Mostrar mensagens com a etiqueta Martha Argerich. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Martha Argerich. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, setembro 27, 2023

Mais um daqueles dias....

 

O meu dia começou cedo, bem mais cedo do que o habitual. Começou com um telefonema. Embora não fosse bom, tenho este meu jeito optimista de ser. E, enquanto ouvia, pensava: 'enquanto for ela a ligar-me, menos mal'. É que as más notícias de verdade nunca são dadas pelos próprios.

De qualquer forma, toda a manhã estive em suspenso sem saber se era para avançar de imediato ou se não. E de tarde fui para lá. 

Em acréscimo à óbvia preocupação, esta circunstância de não poder ser dona da minha agenda traz-me alguma ansiedade. 

Receio afastar-me, receio combinar coisas a que não possa comparecer. 

E outra: agora estou sempre naquela de, quando tenho algum tempo livre de crises, tratar de tudo por atacado não vá o diabo tecê-las e depois não ter tempo. E isto também é um bocado estúpido. Mas parece eu que adivinho. Tendo várias coisas para tratar, na segunda-feira foi uma overdose. Estava saturada mas parece que pressentia que o melhor era aguentar pois poderia surgir alguma coisa que me impedisse de diluir por vários dias. Afinal fiz bem. Agora já estou despachada.

Mas, enfim, é verdadeiramente aquilo que se costuma dizer de um dia de cada vez. Até porque, na realidade, tenho sempre a sensação de que é tudo mais psicológico do que fisiológico. Mas depois, não percebo como, os exames confirmam que há mesmo qualquer coisa e isso é que é pior.

Eu deveria mesmo ter estudado psicologia para saber lidar melhor com estas coisas.

Uma amiga médica, no outro dia, falava-me na dificuldade que é para eles, médicos, conseguirem extrair a raiz do problema de doentes que somatizam, chegando lá a relatar sintomas e mais sintomas, dramas em cima de dramas. Muitas vezes, dizia-me ela, ao fim de estar na conversa uns minutos, já passou tudo, já tudo foi relativizado. Involuntariamente, as pessoas assim transformam o medo em sintomas. 

Tirando isso, ainda consegui, durante uma meia hora, passear à beira mar e apanhar algum sol.

Sinto falta de ter tempo para escrever. Há um fenómeno estranho a dar-se na minha vida. Quando trabalhava, trabalhava mais do que as oito horas por dia, perdia tempos infinitos no trânsito e, apesar disso, tinha tempo para tudo. Agora falta-me o tempo e isso é inexplicável. 

Também há esta coincidência de as coisas com a minha mãe se estarem a complicar com uma frequência algo inesperada justamente agora que tenho disponibilidade para andar a acompanhá-la e a tratar de coisas para ela. Se fosse há uns meses como é que teria sido? Pergunto-me mas, na volta, tal como conseguia arranjar maneira de fazer tudo também acomodaria mais isso. Não sei.

O que sei é que ando um bocado psicologicamente esgotada. Para além disso, também um bocado fisicamente cansada. 

Mas, enfim, todos os males fossem estes. Portanto, bola para a frente.

E, enquanto escrevo, estou a ouvir este vídeo que aqui partilho. E estou a gostar muito. Se tiverem ocasião, não deixem de ouvir. É mesmo uma maravilha.

Barenboim & Argerich : Mozart Sonata for Two Pianos, K.448


Desejo-vos um dia feliz
Saúde. Alegria. Paz.

segunda-feira, agosto 30, 2021

Ménage à deux

 



Estamos tão formatados para ter coisas para fazer e para dar no duro que parece que não sabemos fazer outra coisa. Este domingo estivemos sozinhos in heaven. Dir-se-ia que seria normal que aproveitássemos para estar de perna estendida. Mas qual quê? 

Esta casa, já o contei, sendo grande, tem, contudo, falta de espaço para arrumação. Arquitectonicamente é interessante mas com poucas paredes onde se encostem móveis. Para arrumações temos uma casinha, lá fora, onde se guardam máquinas (a roçadora, a serra eléctrica, etc) e tintas e tabuleiros e trinchas e rolos, escadote, etc. Na casa há o que seria uma despensa mas que, na prática, funciona como arrecadação. Como a cozinha é ampla, é nos seus armários que guardo os produtos de alimentação. Só tem móveis baixos mas neles cabe o que é preciso. Portanto, na suposta despensa, numa parede tenho o tal móvel gigante, um multi-usos que os anteriores proprietários tinham na sala, e, na parede em frente, há uma estante de arrumação embutida. Nesta estão as caixas de ferramentas, produtos de limpeza, caixas com cenas, etc. Na parte de baixo, estão os sapatos e num outro separador também em baixo, vários garrafões de água para um just in case. 

No móvel havia de tudo: brinquedos, coisas da escola, sacos com indefinidos, vinhos, livros, roupas, bibelots, candeeiros, whatever. 

A divisão é estreita. Ao fundo, na parede onde está a janela (que raramente abrimos), está o aspirador, a tábua de passar a ferro e o ferro de engomar, algumas cadeiras de tipo realizador e outras de exterior e almofadas das espreguiçadeiras. Na parede oposta, a da porta, está um cabide de parede onde estão impermeáveis, sacos, chapéus de chuva. E, num canto, estão as vassouras, os baldes e as esfregonas. A babel da bagunça. Tão cheia estava que já tínhamos perdido o fio à meada.

