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quarta-feira, dezembro 31, 2014

As gravações do Conselho Superior do GES nas quais de ouve o que se passou naqueles dias de medo e horror que precederam a resolução do BES: o símbolo perfeito do que foi este ano de 2014.







Não quero falar do que de mau e estranho aconteceu em 2014, nem quero fazer balanços nem selecções. A minha memória não mo permite e a minha natureza não me puxa para o passado.

Mas sei que foi um ano estranho, em que a dissolução parece ter acometido parte da sociedade portuguesa. Prisões e julgamentos em catadupa e sempre aquela sombra de exagero, de judicialismo que assusta, um Estado que parece estar a ser tomado por dentro pelo que existe de mais medíocre, mais perigosamente moralista. Aquilo que eu tomava por borra parece ter-se alcandorado ao estatuto de nata. Uma nata feita de borra infecta.


Há pouco a televisão revelava as gravações das reuniões de Conselho do BES, a família ali toda representada, os Espírito Santo dos cinco ramos reunidos em torno de uma hecatombe que, qual tsunami, avançava na direcção deles, tudo derrubando à sua passagem. 


Ouvem-se vozes aflitas, sente-se o medo, um pavor gelado, um império a ruir sem que eles o pudessem conter. Está na hora de pôr o Moedas a trabalhar, diz um, e Ricardo Salgado liga-lhe e ouve-se a chamada. E a voz de Ricardo Salgado, o líder em quem os outros confiavam, sente-se quase trémula. Antes ele tinha contado de um processo que lhes estava a ser movido no Luxemburgo, diziam que podia ser o fim, ele dizia que eram más notícias, a voz mal escondia o medo. E, de novo, ele ao telefone, desta feita para Carlos Costa que nem sim, nem não, e sabemos agora que, sem o assumir, já estava a lavar as mãos. Na altura em que ali se reuniam sem saberem já como salvar o grupo e o seu bom nome, eram já, sem que o soubessem, um grupo de condenados.

E eu, enquanto os ouvia, senti vergonha. Vergonha por eles. Sinto a vergonha que devem sentir quando ouvem as suas conversas, o seu estertor, a ser difundido para o mundo inteiro, nas televisões. Que tenham gravado tudo para depois transcrever e melhor fazerem as actas ainda vá que não vá. Agora que alguém tenha pegado nisso e oferecido ou vendido às televisões e jornais parece-me abjecto. 

Penso com nojo no traidor que, tendo ali estado, vivendo por dentro aqueles momentos de pânico, foi a seguir vender ou oferecer esses momentos que deveriam ficar na intimidade de quem os viveu. Uma abjecção.

Que a TVI divulgue esse material acho menos grave já que reconheço que é matéria que, inegavelmente, tem interesse jornalístico. Mas há no acto de vender aquelas vozes uma indignidade, uma sujidade moral, que me incomoda. 

Todos quantos têm passado pela Comissão Parlamentar e confessado que não sabiam nada do que se passava não devem estar a faltar muito à verdade. Muita da alta gestão é feita assim, na ignorância, confiando que alguém há-de saber o que está a fazer. Até ao dia em que alguém não sabe ou age de má fé. E ninguém dá por nada porque não estão lá para ver balancetes, balanços, extractos, análises de pormenor. Estão lá para fazer lobby, para mover influências, para patrocinar, para socializar - não para trabalhar. E depois a nobreza, a legítima e a presumida, tem destas coisas, parece que todos os bens lhes são devidos e que são inesgotáveis. Não sabem acautelar, vigiar, prevenir. 

Receberam com quase indiferença os milhões que os contribuintes iam pagando a mais (dos submarinos e sabe-se lá de que mais) como se fossem prebendas que lhes fossem devidas, o povo a pagar aos nobres. Mas tudo feito desmazeladamente, com excesso de confiança. E não é de espantar, sabem que a justiça está a mando de outros igualmente desmazelados. 

Uma sociedade em que as elites são assim, desmazeladas, incultas (e temos ouvido como mal sabem falar) de vez em quando derrapa para o charco, é natural.

