Mostrar mensagens com a etiqueta Itzhak Perlman. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Itzhak Perlman. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, abril 17, 2019

Carta de Paulo* aos políticos e aos capitalistas hipócritas






Permita-me algumas considerações pessoais sobre o debate em torno da “Sustentabilidade do sistema de pensões português”. Não sou especialista na matéria e, correndo os riscos de imprecisão de um leigo, procurarei apenas com as minhas considerações pessoais ancoradas no tal estudo demonstrar que o grande problema do estudo não é “técnico” mas político. 

O “crime” cometido pelos autores e promotores do estudo é exatamente procurarem esconder a relação – incontornável – entre a economia (enquanto ciência) e a política.

Ora, os estudos em ciências sociais (e na economia em particular) adotam necessariamente um conjunto de pressupostos e assumpções as quais, na generalidade, podem facilmente ser associadas a determinadas opções políticas.

Neste estudo em particular as conclusões são facilmente explicáveis desde logo pelos pressupostos explícitos (ou seja, sem analisarmos os implícitos): consideram-se a) a imutabilidade das regras atuais do sistema, b) baseia-se num determinado cenário de projeções demográficas e c) assenta numa análise da evolução da economia no que concerne apenas ao emprego e salários.

O que salta logo à vista neste trabalho é uma análise cuidada dos diferentes efeitos associados à evolução da produtividade e à consequente distribuição da riqueza gerada.

- Para começar, mensurar a produtividade não é tão simples como possa parecer. O estudo adopta a perspetiva salários+contribuições sociais / hora trabalhada. Ora, este indicador é especialmente indicado para avaliar a resistência de uma dada opção política estabelecida face a possíveis efeitos exógenos. Por exemplo, a produtividade mensurada pelo PIB / horas trabalhadas dá-nos, naturalmente, perspetivas diferentes sobre a economia como um todo e é especialmente útil para analisar diferentes opções políticas face a um mesmo cenário.
https://data.oecd.org/lprdty/gdp-per-hour-worked.htm#indicator-chart 
Um dos argumentos do estudo para os resultados negativos do atual sistema de protecção social é uma evolução muito comedida do primeiro indicador de produtividade que referi. No entanto, um comportamento negativo deste indicador não tem de representar necessariamente uma baixa geral da produtividade dos trabalhadores (ou seja, não tem de ser propriamente “negativo”). De facto, tal poderá ocorrer por motivos positivos (por exemplo, redução do horário de trabalho mas manutenção dos níveis remuneratórios). Infelizmente, os motivos negativos provavelmente são os mais prováveis: uma tendência de moderação dos salários e contribuições, mantendo-os sistematicamente abaixo da evolução do produto interno bruto (ou seja, uma diminuição do bolo que é produzido atribuído aos trabalhadores…). Assim, um dos primeiros pressupostos questionáveis do estudo é considerar que os cidadãos vão permitir uma perda dos ganhos crescentes associados ao cada vez maior volume e valor da produção (que pode ser obtido por via da crescente automatização e robotização de muitos processos produtivos num período em que transitoriamente os trabalhadores não terão as competências necessárias para abraçar os novos trabalhos que surgirão na economia – e note-se que até estou a pressupor que no longo prazo não haverá propriamente uma destruição de emprego por via da robotização, mas no curto / médio prazo acho-a inevitável. 

Vamos agora às questões de distribuição.

As contribuições para a segurança social somam apenas 9,3% do PIB (valor que não tem registado grandes alterações desde 2000), sendo uma das percentagens mais baixas da Europa.
https://data.oecd.org/tax/social-security-contributions.htm 
Ora, não vejo porque devemos admitir que esta opção política de colocar em segundo plano o esforço coletivo na construção do sistema de segurança social não se irá alterar. De facto, poderá alterar-se de muitas maneiras. Podemos, claro, privatizar o sistema, o que provavelmente tornará o sistema mais caro e, desta forma, para os mesmos níveis de protecção, necessitaremos de gastar mais. Mas podemos admitir também que a segurança social passa a ser um dos grandes desígnios de política pública e, das duas uma, admitimos um aumento da carga fiscal (com a contrapartida de um sistema melhor e mais robusto) ou, mantendo a mesma carga fiscal em % do PIB, abdicamos do papel do estado noutras áreas geridas pelo estado. Note-se, no entanto, que o estudo refere, no cenário mais negativo, a necessidade do orçamento de estado transferir para a segurança social o equivalente a 5,2% do PIB. Ora, independentemente deste valor ser obtido por via do aumento de impostos ou realocação da despesa do estado, isto colocaria o peso relativo do financiamento da segurança social ao nível do que se regista hoje em países como a Alemanha, Eslovénia ou República Checa. Nada de extraordinário portanto.