Então, hoje o meu marido tirou praticamente tudo cá para fora. Apenas a zona das ferramentas lhe escapou. Diz que está bem assim, que encontra sempre o que quer. Eu acho que está a maior confusão. Nunca consigo encontrar o que quer que seja. Penso que deveria ter umas caixas grandes com compartimentos para poder ter as coisas organizadas por tipo e não, como está, tudo ao molho e fé em deus. Mas ele diz que não me meta no assunto e que não chateie. 

Mas, então, foi tirando coisas de todos aqueles compartimentos do móvel grande e de cima (porque estava até ao tecto). E eu, cá fora, ia triando. A quantidade e diversidade de coisas que saiu à cena é indescritível. Coisas que há muito julgava que se tinham perdido para sempre ali estavam. As coisas mais inenarráveis. Até um par de barbatanas e uma prancha de skimming. Não percebo. Vai-se encafuando e perde-se o rumo às coisas.

E tralha, tralha. Felizmente tínhamos cá um rolo de sacos pretos para o lixo. Fui enchendo. 

Apareceram mais uma porção de livros infantis e juvenis que eu não sabia onde andavam. Até livros meus, incluindo os da Berthe Bernage de que tanto gostei quando era miúda.

Os brinquedos e jogos estão agora todos na salinha de baixo da zona antiga da casa. Assim, é possível ver tudo e escolher o que se quer.

Temos ao fundo do corredor uma estante estreita de tamanho intermédio. Supostamente todos os livros infanto-juvenois estavam lá embora eu desde sempre me intrigasse por achar que deveriam faltar outros tantos. Mas como nunca os tinha contado e não fazia ideia de onde estavam os que achava que faltavam acabei por desistir de alimentar a dúvida. Apareceram. Como sobrava espaço nessa estante, tinha-se completado com livros de viagem e alguns de arquitectura que já não cabiam na zona deles. Agora estamos a pensar reorganizar algumas estantes, deixando esta apenas para livros para a maltinha jovem. Teremos é que arranjar sítio para os que de lá se tirarem.

E separámos alguns testes escolares ou trabalhos dos meus filhos que me pareceram com potencial interesse estimativo para que eles vejam se querem aproveitar alguma coisa. E brinquedos da minha filha para que ela decida se ficam, se vão fora.

E lavei alguns cortinados ou peças de vestuário que cheiravam a coisa guardada. E um vestido estampado de verão de que gostava muito e que acho que talvez sirva e fique bem à minha filha. É certo que o vestido era o 36 e que ela varia entre o 38 e o 40 mas pode ser que o 36 de antes seja o 38 de agora. Ela fica sempre surpreendida ao ver como eu cabia em roupinhas tão delgadinhas. Mas a vida é assim mesmo: as mulheres são como as árvores, o seu tronco vai ganhando espessura. 

Quanto ao resto -> lixo.

Sacos e sacos. Roupa para dar. Sacos com livros e cadernos para reciclar. E coisas para o lixo-lixo. O meu marido viu-se aflito para conseguir enfiar tudo no carro. E nunca mais aparecia de volta. Diz que esteve o tempo todo a separar os sacos pelos respectivos contentores.

Almoçámos às quatro da tarde.

Depois ainda pus uma cortina de casa de banho em lixívia, lavei uns tapetes, sei lá. E ele andou a desbastar a figueira e outros arbustos aqui em frente da janela da cozinha para que, ao estarmos aqui, tenhamos a sensação de que estamos em plena natureza. 
A janela é muito grande. Antes tinha umas cortinas de renda a meia altura. Agora achamos que preferimos a nudez do vidro que nos traz a visão integral do exterior. 
Sentámo-nos, entretanto, no sofá a descansar. Ele adormeceu logo. Eu não. Depois vimos dois episódios da Grace & Frankie.

Para o almoço limitámo-nos a restos (do peixe de ontem e de carne que trouxemos). Para o jantar, fiz ovos de tomatada que comi com pão pelo meio e que ele acompanhou com arroz.
E, com esta tomatada, acabei com os belos tomates do vizinho. Era bom que ele se lembrasse de cá voltar a pô-los à disposição. Mas, na volta, viu-me tão reticente em agarrá-los que agora se inibe. E isso será uma pena. Pode trazê-los à vontade que eu rapidamente lhes chamarei um figo.
Agora estive a fazer uma encomenda à ikea e, a seguir, adormeci. 

O meu marido há bocado perguntava: agora já está tudo ou ainda falta alguma coisa? Falta. Falta arrumar a parte de cima da escrivaninha. Está uma confusão desgraçada. Anos de crianças a mexerem e nós a fazer com que o tampo feche. Para encontrar alguma coisa é preciso muita destreza e equilibrismo. Uma coisa tipo mikado.

Se calhar, quando tivermos arrumado tudo, e ele desbastado mato e eu varrido tudo à volta da casa, vamos sentir-nos fatigados por já não termos nada que fazer. Mas, por enquanto, não descansamos enquanto não nos esfalfarmos a trabalhar.

Há explicação para isto? Estamos a ficar uns workaólicos da ménage? Ou what?

Será que não vou conseguir passar um dia de perna estendida...? Pergunto-me.