São as elites que temos, nada a fazer.

Até que se assista a um rigor maior a nível político (e não se confunda rigor com prepotência, e não se confunda competência com palavras soltas coladas com cuspo, e não se confunda determinação com cegueira), empresas com as do GES, incluindo o BES, ou a PT ou outras que ainda por aí andam, correm o risco de a todo o momento poderem estourar. 

Um regime politicamente avançado que potencie a boa estratégia, a saudável gestão, que impeça habilidades fiscais, que premeie o fogo de vista, saberá impulsionar a qualidade a todos os níveis e vigiar as que assentam em fogo de palha.

Agora isto... Traições, denúncias, sabujices, gáudio pelo mal alheio, invejas, intrigas. Tudo isso só revela uma sociedade doente. E disso eu não quero falar.

Prefiro continuar a acreditar que somos um país com muitos séculos de história, que da nossa ancestral raiz seremos capazes de descobrir o resto da seiva pura que nos há-de, um dia, fazer crescer com orgulho. Quero acreditar que, apesar de parecermos um país de velhos agarrados a uma história que parece nunca nos ter conseguido ensinar nada de frutuoso, temos ainda em nós a capacidade e a vontade de nos reinventarmos, temos em nós a sede de liberdade que nos há-de levar à nossa verdadeira independência e soberania.




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As fotografias são de Beth Moon e mostram árvores muito velhas e muito belas.


Interpretada pela orquestra Divino Sospiro e pela soprano Eduarda Melo, a música é um excerto do concerto “Jommelli, Gluck e Avondano: 300 anos do nascimento" 

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quinta-feira, março 14, 2013

Para Francisco I, o Papa que veio do fim do mundo para mostrar a Luz aos que a não vêem, para fazer ouvir a Sua voz aos que não a ouvem




Igreja de Luis Barragán, arquitecto mexicano
(o calor das cores da América Latina)


Francisco, nosso irmão e irmão de tudo!
Sublime doido, jóia rara
com a nossa miséria por engaste...
Quem, de ti digno, te cantara!
Mas a mim, dá-me a glória de ser mudo:
irmão das pedras que pisaste.



Rothko Chapel em Houston, Texas, com pinturas de Mark Rothko
(o despojamento absoluto das cores em recolhimento)



Meu o ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo

Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância

Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombra e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes



O espaço de recolhimento de uma agnóstica, in heaven


Estarei ainda muito perto da luz?
Poderei esquecer
estes rostos, estas vozes,
e ficar diante do meu rosto?

Às vezes, como num sonho,
vejo formas como um rosto
e pergunto: "De quem é este rosto?"
E ainda: "Quem pergunta isto?"

E: "E com quem fala?"
Estarei ainda longe de Ti,
quem quer que sejas ou eu seja?
Cresce a noite à minha volta,

terei palavras para falar-Te?
E compreenderás Tu este,
não sei qual de nós, que procura
a Tua face entre as sombras?

Quando eu me calar
sabei que estarei diante de uma coisa imensa.
E que esta é a minha voz,
o que no fundo de isto se escuta. 




*

O primeiro poema é de José Régio e chama-se 'O Pólo Sumo, em louvor de S. Francisco de Assis'

O segundo poema é de José Tolentino Mendonça e chama-se 'Revelação'

O terceiro poema é de Manuel António Pina e chama-se ' Estarei ainda muito perto da luz?'

A música é uma Cantata de Bach (BWV 63) e é interpretada pela orquestra Divino Sospiro

*

Este é o meu segundo post de hoje. Abaixo poderão ver a minha primeira impressão de Francisco, antes Jorge Mario Bergoglio, depois de o ter visto dirigir-se aos fiéis que o aguardavam à chuva. 


*

Se me permitem, muito gostaria que hoje me visitassem também no meu Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras seguem as linhas da minha mão, guiada pelas mãos de Maria do Rosário Pedreira, e dedico-as à Leitora amiga que me falou nas linhas da minha mão e neste poema. A música é de sonho: numa grande interpretação Mischa Maisky toca Tchaikovski.