Por fim, olhemos para o problema concreto do financiamento indexado às compensações por trabalho recebidas pelos trabalhadores assalariados (salários mais contribuições para o sistema de proteção social). O indicador que mede o peso dessas compensações em função do valor acrescentado produzido pela economia tem vindo a cair ligeiramente (de 54,92% do valor acrescentado em 2000 para 50,12% em 2015 e uma ligeira recuperação para 51.87% em 2018. https://data.oecd.org/earnwage/employee-compensation-by-activity.htm#indicator-chart Ora, estes dados sugerem que um dos grandes problemas do sistema de segurança social pode ser exatamente a cada vez menor repartição do valor acrescentado produzido com trabalhadores; como o financiamento da segurança social é sensível à alocação de recursos que a economia coloca nos trabalhadores, se estes recebem uma proporção cada vez menor, naturalmente o sistema, num momento de transformação demográfica, ver-se-á sobre pressão (lembra-se daquela medida fantástica do Passos Coelho de diminuir drasticamente as contribuições asseguradas pelas empresas por cada trabalhador e aumentar as contribuições diretas do trabalhador? Vinha exatamente acelerar este fenómeno de realocação dos recursos produzidos pela economia, beneficiando a empresa e os seus proprietários). Claro que a direita argumenta que é necessário dar uma parte maior do bolo às empresas, para elas investirem e fomentarem o crescimento económico; dando crédito a esta ideia peregrina em Portugal… eu diria… sim, tudo bem, mas não vamos financiar as empresas à custa da segurança social! (e depois são os “ciganos” que vivem à custa da segurança social…)



Agora que descasquei no estudo, vamos ao que interessa mas que os senhores do estudo se esqueceram – bem como a maioria dos actores políticos no geral: existem mudanças importantes / opções políticas “indirectas” que poderiam ser adoptadas e ter efeitos muito positivos sem mudar por aí além o sistema atual (ou seja, como os senhores do estudo fizeram, assumindo o sistema atual como ele é e atuando noutras variáveis do sistema socioeconómico que alterem, de alguma forma, os pressupostos base adoptados nas previsões que fizeram). De entre essas alternativas destaco algumas que poderiam permitir aumentar significativamente a eficiência do sistema contributivo atual:

- Acabar com grande parte dos inúmeros regimes de exceção de contribuições para a segurança social, os quais abrangem desde a) isenções a empresas como forma de estímulo ao investimento e à contratação (note-se que não falo acabar com estímulos ao investimento, mas sim que os mesmos não sejam financiados pela segurança social!) até b) os regimes de trabalho não reconhecido – puxando a brasa à minha sardinha – como é exemplo os bolseiros de investigação (mais de 25 000 que não contribuem durante anos para a segurança social, na fase da sua vida em que mais “lucro” dariam ao sistema! Estamos a falar de valores que devem andar na ordem dos dez milhões de euros por ano, que o estado desvia da segurança social para outras despesas públicas… ou seja, mais uma vez, fazendo outras políticas públicas com o financiamento que deveria ser direcionado para a segurança social!)

- Tornar os sistemas de proteção social na doença mais eficazes. É necessária uma “reforma estrutural” enérgica nas condições de segurança e higiene no trabalho: continuamos a ter estatísticas negras de acidentes de trabalho e a eficiência de utilização dos seguros de acidentes de trabalho está longe de ser efetiva (acabando quer por o serviço nacional de saúde ser onerado em muitos casos sem ser ressarcido pelas seguradoras, quer a própria segurança social que acaba por assegurar prestações e afins que deveriam ser asseguradas pelas seguradoras!). 