__________________________________________________


Martha Argerich e o neto, David Chen, interpretam Laideronnette de Ravel. As maçãs são aqui mostradas por William Mullan

________________________________

Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Alegria. E força nisso.

sexta-feira, julho 31, 2020

A minha dúvida existencialista a propósito das arrumações





Depois da melancia, não sei o que posso escrever mais pois tenho ideia que é preciso ter cuidado com o que se ingere a seguir, parece que a dita pode encortiçar. Na volta é mais um daqueles mitos urbanos. Mas, por via das dúvidas, tenho que ter cuidado com o que vou dizer a seguir. 

E o que tenho a dizer -- passando ao lado das grandes causas da humanidade e dos casos algo complicados com que tive que me deparar ao longo do dia -- é que, ao fim do dia, voltei às minhas arrumações. Deixei quase para o fim um móvel que tenho na sala de jantar. Há o louceiro e há o aparador. O que mais temia era este aparador: uma verdadeira arca do tesouro. Cheio como um ovo com tesourinhos deprimentes. Tremo de lá mexer. Ao longo de anos fui para lá enfiando tudo e mais alguma coisa. Coisas do enxoval, coisas herdadas, presentes que diferentes ofertadores e que atravessam épocas, estilos díspares, utilidade por vezes duvidosa. Numa ginástica que desobedece às leis da física, encaixo, sobreponho, enfio. E lá fica tudo, esquecido.


Em dias de festa ou de maior número de comensais, tenho que me afoitar e, quase a tacto, enfiar a mão e, devagar, qual jogo do micado, tirar a travessa, a terrina, o balde gelo ou a taça de vidro em forma de morango para servir os morangos, de maneira a que tudo não se desmorone e não aconteça uma desgraça. Depois, no fim do dia, depois da louça lavada, é o castigo final: conseguir que o espaço volte a acomodar a peça que, à primeira, à segunda e à última vista, parece não caber. 

Há bocado, quando o meu filho me ligou e perguntou o que temos feito, lá lhe contei que continuo (continuamos) nesta faena, que parece que não acaba, que aparecem peças em quantidade infinita. Ele passa-se: diz que nada daquilo serve para o que quer que seja, que só serve para encher, que não percebe, que nada daquilo tem qualquer valor. Pergunto-lhe se acha que deite fora serviços da vista alegre, travessas e terrinas de valor, garrafas de cristal, coisas assim. Diz: cristal é aquela coisa que é feita de chumbo. Digo que pois é mas que deve estar inertizado, que não deve ter problema, são peças atlantis, coisas de valor, não vou deitar fora. Diz que não se lembra de eu servir vinho ou água naquelas garrafas de cristal. Pois não, tem razão, mas é que acho que não se justifica, sei lá, tenho medo de partir. Digo: quando eu e o teu pai formos desta para melhor, tu e a mana fazem um leilão. Ele diz: podes fazer isso em vida. E pronto, ficamos assim. Esta conversa é recorrente. Os meus filhos não ligam muito para este género de coisas. Nem muito nem pouco. E eu, para dizer a verdade, acho que agora também não. Mas as coisas foram-se juntando. Vou fazer o quê com elas?


O meu marido, neste processo, ficou com o pelouro das estantes. Sim, que posso ser maluca mas parva acho que não sou. Não me arriscaria a pô-lo a mexer em louças e vidros. Assim como assim os livros não se partem. Mas, quando vou ao pé dele, está passado. Diz que encontra livros absurdos, que não percebe porque foram comprados. Para alguns encontro explicação. Para outros não. Coisas que vêm de mil anos antes, que se vão adquirindo porque se resolveu fazer uma colecção, sei lá. Diz-me: metade deles iam mas é para o lixo. Aborreço-me. Jamais (dito em francês, se faz favor). 

Mas a verdade, verdadinha, é que, por dentro, fico cheia de dúvidas. E das existencialistas que são as que custam mais. Dúvida existencialista é como bolha do sapato a roer o pé. Para que ando eu com tanta tralha agarrada a mim? Mas, se não quiser andar, faço o quê? Desfaço-me de peças valiosas? Não sou como a minha avó paterna que vendia por tuta e meia propriedades no Algarve porque os filhos não davam mostras de ligar àquilo, não queriam saber da apanha das alfarrobas ou das amêndoas. Quando davam por ela, já ela tinha despachado tudo. Ou a minha avó materna que tinha um móvel que eu achava o máximo e que, quando um dia disse que gostava de ficar com ele quando ela não o quisesse mais, obtive de resposta: Onde é que isso já vai... Já o vendeu a um antiquário qualquer que por lá passou a saber se ela queria desfazer-se de algumas coisas. Desfez-se do que calhou, sem ligar a nada. Família desapegada a minha. Quando os meus avós morreram, quer os paternos, quer os maternos, nenhum dos meus primos quis o que quer que fosse. Eu sim. Coisas simbólicas. A enxada do meu avô, o cadeirão onde ele via televisão, os copinhos de vidro coloridos da minha avó. Tive pena que já não houvesse a grande avenca que estava no parapeito da sala, numa janela com as portadas meio fechadas porque 'a avenca gosta mais do escuro e do fresco'. Dou valor a coisas que têm vida agarrada.


No fundo, no fundo, prefiro a simplicidade, os ambientes arejados. Mas o que faço a tudo o que a vida me foi pondo no regaço?

------------------------------------------------------------------------------------

Bem, isto vai longo demais, tenho que parar. Começo a escrever e distraio-me. Sorry.