*

E, tirando isto, nada mais a não ser desejar-vos uma quinta feira muito boa (apesar de fria). 

E que o afecto aqueça os vossos corações (...soa piroso, não é?... Mas é o que vos desejo mesmo...).


segunda-feira, junho 18, 2012

Uma menina bailarina conhece a sua primeira humilhação e aprende o sentido da misericórdia e da generosidade


Música, por favor


Pamela Lucciarini com a Orquestra do Divino Sospiro interpreta Antigono (1755) de Antonio Mazzoni,
ária escrita propositadamente para Caffarelli




Bailarinas de Degas


Todos os anos havia a festa da escola. Era um acontecimento que era precedido por meses de trabalho. Se era só bailado não garanto. Mas era no bailado que eu participava e é só isso que recordo. Tenho ideia que havia figurantes, acontecimentos paralelos em fundo ao longo dos cenários, o que permitia acomodar todos os meninos, mesmo os que não dançavam, mas disso já não estou certa.

Durante meses, os treinos, as aulas de dança, decorriam na escola. Ao fundo da grande sala, todo o espaço  estava liberto para permitir os exercícios e, depois, as mais diversas coreografias. A professora de dança, também tocava piano e muitas vezes era ela que tocava enquanto a ajudante verificava a nossa precisão e elegância de gestos. Mas, a maior parte do tempo, era com música gravada ou com discos que dançávamos. Era ríspida, perfeccionista, zangava-se facilmente essa professora. Para alguns dos meninos, os que não gostavam de dançar, as aulas acabavam por ser um castigo. Mas para mim era um prazer.



Bailarinas de Edgar Degas


Depois, depois de muitas e muitas horas de treinos, quando já estávamos bem encaminhados, começávamos a ir de tarde para a grande sala em que nos iríamos exibir. Íamos em carrinhas, logo a seguir ao almoço. Uma festa. Lembro que no inverno íamos apertados, encasacados e, quando saíamos dos ensaios, já era de noite, talvez porque os dias fossem pequenos.

Ali chegados, subíamos para as salas por trás do palco e era uma tremenda agitação, uma alegria, uma excitação. Queríamos ir logo para o palco e espreitávamos atrás da grande cortina de veludo, ansiosos.

Umas semanas antes acontecia outro momento alto: começavam a chegar os fatos. 



Bailarinas de Edgar Degas


Fatos lindos, tules, sedas, fantasias maravilhosas e coloridas. Não sei de onde vinha tudo aquilo mas era uma emoção extraordinária que me fazia sentir um frio gostoso no estômago, borboletas azuis na alma, um nervosismo que começava a desenhar-se. A professora e a ajudante começavam a atribuir os fatinhos a cada menino e nós experimentávamos e ficava sempre tudo bem. Fatos lindos.

Podíamos levá-los para casa para algum acerto e para irmos ao fotógrafo imortalizar o personagem. Era um orgulho.

No entanto, da primeira festa lembro sobretudo a humilhação, a primeira humilhação. Creio que, felizmente, a única.

Era a festa das estações. Primavera, Verão, Outono, Inverno. Entravam os meninos da primavera, dançavam, iam-se embora, entravam os do verão e assim sucessivamente.



Bailarinas de Edgar Degas


Eu entrava logo na primavera, era uma flor, ia vestida de violeta. Vejo-me ainda na fotografia. Estou sentada num banco comprido, forrado de seda. Tenho os pés cruzados e as mãos apoiadas de lado, numa posição elegante de ballet. A saia, curtinha, tinha por baixo tule lilás, a armar, mas o tule era visível, parecia uma espuma violeta, e, por cima, uns gomos de seda verde musgo e umas pétalas de seda em lilás que arqueavam para fora. A corola da violeta. A parte de cima era cingida ao corpo em veludo no mesmo tom de lilás, debruado a seda, no mesmo verde musgo. Uma pequena florzinha com quatro anos. Os cabelos compridos ao longo dos ombros, levemente ondulados, claros. Por fora compenetrada, por dentro muito feliz.