- Tornar o sistema de protecção no desemprego muitíssimo mais eficiente e focado naquilo que é essencial: requalificar a força de trabalho, diminuindo dessa forma as probabilidades de desemprego e aumentando o valor acrescentado que o trabalhador pode oferecer ao sistema produtivo. O sistema de proteção no desemprego atual está inundado de ineficiências – desde colocar os desempregados em formações curtas, de qualidade e utilidade questionáveis, desarticulando / segregando os desempregados socialmente, colocando os desempregados a cumprir exigências absurdas e descabidas (como a caça ao carimbo em empresas para comprovar a procura ativa de emprego) e terminando nos benefícios fiscais (mais uma vez redução ou isenções nas contribuições para a segurança social dos empregadores) na contratação de desempregados, sem que se garantam exigências como contrato sem termo, taxa de rotação reduzida, etc.


Desculpe(m) o longo comentário mas é um tema que me interessa e que me preocupa, pelo que não podia deixar de debater. E desculpe(m) a escrita enrolada (é texto bruto, sem revisão).

Permita-me só mais um comentário:

As conversas criticas / miserabilistas que refere não são propriamente uma inveja genuína sobre quem ganha razoavelmente. Essas conversas, parece-me decorrem de várias situações, das quais destaco: 1) as pessoas têm rendimentos miseráveis (o rendimento declarado por 72% dos agregados familiares não vai além de cerca de 1300€/mês mais coisa menos coisa!! cerca de 650€/mês/pessoa num agregado com dois elementos que obtém rendimento), pelo que acaba por ser difícil de compreender e aceitarem as decisões de consumo de outros que os rodeiam (até porque as condições miseráveis tornam as pessoas muito mais dependentes umas das outras e isso leva-as a criticar a pessoa que compra um livro e depois dá o golpe no autocarro e não paga o bilhete...); 2) as pessoas têm ambientes de trabalho muitas vezes inacreditáveis, convivendo com desigualdades gritantes no dia-a-dia, inclusive com a ostentação agressiva de pessoas que ganham pouco mais que elas mas o suficiente para investirem na ostentação e em mecanismos de uma patética demonstração de estatuto; e isto nem é tão pronunciado na grande empresa, onde o tal CEO , filho do patrão, ganha 153x (tipo pingo doce) mais que o empregado caixa (mas nunca se cruza com este e até mostra um certo low profile quando isso acontece) [se bem que me recordo do recente caso do senhor da altice que veio visitar o centro de investigação e desenvolvimento da empresa que comprou (PT), de helicóptero, com aparatos de rock star... e passado uns tempos desatou a despedir malta de forma agressiva... e estamos a falar de malta altamente qualificada nas tecnologias de informação... ], mas por vezes não se imagina a violência dessa ostentação agressiva a que as pessoas são sujeitas na "chafarica" da porta ao lado, onde trabalham, numa pequena / média empresa familiar, em que 50% dos funcionários são familiares em primeiro ou segundo grau, que não cumprem códigos do trabalho, de segurança e higiene, etc (e o nosso tecido económico é maioritariamente constituído por pequenas e médias empresas).

Sim, por cada exemplo mau, acredito que haja pelo menos um bom. Mas ainda assim... para quem vive com a corda na garganta todos os meses até o mais ínfimo luxo (um livro) pode ser uma "afronta". 



A classe média é importante sim. Mas infelizmente ela é muito reduzida e não tem propriamente aumentado. O que temos é muitas situações miseráveis e uma massa de malta remediada mas que tem pouco autonomia, depende muito da decisão do vizinho do lado (porque se ele se mostrar muito aberto a luxos, aumentam o pão...) e por isso pouco racional nas observações que faz sobre a vida dos outros.

Um problema complicado!




_____________________________________

* O texto que acima transcrevi é da autoria de Paulo Batista e gostei tanto de lê-lo que tomei a liberdade de o puxar dos comentários do post dos 'misteriosos pobrezinhos'  aqui para cima.

Fui intercalando pintura contemporânea da Argentina apenas porque me apeteceu ter aqui cores vibrantes e juntei-lhe Itzhak Perlman a tocar o meu tango preferido  só porque sim.

____________________________________

Posfácio de Paulo Batista, depois de reler o texto publicado:


Acabei de reler o texto.

Desde logo fico preocupado: a displicência "gramatical" com que escrevo nos comentários deixa-me envergonhado exposto assim. Desculpe (e desculpem) o menor cuidado.

