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sábado, novembro 12, 2022

Kherson e o tudo o mais que dificilmente compreendo

 


Há muitos assuntos relevantes, cada um em seu patamar. E eu não sei bem em que patamar hoje quero estar. E este 'querer' não tem a ver com afinidade mas com capacidade. Poderia até ter vontade de me abeirar de vários. Mas sei que não iria conseguir. 

Longe vão os tempos em que ficava bem com meia dúzia de horas de sono e, se falo em meia dúzia, até estou a pecar por excesso. Não há muito ia pelo menos uma vez por mês passar o dia em reuniões nas instalações da empresa a norte. Levantava-me às cinco e tal, saía de casa às seis depois de me ter deitado à uma ou duas. E, muitas vezes, com receio de não acordar com o despertador, quase não conseguia pregar olho nas escassas horas de cama. E, no entanto, estava fresca e aguentava um dia inteiro de reuniões, coffee breaks, almoço, viagens. Chegava a casa tarde, voltava a deitar-me tarde e no dia seguinte já estava fresca e a pé às sete e tal e pronta para outro dia.

Agora já não é bem assim. Nos últimos meses passei duas noites no hospital com a minha mãe (felizmente, saindo ela de lá bem) e, em ambos os casos, longas horas a pé (prefiro estar cá fora a andar de um lado para o outro do que estar no meio da apinhada sala de espera). E fiquei francamente cansada. Comparando com a minha resistência dos tempos dos esticões aquando das idas do meu pai às urgências não há comparação. Agora o meu corpo vai-se mais abaixo. Fico a sentir-me quase de gatas.

Ou seja, sinto necessidade de descansar, tenho vontade de ficar a dormir até mais tarde. 

E, por isso, chego a esta hora ou ao fim da semana e sinto que me falta a energia para falar de muitos assuntos. 

- As alterações climáticas e a nossa cultura e a nossa organização enquanto sociedade que nos leva a fazer uma vida assente no consumo de produtos produzidos a milhas, em viagens de avião a preço de uva mijona, em espaços industriais ou de serviços que se situam longe das zonas residenciais, em hábitos que são pouco saudáveis -- seria um dos temas em que hoje gostaria de falar sobretudo porque não vejo que estejamos colectivamente conscientes da inflexão que tem que ser feita, sobretudo porque não estou a perceber bem o rumo que isto está a levar.

- O Twitter, essa plataforma que meio mundo utiliza, nomeadamente políticos, empresários e tutti quanti foi tomada de assalto por um maluco encartado que despediu uns milhares e depois disse que os ia readmitir, depois que ia cobrar a certificação das contas verdadeiras e que ia fazer e depois desfazer,  montes de ideias ideias peregrinas, agora, perante a debandada geral, está nas bocas do mundo pelo risco de falência -- e esse seria outro dos temas sobre o qual também gostaria de falar. 

[A day of chaos brings Twitter closer to the brink]

[Two weeks after Elon Musk completed his acquisition of Twitter, the future of the company has never looked less certain. In the past week alone, one of the world’s most influential social networks has laid off half its workforce; alienated powerful advertisers; blown up key aspects of its product, then repeatedly launched and un-launched other features aimed at compensating for it; and witnessed an exodus of senior executives]

Sobretudo porque há em tudo isto muita coisa que não percebo, a começar naquilo que, pelos vistos, não oferece dúvidas aos milhões que tuitam. 

- Claro que também me apeteceria falar dos milhares de despedimentos do Facebook/Instagram e do que um dia aí virá para desgosto de quem se viciou na exposição pública da vida privada. Sobretudo porque um dia será muito claro que, para além dos fenómenos de adição ou de depressão, estas plataformas são um risco real para a democracia.