No dia da festa toda a gente andava num grande nervosismo, nós não parávamos sossegados nem calados e a professora e a ajudante e todas as outras empregadas da escola tentavam garantir que estávamos bem arranjados, prontos, a postos atrás da cortina. A professora, nesse dia, andava ainda mais encarnada, enervada, numa tensão terrível apenas atenuada, junto de nós, pela boa disposição da ajudante.

Depois de muito esperarmos, finalmente, começou a música, ouvimos bater palmas.

Entrámos, éramos as florzinhas da primavera. Dançámos, dançámos e, depois, a coreografia pressupunha que as florzinhas se deitassem no chão e que ali ficássemos enquanto a música mudava e começavam a entrar as florzinhas de verão, os frutos, as abelhas. Nessa altura, levantar-nos-íamos e dançando, retirar-nos-íamos e começaria a coreografia dos meninos do verão.



Bailarina de Edgar Degas


Cada menino ficava deitado numa posição pré determinada e eu ainda me lembro da minha. De barriga para baixo, com um braço dobrado para apoiar a cabeça, uma perna flectida, olhando para a frente. 

E, nessa altura, pela primeira vez, reparo que a sala está cheia, imensa gente. Fico admirada, tanta gente, tanta. Mas a luz incidia nos artistas do palco, não na assistência. Tento descobrir os meus pais. Mas não consigo. Olho, olho e nada. Depois resolvo fazer uma pesquisa sistemática, fila a fila, cadeira a cadeira. Mas com tão pouca luz, mal se vê. Começo a ficar um bocado aflita, não os vejo.



Fotografia de Helmut Newton


Só dou por mim quando toda a gente bate palmas e alguém me vem levantar. Em vez de sair na altura certa, tinha ficado ali deitada, o tempo todo, a olhar para a assistência. Não dei pela passagem do verão, do outono, do inverno. Nada. Sempre ali humilhantemente estendida no meio dos outros que dançavam, sem dar por nada.

Quando saímos para os bastidores, a professora perguntou-me: 'Então, deixaste-te dormir ou o que é que te aconteceu?' e eu nem consegui ânimo para explicar. Senti que não havia desculpa para tamanha falta de profissionalismo. Tantos meses de preparação para chegar ao grande dia e acontecer uma coisa destas. E, no fim da festa, quando finalmente, os meus pais me resgataram, já eu ia cheia de vergonha, também me perguntaram: 'Então mas o que foi que te aconteceu, entravam e saíam os outros e tu ali, deitada no chão...?'. Senti, nessa altura uma culpa horrível, uma vontade de não encarar ninguém.

Lembro-me que na segunda feira seguinte fui cheia de vergonha, com medo que gozassem comigo, tinha vontade de não mais voltar à escola. Era grande demais a humilhação.

Mas não, ninguém me disse nada, nem os meninos, nem a ríspida professora, nem a ajudante brincalhona. Senti que estavam a ser misericordiosos, que me estavam a poupar. E nesse dia, à medida que as horas passavam e que ninguém gozava comigo, a minha alegria ia aumentado. Acho que foi a primeira vez que tive a noção tão explícita da imensa generosidade dos outros. E, se sempre fui uma criança alegre e despreocupada, acho que foi a partir daí que passei a sentir-me sempre agradecida pelo que tenho, pela amizade dos outros, pela vida.

Nos anos seguintes a festa correu sempre bem, pelo menos do que me lembro. 



Fotografia de Helmut Newton


Lembro-me especialmente da última vez que participei. Já andava no liceu, no 1º ano (actual 5º) mas a professora pediu aos meus pais que autorizassem que eu, apesar de já não andar lá, ainda participasse. Foi uma despedida em beleza. Eu era a abelha rainha. Adorei.

Num tom dourado, tule, sobre tule, corpete de seda, eu dançava, dançava. Havia os zangãos, as obreiras e todos construíam um bailado harmonioso, coordenado. Mas eu  era abelha rainha. Tinha o papel mais difícil, a coreografia era complicada e muito longa. Mas a música era linda, o meu fato era lindo e o meu corpo era flexível, ágil, elástico, extensível. As minhas pernas elevavam-se até ao impensável, e eu elevava-me e, ao saltar, sentia que voava, e rodopiava como se não fosse eu, eu fora de mim, dançando, tomada pela magia e encanto da música. Eu, menina, cheia de graça.