Fazendo alguma autocrítica ao texto, não posso deixar de salientar que talvez tenha sublinhado demasiado um certo conflito trabalhador versus empresa, quando não é tanto esse o ponto fulcral. Por exemplo, quando falo na opção de aumentar a carga fiscal não é tanto nesse dualismo trabalhador vs empresa. De facto, não sublinho o problema essencial que não permite que tal medida possa sequer ser equacionada: as enormíssimas desigualdades de rendimentos dos indivíduos e, sobretudo, a enormíssima desigualdade na taxa de esforço nas contribuições. Ou seja, o foco não é tanto um problema na divisão do bolo entre os trabalhadores e a empresa em abstracto, mas o comportamento, cada vez menos solidário, dos indivíduos que lideram essas mesmas empresas - não só aqueles que delas extraem o grosso dos seus rendimentos, mas também daqueles que as lideram, extraindo um quinhão substancial do rendimento gerado (os tais que ganham 153x mais que os trabalhadores que menos recebem). 

São estes grupos de indivíduos que não só recebem uma proporção pornográfica do rendimento, como ainda por cima contribuem substancialmente menos que a generalidade do trabalhador assalariado de baixo e médio rendimento - ou seja, são estes que subtraem a responsabilidade social das empresas que lideram em benefício próprio.

Alarmante ainda é a completa cegueira política, não só sucessivamente incapaz de desenhar soluções para esse problema, de redistribuição dos esforços, como tendo vindo a promover exatamente medidas que amplificam estes problemas. 

O problema não é assim tanto de desigualdade entre trabalhadores assalariados ou até dos esforços contributivos genéricos / proporções dos contributos trabalhadores vs empresas (enquanto instituição coletiva). O problema está nestes buracos negros de privilégio - dos monopólios entregues pelo estado e por ele protegidos, das suas concessões e parcerias ("público - privadas"), das suas ações de discriminação "positiva" desses mesmos "rendistas" (o caso do imobiliário é gravíssimo embora se fale pouco por desse fenómeno...), da proteção dessa elite "gestionária"(nomeadamente, da elite financeira / bancária), (etc etc etc), porque a estes "buracos negros" estão associados esses indivíduos que subtraem a esmagadora maioria do rendimento gerado, fazendo-o desaparecer (tantas vezes legalmente!), sem qualquer contribuição.

Concluindo, coloquei demasiada ênfase naquilo que são opções políticas, quando na verdade faltam até as condições de base para essas opções políticas serem discutidas. 

Um problema ainda complexo... 

quarta-feira, janeiro 09, 2019

Uma cerimónia de perdas





Tive que ir ao médico por um destes dias. Na sala de espera, de imediato procurei revistas. Infelizmente nada de útil, só revistas médicas e do expresso, ainda por cima antigas. Portanto, ia treslendo e, de soslaio, vendo quem estava, ouvindo conversas.

E uma conversa fez-me especial impressão. Uma senhora talvez com setentas e tais, ar de pessoa com posses, triste e abatida, contava que o marido tinha estado em observação numa clínica privada e que, dada a sua situação, de lá tinham chamado uma ambulância e passado uma guia de marcha para um hospital público. Contava ela, com voz aflita, que o marido estava muito mal. E que, apesar de estar tão mal, tinham-no deixado ficar umas horas na urgência. Com a voz embargada, contava que, ao fim de três horas sem saber o que se passava, conseguiu que a deixassem entrar e que foi dar com ele numa cadeira de rodas, no corredor. Dizia ela: 'Naquele estado e ali assim, sozinho, na cadeira de rodas'. E dizia que, como o hospital estava cheio, o tinham internado num piso intermédio por cima das urgências. E falava em voz baixa, assustada, com medo do que pudesse acontecer ao marido.

Percebo-a muito bem. Percebo a sensação de vulnerabilidade quando uma pessoa está doente, à mercê dos outros.