- Marcelo e as gaffes diárias (ou será horárias?) e a sua compulsiva necessidade de comentar tudo, seja de que natureza for, a qualquer hora, em qualquer contexto levando aos seus cada vez mais frequentes excessos, enganos, tons inapropriados, palavras deslocadas e/ou escusadas, tiradas infelizes, ideias trocadas e gatadas -- seria outro tema a que gostaria de deitar mão, em especial num dia em que, uma vez mais, se saiu com uma que logo mereceu reparos, correcções e sorrisos. Sobretudo não percebo se o senhor não está bem de vez ou se é achaque passageiro.

- Ou Matt Hancock, o bacano ex-ministro da Saúde inglês, demitido depois de ser apanhado abraçado e a apalpar o rabo a uma colega numa altura em que o distanciamento era obrigatório, e agora deputado, que está agora a participar num reality show, deixando os ingleses divertidíssimos e os conservadores em estado de rebuçado -- e disso eu apetecia-me mesmo falar. Sobretudo porque não percebo bem qual a dele e porque, para dizer a verdade, gostava de ver como reagiríamos se um qualquer nosso ex ministro e ainda deputado se metesse numa destas, a comer insectos e a conviver com cobras.

- E tantos mais temas... 

Mas não dá. O corpo está a pedir-me caminha.

Contudo, ainda assim, para que a vossa visita a esta vossa casa não seja completamente em vão, vou tentar falar de Kherson. Um bocadinho, que não dá para mais. E falo contente, claro. Como não...? Claro que fico contente. As imagens de felicidade dos ucranianos, a jovem a tocar violino na curva da estrada... Claro que tenho que me sentir contente. São momentos épicos.

Desde o dia um, quando -- petrificada e revoltada -- caí na real e constatei que a Rússia tinha mesmo invadido a Ucrânia, tive para mim que Putin não estava apenas a assassinar muitos inocentes e a arrasar um país, estava também a cavar a sua própria sepultura. 

Putin manda destruir prédios, pontes, escolas, teatros, hospitais, manda chacinar uma população e eu olho para o que a comunicação social mostra e o que vejo é a derrocada do regime corrupto e ditatorial de Putin, o que vejo é um perdedor, um desgraçado. E vejo também a incrível força anímica do povo ucraniano, um povo necessariamente vitorioso. 

Contudo, o que se passou com Kherson é qualquer coisa que não entendo bem. É uma vitória ucraniana, certamente. Mas se isso corresponder ao que parece, uma pesada e humilhante derrota russa, a situação será ainda mais caricata. Custa-me a crer que as forças do Kremlin sejam tão nabas e estejam tão desgovernadas como parece porque, se o que está a acontecer é mesmo o que se vê, então tudo isto será mesmo fruto de um delírio absurdo de um homem maluco e de uns quantos cobardes que vivem à sua sombra. No terreno, no dito teatro de guerra, o que parece é que tudo não passa de bandos de patifes deixados à solta, de bandidos descomandados, violadores, ladrões, esfomeados, ou simplesmente jovens espantados e desnorteados, sem uma estratégia que os guie. E, se assim é, como se explica que o mundo assista estarrecido a este circo bárbaro sem ser capaz de impedir o assassino de prosseguir?

A partir daqui, será que é a isto que se vai assistir: debandada geral dos russos, deixando tudo para trás, maquinaria, munições (para além de rastos de barbaridade)? Um dia, mais cedo do que pensamos, acordaremos com a notícia do fim do regime de Putin? Acordaremos, em breve, felizes com a notícia de paz na Ucrânia?

Ou isto não é exactamente o que parece...? Poderemos ainda ser surpreendidos com alguma outra cartada de violência e destruição?

Que Putin vai ser apeado e que a Ucrânia sairá vitoriosa e será reconstruída e será um dos mais felizes países europeus disso não tenho dúvida. O que não sei é se será em breve ou se, até lá, ainda muito mais sofrimento vai acontecer. Isto de Khersen deixa-me um bocado confundida. 

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Ilustrações, de novo, de Pawel Kuczynski na companhia de Nicolas Altstaedt que interpreta Bach/ Cello Suite nr. 1 in G – Sarabande

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Um bom sábado

Saúde. Tudo de bom. Paz.