Fotografia de Lois Greenfeild


Não sou saudosista, nunca digo 'no meu tempo' porque acho que 'o meu tempo' é aquele em que vivo, o tempo presente, talvez até o tempo futuro. Ao longo de toda a minha vida tenho tido a sorte de ter momentos bons, mas nenhum melhor que os que se seguiram e, certamente, não melhores do que os que estão para vir. Não obstante, é sempre com carinho, que volto aos dias cheios de encanto da minha infância.

*
Espero não vos ter maçado muito (além disso, uma vez mais, escrevi demais; por mais que parta com a intenção de ser sucinta, começo a escrever e distraio-me).

*

Quem aqui costuma visitar-me conhece a minha admiração por Sylvie Guillem. Tivesse eu sido bailarina, era como ela que eu gostaria de ter sido. Aqui vos deixo mais uma interpretação desta bailarina vibrante, bem humorada, de longas pernas e imensa elegância.



Sylvie Guillem interpreta Manon


*
Hoje, no meu Ginjal e Lisboa, a love affair abro a semana dedicada a Dmitri Shostakovich. É a grande música. 
E as minhas palavras olham-se ao espelho em volta de um poema de um Poeta que muito aprecio, Luís Filipe Castro Mendes. 
Gostaria de vos ter por lá.

*
E tenham, meus Caros Leitores, uma semana que valha a pena, a começar já por esta segunda feira.

Apesar de não vos conhecer, acreditem que vos desejo que sejam felizes.

segunda-feira, abril 23, 2012

O Mundo dos Vivos e Levantar o Céu, os labirintos da sabedoria - os novos livros de Pedro Mexia e de José Mattoso (ao som dos Divino Sospiro e de Violeta Parra); e ainda, de bónus, Jacque Fresco que aqui vem explicar porque é que 'esta merda tem que acabar'


Geralmente sento-me aqui, página em branco pela frente, e, sem pensar, começo a escrever. As palavras descem até ao teclado através de uma ligação directa entre o cérebro e os dedos (isto é, sem preparação mental prévia e, depois, sem moderação, sem filtros, sem censura interna).

Hoje isso não está a acontecer e, sendo coisa inédita, disso vos dou conta.

A razão deste bloqueio é dupla. A primeira é que acho que deveria, antes, falar das eleições francesas. Apesar de François Hollande ser uma criatura pouco carismática, quero porque quero que ele ganhe, especialmente  para ver se alguém desequilibra a preponderância alemã que anda a inquinar toda a Europa. Deveria - mas estou com outra ideia na cabeça. A segunda razão prende-se, justamente, com essa ideia:  quero falar de dois livros que adquiri a semana passada. Na minha cabeça os autores têm personalidades que, em alguns pontos, se tocam mas, depois, se tentar fundamentar com um mínimo de racionalidade, não encontro justificação cabal. Pego nos dois livros, tento encontra-lhes pontos de intersecção que o demonstrem e o escasso tempo de que disponho não me permite desenvolver um estudo aturado que possa dar razão à minha ideia.

Talvez a ideia se baseie apenas na minha intuição, coisa que uso em abundância e que desculpo depois de ter estudado que a intuição é apenas uma antecipação do raciocínio lógico, um short cut.

Bom, mas vamos aos factos.

Música, por favor


Divino Sospiro - A quel leggiadro volto (ou molto?) de F. A. de Almeyda


O Mundo dos Vivos de Pedro Mexia e Levantar o Céu de José Mattoso
(sobre algumas das minhas écharpes primaveris -
- e não torçam o nariz se faz favor porque não é pecado gostar muito de écharpes... )


Pedro Mexia e José Mattoso. Têm tudo a ver um com o outro? Pelo menos, alguma coisa? E o que poderei invocar para defender esta tese...? Ou será mais prudente nem tocar nisso e passar directamente aos dois livros...?