As fotografias são da autoria de Terry O’Neill e achei por bem ir buscar Liszt, La leggerezza, pela mão de Martha Argerich 

------------------------------------------------------------------

E, como agora ando numa de coisa divertida e sorridente como forma de vos dizer 'até já', aqui vos deixo com mais um destes vídeos deliciosos e ternurentos. Have a big smile.


E queiram descer caso queiram aprender a comer melancia em sociedade

E um dia feliz. Saúde e alegria.

sábado, maio 30, 2020

Fim de dia na praia, de máscara e a caminho de vir ver e ouvir a bloody daughter







O dia em casa. Parte do dia sozinha. Há quanto tempo não estava sozinha em casa? Nem sei. A casa silenciosa, o rio na janela. E calor. Telefonemas, mails, reuniões, aprovações. Não apreciei especialmente. Não gosto de estar confinada. Há dois meses e meio em liberdade, estar a trabalhar fechada em casa, sem ter como ir fazer uma caminhada enquanto telefono e, mal acaba o telefonema, voltar a entrar ou, de vez em quando, estar de porta aberta ou na rua, a trabalhar a ouvir os passarinhos, e hoje fechada, limitada. Todo o dia senti saudades dessa liberdade.

E isto já para não falar nas conversas boas e divertidas com a minha filha ou na alegria, na energia, no apetite divertido dos meninos. Tão bem que eles lá estiveram.

E já contei que lhes voltou a preocupação que todos eles, à vez e sem saberem dos outros, manifestam? O que acontece ao lugar quando morrermos? Quando se pergunta porque perguntam respondem que estavam a pensar nisso. A minha filha ou o meu marido, já nem sei qual deles, se calhar até os dois, dizem que isto significa que gostam muito de lá estar e têm medo que aquilo se perca já que agora é um lugar que está associado a nós e nós, um dia, haveremos de virar pó. Dizemos que terão que se entender entre eles para manter o lugar na família. É um lugar sagrado. Um paraíso que nasceu das pedras e das minhas mãos.


Alimentou-me o dia a expectativa de nos encontrarmos ao fim do dia, na praia, com os outros meninos e seus pais. Lá fomos, eu entusiasmada, com aquela excitação de quem vai estar com aqueles que ama.

Eram sete e meia da tarde, a estrada pejada. Muitos carros a saírem da praia. Estávamos estupefactos. Àquela hora ainda tanta gente a vir da praia? Fogo. E ainda vários carros a entrarem. 

Estávamos quase a chegar quando, ao lado, a carrinha com eles -- os meninos de máscara. O do meio também de óculos escuros espelhados. Umas máscaras todas fashion. Ganda pinta. Estava ao telefone com a minha mãe, ela ouviu a minha exclamação: 'Olha! Eles' E estão de máscara!'

E, quando estacionámos, vimos que já não eram só eles, já estavam os cinco de máscara. A do meu filho em negro, a da minha nora em estampado. Mostrou que são dupla face. A mãe fez umas, outras foram encomendadas. O bebé orgulhoso com a sua máscara preta com carros. Perfeitamente adaptado. Nada daquilo o estorva. No outro dia a tia disse-lhe que estava com saudades, que queria estar com ele, ele que fosse ter com ela. Resposta dele: 'Não posso, não quero apanhar o coronavírus'. Tal e qual.

O meu marido achou que, se eles assim estavam, também nós devíamos. Eu super contrariada. Para a praia? De máscara? Parece a contradição dos termos. Depois explicaram-nos: no passadiço há muita gente. E, de facto, muita gente a sair e a entrar na praia. 

Lá chegados, retirámos a máscara. E a menina mostrou que já faz muito bem a espargata e a roda e mil poses artísticas e acrobáticas. Estava toda contente por estar comigo, contava-me coisas, deixou que eu a fotografasse de todas as maneiras. Linda, linda, mil vezes linda. E tão querida. O menino do meio não estava nos seus melhores dias, estava mal de um ouvido, meu menino querido. Tão alto que já está. Esguio como um bambu. O bebé fala já de forma totalmente explicada. Viu um avião e, enquanto eu estava a digerir a visão de um avião no céu e, ainda por cima, tão baixo que dava para ver que era da TAP, ele: 'Mãe, de onde é que ele vem e para onde vai?'. E a mãe: 'De onde vem não sei mas sei que vai para Lisboa'. E ele 'Vai aterrar em Lisboa?'. E quando eu me preparava para explicar como é que os aviões baixam e aterram, logo o mano do meio: 'Mas ele sabe, ele já andou de avião...'. E o bebé: 'Sim, eu já andei' de avião, eu sei'. E eu fiquei a pensar: 'Onde terá sido a última vez? Aos Açores?'. Sei que na última vez pensei que tão pequenino e já era a sua segunda viagem de avião. Mas parece que foi há tanto tempo que já nem consigo situar-me. Este ano, pela Páscoa, iam de férias para Itália.

Mas a praia estava uma maravilha. Calor. Os meninos fartaram-se de mergulhar, de andar a apanhar as ondas. São destemidos, brincalhões. Também não resisti. Não mergulhei completamente mas andei também dentro de água a sentir a rebentação. Tão bom, tão bom. Quando viemos de lá já passava das oito e meia. Perguntaram se queríamos jantar com eles. Mas não, tínhamos afazeres. Viemos para casa, tomámos banho, fiz um jantar rápido, pus a máquina a lavar. Essas coisas.