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

O amor no Facebook. Quais as melhores cidades para se arranjar alguém disponível? Como são os contactos nos dias que precedem a concretização da relação? Qual a reacção quando se rompe uma relação? - Usando a vasta matéria disponível nas suas incomensuráveis (e desprotegidas?) bases de dados, os cientistas do Facebook fizeram um estudo em que as probabilidades e estatísticas incidiram sobre os Relacionamentos Amorosos que por lá decorrem. O 'admirável mundo novo' que se antevê no filme Her cada vez mais próximo.


No post abaixo, dei a palavra a pessoas inteligentes, lúcidas e que mostram que sabem manter-se de pé. Publicaram textos admiráveis na última semana e faço questão de ter aqui as suas palavras como um registo dos tempos que correm. 

Estou muito segura das minhas convicções mais profundas (ie, querer o bem comum, não querer que uns explorem outros, querer que todos possam ter as mesmas oportunidades, querer o progresso e o desenvolvimento feitos em nome da melhoria das condições de vida das pessoas, etc - coisas básicas mas das quais nunca me esqueço nem mesmo quando não fazem outra coisa senão atirar-me poeira para os olhos), e sei pensar por mim, sei fazer contas, estudei lógica e faço questão de a exercitar quotidianamente, etc, etc, etc, pelo que considero que sei analisar razoavelmente bem as situações que se me deparam.

Mas ninguém é o melhor juiz em causa própria pelo que, pelo sim, pelo não, gosto de saber o que pensam pessoas que considero terem boa cabeça e não serem desses avençados ou marias-vão-com-as-outras de que os media estão cheios. Gosto de confrontar as minhas opiniões com a de outros que respeito.

O que poderão ler abaixo é uma espécie de best of do que li nos jornais da semana que passou. Palavras fortes ou irónicas, palavras contundentes ou, apenas, desencantadas. 

Estando mais do que avisada para que aqui na blogosfera os textos não se querem grandes, tentei atenuar o efeito de 'lençol', ilustrando o post com imagens da autoria de Pawel Kuczynski que me parece que vêm a calhar com o que ali se diz e escolhi um acompanhamento musical que me parece também adequado, o Lamento da Ninfa, interpretado pelos L'Almodí Cor de Cambra.

Mas isso é no post a seguir a este. Aqui, agora, a conversa é muito diferente. Aqui a conversa é sobre amor. 

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Eu, como é sabido, prefiro os relacionamentos ao vivo e a cores, cartas de amor, mão na mão, mão na..., etc e tal, pelo que faço entrar Diana Krall para nos cantar a sua versão de Love Letters.






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Li a notícia 'O olhar do Facebook sobre as relações amorosas' no Público, escrita em toda a sua inocência, fiz pesquisas e em vários outros jornais respeitabilíssimos a nível internacional dei com a idêntica descrição do comportamento dos que se mostram interessados ou apaixonados, depois com a descrição de como decorrem os contactos enquanto dura a relação e, finalmente, quando há um desfecho negativo, como é o day after e os seguintes. Como se isto fosse uma coisa normal.


Não é.

Transcrevo pequenos excertos de um artigo que, por estar em língua portuguesa, retiro do Público; mas, do que vi por todo o lado, o tom é o mesmo - nada mais que uma pequena frase de reserva que quase passa despercebida (coloquei-a mais escura para que reparem nela).


(...) em cerca de dois terços dos relacionamentos entre pessoas de sexo diferente o elemento do sexo masculino é mais velho. Em média, tem dois anos e cinco meses mais do que a mulher. Em Portugal, a diferença está abaixo dos dois anos.

Numa outra análise — que vem mais uma vez ilustrar o poder do Facebook para escrutinar a actividade dos utilizadores —, os investigadores resolveram olhar para as interacções de pessoas que tinham acabado uma relação recentemente. A ideia era perceber se a rede social funcionava naqueles momentos como uma plataforma de apoio por parte de amigos e familiares. Foram recolhidos dados sobre as mensagens enviadas e recebidas, as publicações feitas e os comentários em publicações, tanto dos utilizadores em análise, como dos respectivos amigos.