Felizmente a única vez em que me vi numa situação minimamente parecida foi coisa de nada. Tinha feito artroscopia aos joelhos (um disparate para o qual ainda hoje não encontro grande explicação) e uns dias depois tive o que creio ter sido uma reacção à epidural: uma enxaqueca como nunca antes tinha tido, insuportável. Não podia sequer ver luz. Calhou nesse dia ter consulta no hospital. De tal forma estava que me aconteceu o impensável: vomitei no carro. Não dava para parar e não consegui evitar. Cheguei à recepção do hospital e tive que ir à pressa (eu, que mal conseguia andar) à casa de banho para voltar a vomitar. Quando estava no consultório, mal conseguia falar, estava quase afónica. E, então, comecei a ver tudo branco, a sentir-me esquisita, a sair de mim mesma. Só percebi que o médico saíu apressadamente. Voltou com um copo de água com açúcar que me deu a beber e logo a seguir chegou uma enfermeira com uma cadeira de rodas. Sentaram-me lá e levaram-me a correr para o SO. E eu vi-me, indefesa, sem forças, sem voz, agoniada, cheia de dores de cabeça, a ser levada em cadeira de rodas pelo meio de uma recepção cheia de gente. Eu que sou discreta e que detesto dar nas vistas, vi-me incapaz de sequer opinar, quanto mais ir pelo meu pé para onde quer que fosse.


Mas se comigo foi esta coisa de nada, com o meu pai, infelizmente, já passei pela triste evidência de que, na doença, todos são iguais na vulnerabilidade e que, se calha o hospital estar cheio, todos para ali ficam, expostos, frágeis, indefesos, à mercê de tudo.

Não vale a pena a gente pensar que não é justo ou que poderíamos pagar cuidados diferentes porque, de facto, não vale a pena: quando se está mesmo doente e se é levado para um hospital, nada mais há a fazer senão esperar que alguém acuda, que alguém tenha tempo para se acercar. De cada vez que o meu pai esteve nesta situação, ando por ali, entre gente que tosse e grita e geme e chama, tentando abstrair-me da infelicidade que é estar naquelas desafortunadas circunstâncias. E vou à procura de um enfermeiro que vá aspirar o meu pai ou de um médico que me diga o que se passa e estão todos ocupados e o tempo passa e o meu pai e todos os outros doentes para ali estão, indefesos, certamente muito infelizes, à vista de todos. A vida é sábia: o que vale ao meu pai é que já não vê e já perdeu um pouco a noção exacta do que acontece quando é levado para fora do seu espaço habitual. Porque senão, orgulhoso como sempre foi, haveria de se sentir humilhado por estar estar exposto na sua fragilidade, ali, numa maca, ao pé de outras macas e de outras pessoas que por ali andam.


Claro que era bom que houvesse o dobro dos hospitais, o dobro dos médicos, o dobro dos enfermeiros e dos auxiliares. Mas, se tivéssemos serviços públicos a dobrar, pagaríamos impostos a dobrar e isso também ninguém quer.

A única coisa que desejo é que a vida seja generosa para comigo e para os meus e que situações destas sejam raras, pouco dolorosas -- porque sei que passar por isto é uma pouca sorte.

E se passar por estas situações é triste em qualquer idade, pior é para os mais velhos que, pelas vicissitudes da sua saúde, ou ausência dela, vão assistindo ao seu próprio declínio, impotentes, dependentes, sem nada poderem fazer. Que ao menos haja quem os acompanhe e apoie e, na medida do possível, os faça sentir queridos e protegidos.


--------------------------------------------------------

E lembrei-me de escrever isto ao ver o vídeo abaixo que mostra o poeta Donald Hall. O vídeo chama-se Old Age Is a Ceremony of Losses. 

Sei bem que o meu marido vai ficar aborrecido porque não gosta que eu escreva coisas deste género, um bocado a atirar para o pesado. Talvez receie que isso signifique que eu esteja com baixo astral. Mas não estou. Estou normal. Mas do meu estado normal também faz parte ser realista.

Temo, isso sim, que escrever coisas assim possa deixar um bocado em baixo quem me lê e eu isso também não gosto. Não sou de dramatizar. Não vale a pena. A vida é mesmo assim, cheia de coisas -- e nem todas muito boas. Mas, atenção, a vida é boa na mesma. Há que vivê-la o melhor possível (enquanto isso for possível)

__________________________________________

Já agora, se me permitem, um poema de Donald Hall lido por Tom O'Bedlam: Safe Sex


---------------------------------------------------------------------------------

No post abaixo tenho Marcelo loves Cristina e vale a pena ver os divertidos cartoons

------------------------------------------------------------------------------

segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Baile de máscaras





Estive todo o dia sem saber se ia. Queria mas, ao mesmo tempo, temia ir. Aquele estado de dúvida em que se quer uma coisa e o seu contrário. Se me tivesse esforçado, teria podido confessar que, sobretudo, temia desiludir-me. Longos dias e noites de desilusão já percorreram o meu corpo e a minha alma. Mas, se quisesse expressar o que queria que tanto temia não alcançar também não saberia dizer. Talvez quisesse apenas ser surpreendida. Não sei. 