Agora que o cabelo já se me secou e que ainda não o apanhei, muito menos entrancei, sinto-me uma leoa com frondosa juba, e o calor que isso me dá ninguém imagina. Mas a preguiça para ir ali buscar um elástico ou uma mola e apanhá-lo...?

Adiante.

Agora que estou na sala enquanto vejo o Governo Sombra, estava aqui para falar do vídeo que estive a ver feito pela filha de Martha Argerich justamente sobre a sua mãe.

Gostei tanto de ver.

Atraem-me os pianistas. Uma vez escrevi um conto sobre um pianista. Não faço ideia que será feito desse conto. Foi inspirado por uma pessoa muito concreta que, por acaso, não era pianista (embora toque piano de uma forma que me emociona). Se eu voltasse a escrever um conto, talvez um livro, talvez um guião para um filme (presunção e água benta, vocês sabem como é) penso que não resistiria à tentação de lá tê-lo, de novo. Talentoso, solitário, apaixonado, atormentado, insolente. Penso nele e vejo-o. Vejo as suas mãos grandes. Vejo-o entregue ao seu prazer solitário, a casa espaçosa e quase vazia, o piano na penumbra, um raio de luz dourada desenhado na parede. 

Mas, falava eu, a Martha Argerich -- que tanto gosto de ouvir tocar. A sua vida. Como chegou até aqui, talentosa, bela, com aquela sua personalidade, como se o tempo não passasse por ela? Como consegue uma pessoa com uma vida assim arranjar tempo e espaço para ter relações duradouras? Como consegue tempo e disponibilidade para filhos? Tenho curiosidades por coisas assim. Não é bem fofoca. É mesmo curiosidade, vontade de perceber como funciona a cabeça de pessoas assim, que admiro como se tivessem milagres a nascerem-lhes dos dedos.

O vídeo é longo mas arrisco-me a partilhar pois pode ser que haja por aí outros malucos como eu, com gostos difíceis de definir.

Um retrato íntimo

Martha Argerich's intimate portrait: Bloody Daughter - Film by Stéphanie Argerich


As pinturas são de Joaquín Sorolla y Bastida
Celso Fonseca aqui deixa a sua pose de flâneur e vem dizer qual a origem da felicidade

_________________________________

A todos desejo um dia feliz. 
... apesar do calor que, a alguns, faz lembrar o fim dos tempos e que a mim me faz, pura e simplesmente, derreter...

segunda-feira, dezembro 31, 2018

As minhas diletantes oliveiras




Ontem ao fim da tarde, acabei o trabalho que fiz no olival do meu melhor amigo. As oliveiras podadas (arreadas ou arriadas como aqui se diz) deu um outro aspecto à terra. De cuidado, de zelo. Ficámos ali um pouco a olhar aquilo, o perfil da serra ao fundo, o cheiro de ervas aromáticas trazido no vento, e dá gosto ver as coisas cuidadas.
[Soliplass dixit em comentário lá mais para baixo]  

O nosso vizinho da ponta da estrada tem cavalos, burros, vacas, ovelhas. Se calhar também galinhas. E tem oliveiras. E talvez tenha outros cultivos. Ali a seguir ao verão, creio, quando calha ter algum assunto para trocar connosco, inevitavelmente vemo-lo com pressa e diz que vai para a azeitona. Nessas alturas essa é a sua prioridade. Este ano o filho veio ajudá-lo. No outro dia o meu marido perguntou-lhe se o ano tinha sido bom, se tinha dado muita azeitona e, para meu espanto, ele converteu a colheita em litros de azeite. Pensávamos que ele venderia as azeitonas à cooperativa mas, afinal, contou que não, que deixa lá a azeitona e que depois vai buscar o azeite. Contou que não há produtos químicos, que é tudo puro. O meu marido perguntou se tinha para vender. Eu estava receosa, receei que saísse dali um azeite escuro, ácido, mal saboroso. Ele descansou-me, que era bom, pouco ácido mas que podíamos levar um garrafão para vermos se gostávamos. Trouxémos. Bom. Claro, parece ouro líquido, bom, macio. Já lhe pagámos. demos uma garrafa à minha filha, outra ao meu filho e o que ficou para nós quase se acabou. Fiquei mesmo impressionada. Quem diria? aquele vizinho é cheio de surpresas.


Do nosso terreno avistamos um belo olival na parte descendente do vale. Olho-o com gosto. Tão bonito. Se calhar é o dele. Também na estrada a caminho de lá passamos por vários outros olivais. As oliveiras muito bem cuidadas, em corredores muito alinhados, todas bem tosquiadas, a terra limpinha por baixo. Olho-as com admiração: há ali uma amostra de um mundo organizado e limpo.


Aqui in heaven nada é assim, aqui tudo cresce onde lhe apetece. Temos oliveiras. Têm nascido. Desengonçadas umas, desempoeiradas outras. Vamos podando, mas tal como podamos as outras árvores, sem técnica, sem conhecimento de preceitos, apenas para que fiquem mais arejadas. São bravias, se calhar vieram de outras paragens. As copas misturam-se com aroeiras, com azinheiras. Namoram umas com as outras em plena liberdade.

Para nossa surpresa algumas já dão azeitonas. São azeitonas pequenas, com caroços grandes. Não as apanhamos porque não saberíamos o que fazer-lhes. Já nos explicaram mas não sei, não levo muita fé, não sei se azeitonas nascidas de árvores selvagens serão boas. De certa forma, parece-me até quase um sacrilégio, não sei se elas dão frutos apenas para seu próprio prazer, não sei se faria sentido apanharmo-los sem os sabermos tratar com dignidade.