*

Pedro Mexia (n. 1972) é licenciado em Direito, é jornalista, crítico literário, escritor de crónicas e poesias (mas também teatro, letra de música, etc), autor de blogues conceituados, um dos quais tem presença aí ao lado sob o cognome que lhe atribuí de 'A labiríntica biblioteca, isto é, a vida' e que se refere a Lei Seca (ultimamente em onda minimalista), é participante em programas de rádio, televisão, é figura muito presente em encontros, debates de cariz literário, etc. 


As suas intervenções revelam sempre competência, estudo, maturação sobre o tema sobre o qual se pronuncia. 

E a sua escrita demonstra uma permanente busca pela honestidade em estado puro, uma compreensão total da verdade que se imagina imaculada, frequentemente tendo implícita uma decepção, um desencanto, uma melancolia.

Apetece dizer-lhe mil vezes que não há verdades absolutas, que não há honestidades imaculadas, que não há afectos impolutos - que busca, pois, o inexistente. Mas isso seria uma intrusão na sua intimidade e não é isso que aqui pretendo fazer. 

Mas o que acho é que na sua escrita está implícita uma procura pela pureza, pela limpidez, pela verdade e, nisso, acho que há em Pedro Mexia uma ascese que se lhe tornou intrínseca. Uma ascese talvez laica, não faço ideia, nem isso é relevante. Mas não me custaria nada imaginá-lo em isolamento, estudando, escrevendo, meditando.

Este livro, 'O mundo dos vivos' tem prefácio de outro escritor que muito admiro e que tem assento permanente aqui no Um jeito manso, Manuel António Pina.

Diz Manuel António Pina que se aprende com Pedro Mexia acerca de vários assuntos, entre os quais da conturbada e incansável arte da vida, da complexa, e não raro sórdida, natureza dos homens e das sociedades humanas. E acrescenta: e aprende-se com inesperado prazer.

Assim é, de facto. 

Este livro é uma edição Tinta da China (como sempre, uma bela edição) e reúne crónicas publicadas originalmente no suplemento P2 do Público entre Abril de 2007 e Dezembro de 2010 e no suplemento Actual do Expresso entre Maio de 2011 e Março de 2012.

Os temas são, pois, o mais variados possível, desde episódios ou referências a Lindsay Lohan, a Dominique Strauss-Kahn, passando por Leonard Cohen, Milan Kundera ou Kate McCann.

Penso que é notória a evolução, cada vez o acho mais introspectivo. E cada vez mais a análise melancólica, racional, pura.

Pela oportunidade do tema, transcrevo alguns excertos da crónica Sarko: É bom que Sarkozy tenha ultrapassado a hipocrisia habitual dos políticos franceses, mas não considero um avanço civilizacional ver um presidente da França que discute o tema da 'felicidade' com os jornalistas, como se fosse uma costureirinha. Gosto de o ver acompanhado daquela mulher esbelta, altiva, enigmática, de feições salientes e olhos azuis felinos, mas preferia um pouco mais de contenção.


(...) Outsider pelo percurso político, Sarkozy é também um outsider pelo feitio. Enérgico e frenético, chama-lhe Speedy Sarko. A própria mãe admitiu: 'Nicolas é um fox-terrier que corre por todo o lado a ladrar'. Mas essa hiperactividade só é interessante quando resulta em acções concretas. E Sarkozy tem estado mais virado para a necessidade de agradar do que para a urgência de decidir. Tornou-se titubeante e inconsistente e ninguém o elegeu para isso.

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Se a música do Divino Sospiro já acabou, então, esta agora, por favor

Violeta Parra - Gracias a la vida


Passo agora para José Mattoso.



José Mattoso (1933) é historiador, professor e investigador especializado em história medieval portuguesa.

Foi monge durante 22 anos, Frei José de Santa Escolástica Mattoso, vivendo na Abadia de Singeverga. Em 1970 voltou à vida laica. Casou duas vezes. Tem numerosa obra publicada, sempre de irrepreensível qualidade. Alguns dos livros conheceram inusitados êxitos editoriais. Recebeu já vários prémios e distinções, entre as quais o Prémio Pessoa. 