A meio da tarde fui espreitar o roupeiro que tenho no fundo do corredor. Lá dentro estão vestidos que vesti apenas uma vez, vestidos que levei a casamentos, a jantares especiais, aos bailes a que ia numa minha outra vida. Pensei que já não me serviriam, que ficaria ridícula, que tivesse mas era juízo. Ao fim da tarde fui à procura da caixa com a máscara que, numa tarde de enamoramento e ternos abraços, um longínquo amor me ofereceu. Lá estava, envolta em papel de seda. Coloquei-a. Quando me vi ao espelho senti aquele frémito que tão bem conheço. Em mim, a sede de ceder a todas as tentações manifesta-se assim.

Penteei-me, maquilhei-me. Depois preparei uma bebida. Sentei-me a ouvir música, tentei serenar-me. Não consegui. Com as pulsações alteradas, pensei que era melhor não ir.

Já tinha anoitecido quando Dindinha ligou: 'Então, prima, está pronta?' Disse-lhe que ainda não me tinha decidido. Dindinha gemeu 'Ai, prima, venha, é um projecto tão importante para mim...'. Zanguei-me: 'Deixa-te disso, menina, só por acaso é que eu soube dele...'. Ela negou: 'Era surpresa, prima, só queria dizer no fim, fazer surpresa'. Não me apeteceu discutir: 'Tanto faz. Isso de se ir mascarado não tem jeito. Não me apetece mascarar-me'. Ela gemeu de novo 'Oh prima, mas tinha achado bem... Vá, venha lá. Já viu, se não vem, que sozinha e triste me vou sentir? O estúpido do Tom diz que tem mais que fazer, diz que tem que acabar uma treta qualquer, que não tem tempo para macacadas. Estúpido'. 

Ao ouvi-la, pensei: 'Ele vai' e aí as minhas dúvidas dissiparam-se de vez. Iria.

Vesti-me, perfumei-me, meti-me no carro. Estacionei no parque debaixo da escola e foi então, ao sair, que coloquei a máscara.

Quando entrei, o ambiente era de festa. Toda a gente mascarada, uns mais convencionais, outros pândegos, outros artísticos, circulando, rindo. Música boa.

Depois um sino e logo entrou um grupo de jovens não mascarados. Dindinha estava entre eles e destacava-se pela sua beleza. Foi ela que falou para apresentar o projecto, para apresentar os colegas. No fim, agradeceu ao professor Tomé, cuja ajuda e incentivo tinha sido essencial, disse ela. Enquanto falava, iam passando imagens por trás, a imagem da revista. A seguir, mostraram um filme. Toda a gente aplaudiu. Depois Dindinha disse que ia passar a palavra a alguns colegas mas que cada um tinha apenas dois minutos para falar. De forma muito profissional, cada um disse de sua justiça. O projecto estava bem pensado, a estética com uma elegância muito estimulante. Depois a música subiu de tom. Dindinha disse que lá fora havia comes e bebes e que, ali naquela sala, o baile estava quase a começar. Era só o tempo de eles sairem para se irem mascarar.

As luzes baixaram e começaram a passar imagens da revista nas paredes em volta. Passado um bocado, as luzes apagaram-se por uma fracção de segundo e logo se reacenderam com uma música alto e bom som.

E então toda a gente começou a dançar.

Em vão, tinha já tentado reconhecer o Lobo. Nada. Depois tentei reconhecer Dindinha. Também não. Ninguém. Deixei-me ficar encostada a ver toda aquela festa. De vez em quando passava alguém que me puxava pela mão ou pelo braço, tentando pôr-me a dançar. Muita gente já se abraçava às cegas.

Então, senti um braço sobre os meus ombros. Estremeci. Tentei perceber quem era. Não consegui. A máscara encostou-se à minha pele como que para me beijar. Depois puxou-me e pôs-se a dançar à minha frente, segurando a minha mão. Tal como eu, estava com luvas. Não consegui perceber quem era, se era homem ou mulher.