Gosto muito delas, das oliveiras. São árvores de folhinha bem definida, clarinhas, brilham ao sol, as ramagens tèm uma densidade que deixa passar a luz, ficam prateadas.

Não olho para elas como uma fonte de rendimento mas como umas árvores bonitas. Existem pela gosto e graça de existirem. São umas diletantes. Como eu. Não sei se uma mão profissional poderia fazer alguma coisa delas. Nem sei se umas dez oliveiras dariam alguma coisa que se veja. Ou se deveriam ser enxertadas. Não faço ideia. Por enquanto existem apenas, leves, sedutoras, úteis apenas por serem belas.


Hoje, enquanto andava à procura delas para as fotografar descobri mais uns três ou quatro pés, ainda frágeis, troncos finos, todas vergadas, a quererem evidenciar-se no meio do alecrim, talvez a quererem ombrear com os cedros. Não sei se vingarão, se calhar sim, como todas as outras. Também não sei se um dia se tornarão úteis ou se se manterão assim, turistas acidentais, diletantes. Não sei. As árvores aqui têm vontade própria, elas saberão qual o seu melhor destino.


Temo que, ver estas minhas oliveiras assim, neste aparente (e real?) caos, deve ser um desconsolo para si, Soliplass. Mas não me recrimine: não é falta de cuidado, acredite. É apenas a minha peculliar forma de gostar delas. Talvez um dia eu saiba tornar-me aquilo que gostava de ser, uma verdadeira camponesa mas, por agora, não passo disto, uma diletante meio maluca...

domingo, junho 04, 2017

Os golos de Cristiano Ronaldo na final da Champions, in heaven, por entre o caso das criancinhas desaparecidas, chilreios anónimos, um sol dourado e um ventinho fresco





Não está calor. Calor nenhum. Quando o vento sopra sente-se, mesmo, algum frio. Estou vestida com calções curtos e uma blusa fina de alças. Há pouco, enquanto andava lá por baixo a passear, pensei que devia vestir um casaco mas o ar fresco na pele soube-me bem.  

Agora estou na sala enquanto na televisão dá a final da Champions. De lá chega o som da festa do futebol. Ouço dizer que 'o gajo está sempre a fazer carinhas'. Depois 'o gajo agora está louro aos caracolinhos'. Mas a televisão está um bocado longe e não vejo bem. Grande alarido agora. Ouço 'o gajo já marcou'. Olho e vejo um vulto vestido de lilás a dar um grande salto. O gajo é o melhor jogador do mundo. 


Lá fora o sol está dourado, faz dourar as árvores e os arbustos. É como se a doçura do sossego pousasse sobre o que me rodeia.


Fotografo o que vejo enquanto aqui escrevo. A cor da cortina parece contagiada pelo ouro do sol a esta hora em que já passa das oito da tarde. Sabe-me tão bem estar aqui. 


As árvores crescem desabaladamente. A minha filha admira-se: também não choveu assim tanto que justifique um crescimento destes. Não, de facto. Mas a verdade é que a terra se modificou. De pedregosa e árida tornou-se muito fértil. 

Tudo cresce assim. Os pinheiros, cedros e eucaliptos atingem alturas incompeensíveis. Mesmo o alecrim ou a madressilva crescem de forma incomum. Tudo está florido e perfumado. 


Ao passar por um caminho rearei numas flores delicadas e cheirosas. Nunca ali as tinha visto. Penso que sejam ervilhas de cheiro. Tão bonitas. De onde vêm estas flores, eu não sei. Dá ideia que há aqui, neste lugar abençoado, um chamamento que atrai flores vindas não sei de onde. Flores e pássaros.


E os pássaros, esses invisíveis seres que enchem o ar de variadas melodias, devem ser muitos. Tão frondosas estão as árvores que nunca consigo vê-los. Estive sentada no banco que foi pintado do azul-alentejo que veio por engano e o chilreio era esfusiante. Estava imóvel a ver se descobria algum pássaro mas não, dá ideia que se disfarçam entre a folhagem. Ou, então, sou que sou mais míope do que penso. Mas não faz mal. São como eu. Querem ser apreciados pelo que cantam, apenas pelo seu canto, e não pelo que parecem ser. Também eu quero que gostem ou não gostem do que escrevo, independentemente de eu ser como sou.


Tenho estado a ler um livro que pensava que ia ser uma animação. Qundo comecei a ler ainda me ri, uma maluqueira desbragada, o Pacheco no seu melhor. Depois percebi que o disparate era uma defesa, que o que estava a ler era um dos livros mais tristes que já lera. Interrompi para escrever isto porque a escrita era dilacerante.

Ainda pensei transcrever uma parte para vos mostrar mas falta-me o ânimo para tal. Talvez depois, não agora. Não sei se todo o livro será assim, mas até onde li, Luiz Pacheco fala do período em que viveu, pobremente, nas Caldas da Rainha, tão pobremente que os filhos lhes eram retirados e dados para adopção. A forma como ele fala desse período é pungente.