Os números acabaram por mostrar um aumento médio de 225% nas interacções ao longo do dia correspondente ao fim da relação, seguido por um decréscimo nos dias seguintes, para valores que acabam por ser superiores aos existentes no período anterior ao rompimento.

A rede social também parece funcionar como um instrumento de aproximação entre os elementos do futuro casal, que perde importância à medida que o início do relacionamento se aproxima. Analisando as interacções no Facebook feitas entre duas pessoas nos 100 dias antes daquele em que declararam estar numa relação, é visível um aumento de interacções ao longo de 88 dias. Nos 12 dias anteriores, as interacções sofrem uma queda abrupta, que continua nos dias após o início do relacionamento. Presumivelmente, a interacção online é substituída por outras formas de contacto.

(...)


No estudo é interessante ver os diversos capítulos como, por exemplo, o que se refere à Formação do Amor onde se escrutinam as palavras escritas antes do dia em que a relação é assumida e o que se passa a seguir.

Ler este estudo é tomar contacto com um mar de curiosidades. Contudo, para mim é a prova consumada da perversidade de toda esta máquina fora de controlo onde as pessoas se expõem e inocentemente confiam na privacidade do que lá fica guardado. As pessoas pensam que, por falarem em privado, isso não é visto por mais ninguém.

Engano.

O que é escrito no Facebook, em zonas públicas ou privadas, fica armazenado nos computadores do Facebook, acessível a quem os gere.

Mais do que aquilo estar acessível, aquilo está de facto ao serviço do modelo de negócio da empresa Facebook, uma das maiores do mundo. A empresa Facebook vive de vender publicidade, cruzando o que os vendedores querem vender (pagando por isso) e as pessoas cujos perfis apontam para que sejam receptivas a certos produtos ou serviços.

Por exemplo, se eu tivesse perfil no facebook e falasse de sapatos e tivesse amigas que falassem de sapatos, é certo e sabido que me haveria de aparecer publicidade relativa a sapatos, moda, etc - a mim e a elas.

Ou seja, há programas informáticos que 'varrem' tudo o que é escrito (seja em público ou em privado), catalogando por temas tudo o que por lá se passa. Uma vez tudo devidamente indexado, a máquina comercial começa a funcionar.

Mas a vassoura informática, como agora se vê, não procura apenas temas que possam transformar-se em negócio: procura tudo o que vem à cabeça dos cientistas que por lá trabalham.

Cientistas à solta, num mundo desregulado, e a operarem num mundo global, sem fronteiras, acima dos estados e das leis, são um risco.

Agora deram-se ao luxo de ir ver quando é que as pessoas começam a dar mostras de se estarem a aproximar de outras e, a partir daí, seguem-nas, medindo o número de vezes que dizem amor, desejo, beijo, sexo, etc, cruzando as trocas de palavras entre o par amoroso com as que se dizem aos amigos, contextualizando os factos. Isto e muito mais. Vêem as idades e as religiões dos casais, estabelecem padrões comportamentais.

Claro que tudo isto (até ver e do que se sabe) é feito sem cuidar de saber se estão a ver a informação de A ou de B. Mas, ainda assim, isto revela como tudo está disponível e acessível para que todos os malucos que o queiram usem e abusem do que por lá encontram.

Estas empresas contratam em larga escala os melhores alunos de cursos como a Matemática, a Física, a Engenharia Informática. Cientistas destas áreas pelam-se por estudos deste tipo, desafiantes, complexos, em que possam aplicar tudo o que aprenderam. Eu que estudei matérias destas e modelos e processos de simulação, etc, leio isto e ocorrem-me logo estudos interessantes que se poderiam fazer com base na quantidade quase infinita de informação disponível. Deixassem-me à solta (e fosse eu outra), saberia bem como me tornar um perigo.