Às tantas, no meio da confusão, senti que alguém se aproximava e, num ápice, puxava a máscara um pouco para cima e com uns lábios quentes beijava o meu colo. Talvez fosse um abuso mas não me importei. Eu própria começava a ter vontade de começar a abusar.

Dancei. Dancei.

Algum tempo depois, já cansada, fui à procura do bar. Com piada, à porta de uma sala, havia um cartaz a dizer: 'Não é engano. O BAR é mesmo aqui'. Havia um conjunto de máquinas de bebidas e de sandes e bolos numa das paredes e na parede oposta havia uma cartaz enorme em que, em pintura, se simulava um bar, com gente sentada em bancos altos.

Tirei uma água fresca e, com cuidado, puxei um pouco a máscara e bebi a água toda. Quando reentrei na sala de baile reparei num vulto que parecia olhar na minha direcção. Misterioso. O vulto começou a vir como se viesse ter comigo. O meu coração disparado. Toda eu descompensada. Não sei se descompensada é a palavra certa. Aflita. Com medo. Prestes a cair num abismo.

O vulto abeirou-se. Baixou a cabeça, num elegante cumprimento. Acho que nem me mexi.

Depois pegou na minha mão e levou-a até ao lugar do seu coração. Eu estava enervada, nem sei se era suposto sentir as batidas, não senti, apenas senti o veludo do seu fato. Depois colocou a sua mão no meu coração. Mas, de facto, colocou a sua mão enluvada sobre o meu seio. Não sei se o meu coração disparou se parou.

Tive o discernimento de com a minha mão dar-lhe dois toques na sua, como que para dizer que já chegava, que tirasse dali a mão.

Puxou, então, por mim, enlaçou-me, começou a dançar comigo, eu enlaçada, eu nos seus braços. Depois parou. Eu ainda nos seus braços. Abraçou-me com força, como se toda a sua vida tivesse esperado por aquele abraço. Abracei também aquele vulto misterioso. Abracei-o como se me entregasse. Depois ele puxou a minha máscara um pouco para cima e fez o mesmo à dele. Beijámo-nos como se não mais pudéssemos deixar de estar juntos.

Depois ele abraçou-me e finalmente falou. Disse: 'Vamos. Venha conhecer a minha casa'. Era Tom. Sabia-o. Eu, ainda com a máscara posta, disse apenas: 'Lobo-lobinho'. Ele voltou a beijar-me. Disse-lhe que viesse no meu carro para irmos juntos. Pelo caminho, ele não parou de me olhar. Eu, de vez em quando dizia 'Lobo-lobinho' e abanava a cabeça, como se ainda não acreditasse. Ele, com aquela sua voz quente, dizia, 'Diana, a caçadora' ou, então, 'Diana, a protectora da caça'. Eu nada dizia. Ele perguntava: 'Qual é? Não é a mesma coisa'. E eu, incapaz de pensar, 'Não consigo pensar em proteger o que quer que seja ao pé de um lobo'. E ele 'Porquê? Já se rendeu? Sabe que o lobo a vai comer?' E eu: 'Não. É um lobo-lobinho, não é um lobo mau'. Ríamo-nos mas estávamos os dois tensos.

Uma casa cheia de livros, livros por todo o lado, livros novos e velhos, livros, livros. Ele acendeu o candeeiro sobre uma mesa pejada de livros. Ligou o computador. Disse-me: 'Veja'. Não precisava de ver. Era a nossa última conversa.

Na parede da frente, várias fotografias de Dindinha. Numas o corpo inteiro, nua, noutras só o rosto, um rosto irradiando sensualidade e beleza.


Vendo-me a olhar, ele disse com naturalidade, 'É linda, a Fred'. Beijei-o. Naquele momento eu era Diana. a caçadora, não a protectora. De resto, Dindinha não era nenhum exemplar de caça e, se fosse, seria tanto meu como dele.

Depois deixei que ele me despisse. Despi-o também. Devagar, conhecendo-nos, as mãos sobre a pele, devagar, devagar. Olhando-nos, tocando-nos. Devagar, devagar.


Sem máscaras, tratando-nos pelos nossos nomes, fomos apenas um homem e uma mulher que se conheciam de antes dos tempos e que, ali, aprendiam a materializar o seu amor. A dois. Dindinha era apenas uma imagem. Cada vez mais esbatida.



.... The end ...

_______________________________


Este é o último episódio do folhetim Dindinha

__.