Enquanto o meu marido cortava umas pernadas da figueira gigante a cuja sombra fresca e perfumada gosto de me acolher nos dias de verão, estive sentada num banco a tentar ler. Mas as solicitações eram muitas e as leituras devem ser guardadas para momentos de algum recolhimento. Acho que agora, enquanto por ali as atenções estão concentradas no futebol, vou ler um pouco do livro sobre arte. Acima, há pouco, junto aos livros, uma tigelinha onde os meninos estiveram a experimentar culinárias com bolotas, folhas variadas, bocadinhos de terra e alguma água. Brincam tanto, eles. Tudo lhes é motivo de descoberta e alegria. Como escreve o Pacheco, o facto é que conviver com as crianças nos leva a aprender muita coisa e nos rejuvenesce porque repito a novidão nos dá vida e os mais novos são os mais sábios.


E, de novo, ali do fundo da sala, um bru-ah-ah, a explosão em forma de grande festejo. Cristiano Ronaldo marca mais um golo. Imparável este rapaz. Fui ver a repetição: uma precisão e compreensão do jogo quase não-humana, uma coisa de tipo ex machina. Mesmo eu, que nada percebo de futebol, me espanto com a energia intravável com que ele se lança a caminho do golo.



E já quase anoiteceu, as janelas já foram fechadas. E ouço o vento nas árvores. Uma música maravilhosa que me chega da natureza, aqui in heaven.

_____________

Até já. 

_______________

terça-feira, maio 16, 2017

Livros meus, vida minha





Quando olho para trás, vejo que li por revoadas. Em pequena gostava da Brigitte de Berthe Bernage. Tinha vários livros dessa série e havia, a meus olhos, um toque poético naquela forma de escrever.

Não sei como se foi dando a evolução mas lembro-me de ler um, após outro, os livros de Fernando Namora, propriedade dum médico que estava longe e cuja silenciosa muher vivia na penumbra, numa casa grande que tinha móveis escuros, sofás de pele castanha já gasta, estantes até ao tecto. Não tinha filhos. Eu ouvia-a segredar à minha mãe que não sabia se aqueles livros seriam adaptados à minha idade. Se bem situo no tempo, teria uns treze anos.

Houve outra fase: a dos livros da biblioteca do liceu. Aí as estantes eram também muito altas mas com portas que tinham uma rede fina. Não sei se teriam vidro. Se calhar tinham mas lembro-me é daquela malha fina, quase transparente.


Muitos aí. Somerset Maugham, uma grande paixão. Lisa, a Pecadora. Falava do que eu desconhecia mas de que, mesmo sem compreender, eu gostava de ler. Depois Pearl S. Buck. Livros comoventes. De cada autor eu lia tudo o que lá havia. Lia pela noite dentro, uma pequena luz. Por vezes, se ouvia algum dos meus pais a levantar-se, apagava rapidamente a luz. Mas, por vezes, a minha mãe era silenciosa, apanhava-me desprevenida.

Os livros lá de casa não me despertavam tanta atenção, era como se fosse território que a qualquer momento podia deitar a mão, ao passo que os outros podiam desaparecer (temia eu). Mas lá de casa lembro-me de como me impressionou O Jogador de Dostoevsky. Sofri com aquela compulsão. Muitos anos mais tarde, quando conheci um jogador de carne e osso pensei muito naquele outro que simplesmente não podia parar.

Quando comecei eu a escolher os meus livros, descobri o D. W. Lawrence. Um fascínio. Mal acabava de ler um, logo tinha que ler o outro. Ficava presa daquela escrita.


Talvez por essa altura estivesse já na faculdade e frequentasse diariamente os alfarrabistas da Rua Nova do Trindade. Não me lembro se esses livros eram novos, talvez dos saldos da Bertrand onde perdia a cabeça, se eram usados.

Poupava nos gastos, almoçava e jantava quase sempre nas cantinas, para gastar o dinheiro da mesada em livros, teatro, cinema.

Penso que deve ter sido nos saldos da Bertrand que conheci Violette Leduc e os seus livros perturbantes. O primeiro que li, A Bastarda mostrou-me, de novo, um outro mundo.

A minha personalidade formou-se, certamente, com muita dessa heterogeneidade a que eu ia deitando mão.

Se eu falava a algum dos meus colegas dos livros que lia raramente alguém deles tinha ouvido falar. Por isso, fui-me desabituando de falar sobre os livros que andava a ler.

Quando fiz dezassete anos, recebi de presente A Selva em formato gigante com capa de pele verde e gravuras de Júlio Pomar. Um outro mundo. E daí até ir lendo, um após outro, os outros livros de Ferreira de Castro foi um ar. Conhecia, por essa via, os rigores das invernias na serra, a pobreza partilhada entre homens e bichos, a neve, os lobos, territórios que, emocionada ia imaginando.


Não me lembro se foi por essa altura, talvez no seguimento, que comecei a ler os brasileiros. Outro encantamento. Aí a língua chilreava, andava pelos campos, percorria o corpo das mulatas, vergastava as costas dos negros, acarinhava o colo das mães, enternecia-se com o choro dos meninos. José Lins do Rego, Gumarães Rosa, Jorge Amado. Gilberto Freyre. O que eu gostava dos brasileiros. Um dia um tio meu escandalizou-se: 'E o Olhai os Lírios do Campo?'. Aquele título afastava-me. Gostava então de palavras com cheiro a capim, a mulheres enrugadas ou a gemidos de amor nas cabanas da beira da praia. Lírios do Campo parecia-me anunciar prosa lírica demais para o meu gosto. Fui ali espreitar. Está no meio de mais outros dele. No entanto, se me lembro dos brasileiros é dos que antes referi que me lembro. Depois, mais tarde, vários outros. E outras também. Várias com uma qualidade assombrosa e não quero citar nenhuma pois não saberia hierarquizá-las e podia ser muito injusta porque, sendo desiguais, de todas eu gosto.