O filme Her, em que um homem se apaixona por um sistema operativo, assenta a história no facto de alguém ter concebido sistemas operativos aptos a analisarem a informação relativa a cada utilizador e, a partir daí, assumirem os contornos que venham mesmo a calhar para se tornarem insubstituíveis na vida do user. Ou seja, por exemplo, se o homem se divorciou, sai-lhe um computador que fala com uma voz feminina sensual, atenta e carinhosa, se o homem escreveu num determinado dia um mail mais emotivo, lá estará a voz de mulher a fazer conversa sobre isso, compreensiva, querendo saber pormenores. De facto, um filme como este dá bem o sinal do que será tecnicamente possível se tudo for permitido.

É engraçado uma pessoa apaixonar-se por um programa de computador, é curioso, é perturbante, tem o seu toque de exotismo, de interdito, é tudo isso, mas até que nível de devassa estamos dispostos a permitir por parte de terceiros e para que tipo de solidão caminhará a espécie humana se se for afastando dos seus amigos e amantes de verdade e, aos poucos, se for deixando envolver por programas concebidos para manipular as pessoas, tornando-as dependentes e, de facto, cada vez mais solitárias?






Her é dirigido por Spike Jonze e é interpretado por Joaquin Phoenix que faz o solitário Theodore  .
O sistema operativo dá pelo nome de Samantha e a voz é de Scarlett Johansson


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As imagens sobre o Facebook são, uma vez mais, de Pawel Kuczynski.

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Relembro que se, depois deste, seguirem até ao post abaixo, poderão ler textos admiráveis de vozes inteligentes e lúcidas publicadas na semana que passou (e, também, ver as imagens muito apropriadas do polaco que também ilustra este post.

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Faço ainda questão de vos convidar o irem até ao meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa. Hoje é dia grande: há um novo vídeo do Cine Povero. Desta vez é a poesia de Herberto Helder na voz de Fernando Alves e tudo, uma vez mais, maravilhosamente entretecido pelo Cine.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta semana.
Saúde, alegria, sorte - é o que vos desejo.

domingo, fevereiro 16, 2014

Retrato dos tempos que correm: a palavra a Rui Zink, Pedro Tadeu, Viriato Soromenho Marques e Pedro Santos Guerreiro. 'O aprendiz de Maquiavel em dez lições'. 'A Europa prometeu-nos o paraíso. Lembra-se?'. 'Regras de etiqueta'. 'Vende-se, bom preço'. A música é 'Lamento della Ninfa' interpretado pelos L'Almodí Cor de Cambra e as ilustrações são de Pawel Kuczynski.


A palavra a quem a usa com inteligência, serenidade e lucidez - e felizmente, apesar de tudo, ainda há vozes assim na nossa imprensa.

As imagens ternas e tristes na sua crueza são de Pawel Kuczynski, um polaco nascido em 1976, formado em Artes, que já recebeu inúmeros prémios e cuja obra se debruça essencialmente sobre pobreza, a fome, a guerra, o trabalho infantil, a corrupção política, a poluição, a exploração e a desigualdade social.


Mas, antes, por favor, música: L'Almodí Cor de Cambra interpretam Lamento della Ninfa de Claudio Monteverdi.

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O aprendiz de Maquiavel em dez lições - RUI ZINK 


Cumpre estas leis e poderás, pela calada, desobedecer a todas as outras.


1. Inculca culpa na tua vítima. Convence-a de que é responsável pelo que lhe está a acontecer. Se o fizeres, a tua tarefa estará facilitada. Lembra-te: se aqui vítima há, és tu, cujas intenções são “incompreendidas” pelos “ingratos e invejosos”.

2. Usa palavras mágicas: pátria, empreendedorismo, sacrifício, futuro, reformas, construir, acreditar, inovação. Baralha-as numa Bimby e faz bimbices. Se conseguires dizer sem te rires algo como “Pensar e preparar o futuro do nosso país é proporcionar às gerações que nos irão suceder as ferramentas adequadas para construir um Portugal diferente, num quadro de qualidade, responsabilidade e inovação”, tens um lugar assegurado.