As suas intervenções são sempre claras, lúcidas, inequívocas. Tem uma voz própria, uma opinião que se faz ouvir sempre que a ocasião o justifique.

Ouvi-o há dias numa entrevista. Dizia que agora quer, sobretudo, reflectir, meditar. O mundo mundano, as vozes ruidosas e vazias incomodam-no. O fluxo dos seus pensamentos requer a quietude.

O livro de que estou aqui hoje a falar, 'Levantar o céu', saíu agora, e é uma edição Temas e Debates/Círculo de Leitores, com uma capa muito bonita, contendo uma iluminura da autoria da monja e mística alemã Hildegarda de Bingen.

Na introdução, José Mattoso explica o título. Levantar o céu é o nome que os mestres de chi kung (uma variante de tai chi) dão a um dos seus principais exercícios. Consiste, fisicamente, em levantar os braços em arco com as palmas das mãos apontadas uma para a outra e viradas para cima, isto é, para o 'Céu'. (...) Na cultura chinesa, Céu (yiang) designa aquilo que vem do alto, que dá força e energia, que constitui o princípio activo da vida, que anima a realidade espiritual da existência. Opõe-se à Terra (yin), isto é, àquilo que vem de baixo, que resiste à força e à acção, que constitui o princípio passivo da vida, que representa a realidade material da existência.

Mais à frente, José Mattoso continua: A harmonia e a paz são, é claro, situações precárias, vulneráveis, provisórias. Na nossa época parecem mais ameaçadas que nunca. Muitos fenómenos do mundo actual produzem efeitos que, se não forem corrigidos por acções de sentido contrário, ameaçam a sobrevivência da humanidade. Os mais graves resultam, em última análise, do excesso de poder nas mãos de uma pequena minoria de homens. Directa ou indirectamente, comandam as técnicas e utilizam-nas para acumular mais poder, indiferentes às consequências descontroladas do seu uso irracional.


Ao preparar-se para agradecer aos mestres e companheiros espirituais com quem aprendeu a meditar sobre o mistério da Humanidade, José Mattoso recorda a canção de acção de graças à Vida que ouviu pela primeira a Joan Baez mas que, refere, pertence a Violeta Parra. E acrescenta: agora, cada vez mais perto do fim da minha caminhada na vida, só posso, olhando para trás, dar graças por tudo o que ela me deu, ou que Deus me deu por seu intermédio.

Bem, não vou continuar porque todo o livro é muito interessante. Transcrevo de novo as palavras do autor, para apresentar o seu conteúdo: Os textos aqui reunidos foram escritos ao sabor de solicitações variadas, a que tentei responder na medida das minhas possibilidades e segundo as minhas convicções pessoais. Uns são mais 'cívicos', outros mais espirituais; uns inspirados no senso comum, outros na mensagem evangélica; uns recorrem à História, outros a princípios intemporais. Qualquer que seja a linguagem e o pensamento que os inspira, pretendem todos contribuir em alguma coisa para 'levantar o céu'.


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Em tempos de fogos fátuos, Pedro Mexia ou José Mattoso são duas pessoas que pensam em profundidade e que não se limitam a papaguear o que a vox populi espera. Com percursos de vida muito diferentes, com obras muito distintas, e, obviamente, em estágios de maturidade distantes, são contudo pessoas para quem a honestidade e a verdade são conceitos concretos e inalienáveis e isso reflecte-se nas palavras que pronunciam.

*

E muito a propósito das palavras de José Mattoso, um vídeo interessantíssimo que, em boa hora, um Leitor me enviou e a quem daqui agradeço a simpatia

Jacque Fresco, lider do projecto Venus

Esta merda tem que acabar  (pardon my french...)

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Hoje lá no meu Ginjal e Lisboa as minhas palavras vestem-se de gaivotas e voam em torno de um poema de Sophia, ao som de Renée Fleming interpretando a Casta Diva que, assim, abre a semana dedicada a Bellini. Gostava de vos ver por lá.

*  **  *

E tenham, meus Caros, uma belíssima semana!