Já mais recentemente comecei a conhecer outros. A mesma riqueza. Tantos tão bons, uma prosa sempre tão suculenta, tão criativa.

Não consigo localizar no tempo, mas tempos houve que era Georges Simenon. Não podia separar-me dele. Olho para trás e há ali uma prateleira cheia dele e não saltei um, li cada um. Não sei porquê nunca me senti atraída pelo Le Carré. Mas o Simenon, que elegância apesar da aparente secura.

Também a Patricia Highsmith ou a Ruth Rendell ou Barbara Vine, mas nada que se compare a Simenon.


Já foi no trânsito que comecei a ler o Garcia Márquez. Lembro-me bem. O trânsito parado, eu a atrasar-me e a qerer que a fila não se mexesse para eu ler mais. Gostei mais do Amor em tempos de Cólera do que dos Cem anos de Solidão. Mas gostei de todos. Uma vez mais, um mundo novo.

Chego aqui e penso: em que altura li a Sibila e fiquei com aquela perturbação boa de quem sente estar a descobrir uma voz nova. Contudo, dos romances de Agustina nenhum outro volto a agarrar-me assim. Recentemente os ensaios, biografias, divações, isso sim. Ou em que altura li todos os do Abelaira -- não consigo localizar no tempo. Ou li de uma penada, entusiasmada com a descoberta, o José Rodrigues Miguéis. Ou quando é que me deliciei com Eça de Queirós, rendida à ironia, ao humor fino, à inteligência elegante, ao charme discreto de Eça...?

E, tendo gostado do Memorial do Convento, logo me desinteressei dos restantes até um amigo me dizer que era imperioso que lesse o Ensaio sobre a Cegueira. Resisti. Mas um dia cedi. E foi um dos livros que me marcou profundamente. Lia até às duas ou três da manhã, sem conseguir parar. Gostava de o reler mas ainda não consegui ter coragem, tenho receio de achar que, afinal, não é assim tão extraordinário. Quero continuar a acreditar que o é.

Não vou continuar porque sinto que estou a aproximar-me de memórias mais recentes.


E não falei da poesia. Da presença constante da poesia. Um dos primeiros livros que pedi pelo natal aos meus pais foi o Poemas do Deus e do Diabo de José Régio. Escolha surpreendente numa jovem alegre, namoradeira, que, por essas alturas, no secundário, optava pela vertente das ciências exactas. Não faço ideia de onde nasceu a ideia mas lembro-me de como me recolhia, lendo aqueles poemas. O primeiro de uma longa colecção de livros de poesia, alimento indispensável.

Olho para a minha vida: sempre cheia de trabalho, não prescindindo de ser mãe a tempo inteiro, nunca faltando a uma reunião na escola, sempre a querer que estudassem, que fizessem os trabalhos de casa, ao fim de semana sempre com amigos em casa ou em casa deles, à sexta e ao sábado à noite sempre na rambóia com família e amigos. E, no entanto, os livros que eu já li.


Uma vez um amigo, um que me deu a conhecer Japrisot, disse-me: nem que eu viva duzentos anos conseguirei ler metade dos livros que tenho. Achei aquilo de um derrotismo desagradável. Hoje penso o mesmo mas isso não me incomoda. Mesmo que apenas os tenha folheado, lido partes, sentido um pouco da beleza que la se esconde já é bom. Não é possível apreender tudo o que de bom há no mundo nem é possível deliciarmo-nos com a harmonia do todo se mergulhamos demasiado a fundo em apenas uma das partes. Vou lendo. E, olhando para trás, quantos mundos já eu visitei através das páginas dos livros...?

Estava há pouco a ver a lista de livros preferidos de alguns escritores e pensei que eu não saberia fazê-la. Mas para que haveria eu de fazer tal lista?

Mesmo não tendo a preocupação de fazer uma, tenho a certeza de que cometi erros grosseiros, deixando para trás autores que muito aprecio -- e já estou a lembrar-me de Aquilino, por exemplo, Ou de Thomas Mann. Ou de Kundera. Se amanhã reler o que estou a escrever ficarei irritada por ter esquecido nomes que tanto de bom me deram e que apenas por não me pôr a pensar antes de escrever ou, mesmo, enquanto escrevo, permito que injustiças imperdoáveis aconteçam. Olha, Yourcenar. Como pude não falar dela? Como se um dos livros que achei melhor escritos não fosse o Memórias de Adriano -- tanto que me recusei a acabar de ler para ter sempre, de reserva, a certeza de que tenho um grande livro para acabar de ler. Ou os vários da Duras que li de seguida? Ou o Durrell? Ou o Beckett? E Hemingway...? Tanto que gostei do Adeus às Armas ou O Velho e o Mar. Ou o que gostei da Cartuxa de Parma?


Tenho que parar. Parece que agora começam a surgir, revoltados, aqueles que silenciei. 

Deveria ter-me preparado antes de ter começado a escrever este post. Pena. Mas agora já não dá, estou cansada, com muito sono, a bem dizer já verdadeiramente a dormir. Nem consigo olhar para trás, para o que escrevi (relevem, pf, as gralhas).

______