3. Diz que compreendes a insatisfação dos prejudicados e concordas que, sim, têm razão, mas agora não pode ser nada. Justifica-te com a burocracia, a qual és o primeiro a combater. Pede para adiarem o seu protesto, que tu próprio reconheces como justo, “houve de facto erros, a corrigir no futuro”, mas que em breve tudo se resolverá, se as pessoas tiverem “calma e paciência” e souberem “aguardar discretamente”.

4. Desvia as atenções. A forma mais prática de aliviar uma afta é martelar um dedo. Estudo de caso: há anos, um governo estava em crise com uma sucessão de demissões. Um ministro de génio (para estas coisas) marcou uma conferência de imprensa a anunciar a construção da terceira ponte lisboeta sobre o Tejo. Todos os jornalistas caíram no engodo – por malícia, naiveté ou pura cumplicidade. Aplica estes e os outros preceitos e terás a vida facilitada.

5. Usa factos. Não importa quais. E números. Muitos números. Mostra gráficos. Sê firme, mesmo que não saibas o que estás a dizer. Não te preocupes, com sorte o teu interlocutor não terá informação ou coragem para te confrontar, e o risco de seres apanhado é inferior a 1,6% (número que acabo de inventar, aliás). Quando te apresentarem factos contrários, responde que “são casos isolados”. Simplifica ao absurdo mas, se necessário, foge na direcção contrária, e diz que “a questão é demasiado complexa” para ser tratada “daquela maneira” na praça pública.

(...)

7. Sabes que a crise tem unicamente por função baixar “o custo do trabalho”. Corrijo: também servirá para vender alguns anéis públicos, e os dedos que a eles vierem colados. Só que baixar o custo do trabalho é a prioridade. Infelizmente, não o podemos dizer desta maneira. Então mostra compaixão, geme, condói-te, solidariza-te, “compreende”. Etc. Faz como te digo e vais ver que tudo corre bem.

8. Defende e respeita a tradição. Porque a tradição é “a alma dum povo”. Lembra que, em contrapartida, para progredir é preciso “proceder a reformas necessárias”. E são sempre necessárias, essas reformas, ainda que “dolorosas”. Tu compreendes que são dolorosas, só que necessárias. Em simultâneo, tenta respeitar “as bonitas tradições do nosso povo e de nossos pais”. E nenhuma é tão bonita como o futebol.


Cumpre estas leis e poderás, pela calada, desobedecer a todas as outras. Ámen.

(...)


*


A Europa prometeu-nos o paraíso. Lembra-se? - PEDRO TADEU


Primeiro é a Suíça. Seguir-se-ão, é previsível, a Grã-Bretanha e a França (entretanto liderada por Marine Le Pen) e, depois, uma catadupa de Estados pequenos mas ainda abastados da União Europeia até, finalmente, chegar a vez da Alemanha. Se eu tiver razão - e espero que não - dentro de meia dúzia de anos acabou-se a liberdade de circulação de trabalhadores entre os países assinantes do tratado de Schengen e da União Europeia.

Em contrapartida, cada um destes países, que procura livrar-se de imigrantes vendedores de mão-de-obra, tenta ser mais competitivo do que os seus aliados na capacidade de atracção de capital estrangeiro.

Temos soluções, estilo "visa gold", a dar nacionalidade europeia a qualquer riquito que se apresente com meio milhão de euros e esteja disposto a ser enganado na compra de imobiliário sobrevalorizado, como está a acontecer em Portugal.

Temos uma constante diminuição do nível de impostos sobre as empresas - enquanto os impostos sobre o trabalho sobem - a transformar cada vez mais Estados desta Europa da globalização numa montra de paraísos fiscais com falso selo de respeitabilidade. Olhem para a Holanda, para o Luxemburgo e para o que quer fazer a Irlanda.


