei porquê, ainda não percebi bem qual é a dele já que antes era vice do outro e parecia unha com carne. Tenho que perceber melhor qual é a cena. Ou podia falar dos jaunes de duas patas que andam a fingir que são herdeiros dos soixante-huitards e a virar poubelles e a partir vidros mas, para isso, preferiria falar dos meus cogumelos amarelinhos e frágeis mas, se falo deles, a caruma ruiva ou o musgo verdinho ou as flores fofinhas ou a aragem nas árvores ou o canto dos pássaros ainda me rifam, todos enciumados. Ná, um risco desses eu não corro. Ou podia falar de não ter havido muita seca nem muitos incêndios mas não gosto muito de gabar de coisas boas porque parece que atrai. Podia também falar da maluqueira do brexit ou dos estarolas dos italianos sempre a puxarem-lhes o pé para o chinelo e a elegerem comediantes ou parvalhões ou do atraso de vida que para ali vai nos brasis com um bolsonaro e suas crias à roda do próprio rabo com a sua inconsequência e incompetência mas parece-me um bocado deselegante vir para aqui dizer mal dos outros, coisa de vizinha. Não. Nessa não me apanham.


É que, por mais que tente, não me ocorre nada assim de muito relevante. Alguém que me ajude... Devia ir tirando apontamentos ao longo do ano para, no final, não vir para aqui fazer estas figuras. É que se, ao menos, conseguisse elencar as melhores músicas, os melhores filmes, as melhores exposições, as melhores danças, as barbas mais larocas avistadas por aí, a voz mais caliente ouvida wherever, os deputados menos baldas e as deputadas menos bardajonas, as toilettes menos estapafúrdias da judite, os actos menos mediáticos do nosso ubíquo vocês-sabem-quem, os actos menos esclerosados do seu antecessor, as enfermeiras menos cavacas, as sindicalistas mais avoilas, os homens mais sexys da blogosfera, as bloggers mais mal-comportadas que por aí andam... mas, assim de repente, não saberia bem como descalçar a bota. Para isso precisava de ter critérios bem artilhados, fundamentação escorreita, raciocínio isento. E essa não é a minha praia: eu sou toda de predilecções, sou toda dada a xodós que me embotam a neutralidade. Não me arrisco.

Embora, para ser franca, o que eu gostava, mas gostava mesmo, era de ser capaz de ser como o Henrique que faz coisas surpreendentes e que só não fazem com que me torne sua devota porque, cá para mim, ele não é lá muito santinho que se ponha num altar. Portanto, adiante.
Embora pudesse falar noutros que também me cativam, os matreiros. Mas não, não caio daí com essa facilidade. Pode parecer que não, mas gosto mesmo é de de me fazer de difícil. 
Quanto muito posso dizer que gostava muito que ter notícias da Ana, de saber que está bem. E gostava que voltasse a escrever. Mas isso não tinha a nada a ver com o tema deste post.

Portanto, lamento mas daqui não sai mesmo nada que se aproveite. Uma tristeza. Devia esforçar-me mas sou avessa a esforços, nasci para a leveza, coisas pesadas derreiam-me as cruzes. Vou mas é ficar à espera que os outros os façam, que têm uma competência que eu não tenho. Balanços, quero eu dizer, balanços bem feitinhos de 2018.

.........................................................................

Agora uma coisa garanto eu que sou: bem formada. Não gosto que venham ao engano. Por isso, para ter com que receber condignamente quem, tão ingenuamente, daqui se acercou, vou partilhar um vídeo muito surpreendente, daqueles que me dão vertigens nos pés, impressões na alma. Uma capela no céu. Coisa de fazer doer a minha ausência de fé.


E para fazer pendant com o espírito do momento, uma carol boa de ouvir -- ou não tivesse o carimbo de qualidade da presença da menina Natalie Merchand.


------------------------------------------------------------------------

Isto há coisas: tudo o que é maluco vem ter comigo. Hoje foi Rafael Silveira, um menino brasileiro que só faz coisa assim, coisa boa. As imagens mostram obras dele.

...............................................................................................................

Dias felizes. Saúde. Alegria. Boa onda, minha gente.