Não quero falar do que de mau e estranho aconteceu em 2014, nem quero fazer balanços nem selecções. A minha memória não mo permite e a minha natureza não me puxa para o passado.
Mas sei que foi um ano estranho, em que a dissolução parece ter acometido parte da sociedade portuguesa. Prisões e julgamentos em catadupa e sempre aquela sombra de exagero, de judicialismo que assusta, um Estado que parece estar a ser tomado por dentro pelo que existe de mais medíocre, mais perigosamente moralista. Aquilo que eu tomava por borra parece ter-se alcandorado ao estatuto de nata. Uma nata feita de borra infecta.
Há pouco a televisão revelava as gravações das reuniões de Conselho do BES, a família ali toda representada, os Espírito Santo dos cinco ramos reunidos em torno de uma hecatombe que, qual tsunami, avançava na direcção deles, tudo derrubando à sua passagem.
Ouvem-se vozes aflitas, sente-se o medo, um pavor gelado, um império a ruir sem que eles o pudessem conter. Está na hora de pôr o Moedas a trabalhar, diz um, e Ricardo Salgado liga-lhe e ouve-se a chamada. E a voz de Ricardo Salgado, o líder em quem os outros confiavam, sente-se quase trémula. Antes ele tinha contado de um processo que lhes estava a ser movido no Luxemburgo, diziam que podia ser o fim, ele dizia que eram más notícias, a voz mal escondia o medo. E, de novo, ele ao telefone, desta feita para Carlos Costa que nem sim, nem não, e sabemos agora que, sem o assumir, já estava a lavar as mãos. Na altura em que ali se reuniam sem saberem já como salvar o grupo e o seu bom nome, eram já, sem que o soubessem, um grupo de condenados.
E eu, enquanto os ouvia, senti vergonha. Vergonha por eles. Sinto a vergonha que devem sentir quando ouvem as suas conversas, o seu estertor, a ser difundido para o mundo inteiro, nas televisões. Que tenham gravado tudo para depois transcrever e melhor fazerem as actas ainda vá que não vá. Agora que alguém tenha pegado nisso e oferecido ou vendido às televisões e jornais parece-me abjecto.
Penso com nojo no traidor que, tendo ali estado, vivendo por dentro aqueles momentos de pânico, foi a seguir vender ou oferecer esses momentos que deveriam ficar na intimidade de quem os viveu. Uma abjecção.
Que a TVI divulgue esse material acho menos grave já que reconheço que é matéria que, inegavelmente, tem interesse jornalístico. Mas há no acto de vender aquelas vozes uma indignidade, uma sujidade moral, que me incomoda.
Todos quantos têm passado pela Comissão Parlamentar e confessado que não sabiam nada do que se passava não devem estar a faltar muito à verdade. Muita da alta gestão é feita assim, na ignorância, confiando que alguém há-de saber o que está a fazer. Até ao dia em que alguém não sabe ou age de má fé. E ninguém dá por nada porque não estão lá para ver balancetes, balanços, extractos, análises de pormenor. Estão lá para fazer lobby, para mover influências, para patrocinar, para socializar - não para trabalhar. E depois a nobreza, a legítima e a presumida, tem destas coisas, parece que todos os bens lhes são devidos e que são inesgotáveis. Não sabem acautelar, vigiar, prevenir.
Receberam com quase indiferença os milhões que os contribuintes iam pagando a mais (dos submarinos e sabe-se lá de que mais) como se fossem prebendas que lhes fossem devidas, o povo a pagar aos nobres. Mas tudo feito desmazeladamente, com excesso de confiança. E não é de espantar, sabem que a justiça está a mando de outros igualmente desmazelados.
Uma sociedade em que as elites são assim, desmazeladas, incultas (e temos ouvido como mal sabem falar) de vez em quando derrapa para o charco, é natural.
São as elites que temos, nada a fazer.
Até que se assista a um rigor maior a nível político (e não se confunda rigor com prepotência, e não se confunda competência com palavras soltas coladas com cuspo, e não se confunda determinação com cegueira), empresas com as do GES, incluindo o BES, ou a PT ou outras que ainda por aí andam, correm o risco de a todo o momento poderem estourar.
Até que se assista a um rigor maior a nível político (e não se confunda rigor com prepotência, e não se confunda competência com palavras soltas coladas com cuspo, e não se confunda determinação com cegueira), empresas com as do GES, incluindo o BES, ou a PT ou outras que ainda por aí andam, correm o risco de a todo o momento poderem estourar.
Um regime politicamente avançado que potencie a boa estratégia, a saudável gestão, que impeça habilidades fiscais, que premeie o fogo de vista, saberá impulsionar a qualidade a todos os níveis e vigiar as que assentam em fogo de palha.
Agora isto... Traições, denúncias, sabujices, gáudio pelo mal alheio, invejas, intrigas. Tudo isso só revela uma sociedade doente. E disso eu não quero falar.
Prefiro continuar a acreditar que somos um país com muitos séculos de história, que da nossa ancestral raiz seremos capazes de descobrir o resto da seiva pura que nos há-de, um dia, fazer crescer com orgulho. Quero acreditar que, apesar de parecermos um país de velhos agarrados a uma história que parece nunca nos ter conseguido ensinar nada de frutuoso, temos ainda em nós a capacidade e a vontade de nos reinventarmos, temos em nós a sede de liberdade que nos há-de levar à nossa verdadeira independência e soberania.
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As fotografias são de Beth Moon e mostram árvores muito velhas e muito belas.
Interpretada pela orquestra Divino Sospiro e pela soprano Eduarda Melo, a música é um excerto do concerto “Jommelli, Gluck e Avondano: 300 anos do nascimento"
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