Temos até o socialista António José Seguro a prenunciar uma governação estilo François Hollande (típica da esquerda baralhada), ao defender tribunais especiais para estrangeiros investidores que queiram comprar os favores da nossa justiça.
(..)
Se nada mudar, a Europa do futuro é já desenhável pelas tendências das reformas fiscais: as baixas do IRC, os benefícios fiscais e a diminuição das taxas de Segurança Social para as empresas, que se discutem e se aplaudem de Lisboa a Sófia, enquanto o ataque aos pensionistas e ao IRS dos empregados não é, de maneira alguma, exclusivo português.

A Europa do futuro abrirá, assim, os braços a passadores de droga que tentam lavar dinheiro sujo; até os subsidiará. A Europa do futuro terá pedras na mão para receber um operário que procura trabalho noutro país da União. A Europa do futuro aceitará ser a sede luxuosa de empresas que escravizam, em fábricas distantes, crianças de 8 anos. A Europa do futuro recusará um visto a um jovem cientista candidato a um contrato de três anos num laboratório de ponta.


A Europa do passado prometeu-nos o paraíso na terra. Lembra-se?


no DN

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Regras de etiqueta - VIRIATO SOROMENHO MARQUES


A expulsão pelo PSD de António Capucho, um cidadão respeitado e com serviço público prestado visível, não me parece uma simples questão de (in)disciplina partidária. Confronta-nos, sobretudo, com a dura realidade do envelhecimento da nossa democracia representativa. 


Em quatro décadas passámos do mais puro idealismo de partidos entendidos como organizações ao serviço do desejo de participação cívica dos eleitores, para a partidocracia pura e dura actual. Mesmo nas zonas da esquerda mais longínqua, onde o acesso ao Orçamento de Estado é bastante indirecto e rarefeito, quem quiser abrir a janela pode constipar-se. 

Por exemplo, o tratamento que tem sido dado a Rui Tavares, e ao seu novo partido, evoca a atmosfera descontraída do filme Há Lodo no Cais... 

Em poucas décadas, os partidos transformaram-se de instrumentos da cidadania em agências de empregos bem pagos para pessoal com baixas classificações, mas pronto para qualquer função. Voltar a meter muito da "cultura" praticada pelos partidos na ordem constitucional, que não os desenhou para serem fins-em-si-mesmos, não será tarefa fácil. 

Mais do que nunca reina o princípio de que quem ganha as eleições administra os despojos (spoils system). E numa altura em que o troféu é um país inteiro, mutilado no seu património, aturdido no seu ânimo, e que até a alma parece ter para venda, a unidade de comando do chefe máximo torna-se indiscutível. 

Querem uma síntese para o caso António Capucho, e para a recusa do seu pedido de defesa antes da aplicação da sentença de expulsão? À mesa não se fala...



No DN


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Vende-se, bom preço - PEDRO SANTOS GUERREIRO



Vendem-se direitos humanos e língua portuguesa, base de licitação de 133,5 milhões de euros depositados no Banif. Quem dá? Pás!, vendido à Guiné Equatorial.


Vende-se inocência para pequenos e grandes devedores fiscais. Bom negócio, oferta de juros e coimas. Quem quer? Arrematado: encaixe de 1,3 mil milhões de euros, desconto de 500 milhões. Siga para bingo.
(...)
Vendem-se impostos baixos para empresas, inclui benefícios fiscais para grandes empresas. Só para VIP. Custo: 70 milhões de euros no primeiro ano, 220 milhões nos seguintes.
(...)

Vende-se austeridade. Custo: uma geração. Pagamento em recibos verdes.


Vende-se ilusão de ultrapassagem da crise. Custo: 130% de dívida pública.


Vendem-se anéis como se não fossem dedos, corpo como se não fosse a alma, palavras como se não fosse a palavra.

Compra-se submarinos, estradas vazias, bancos validos e dívida pública cara. Sem devolução. Paz? Pás.



No Expresso de 15/2/2014



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