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sexta-feira, abril 03, 2020

Sunset in heaven






Não sei o que tenho que, mesmo nessa situação, parece que o trabalho continua a fustigar-me. De vez em quando, estando horas de seguida a trabalhar, com telefonemas, videoconferências e mails a torto e a direito, apetece-me dizer que me deixem em paz. Estou na minha casa, nesta casa que adoro, neste lugar que me é tão querido, e não consigo fazer o que quero. Eu, que prezo tanto a minha privacidade, vejo a minha vida caseira invadida, vejo-me impedida de gerir a minha disponibilidade e liberdade. Estava habituada a aceitar isto na minha vida anterior mas era em contexto profissional normal mas, aqui em casa, por vezes isto quase me massacra. 

À hora de almoço, fui a correr (literalmente a correr) pôr a posta de corvina no forno, pôr as batatas a cozer, depois fui a correr até ao estúdio, onde está a máquina, para pôr a roupa a lavar (incluindo umas três ou quatro blusas dos fundos das gavetas dos fundos, coisas de que já me tinha completamente esquecido), depois, enquanto dava um parzinho de little voltas apressadas lá por baixo, liguei à minha mãe, depois regressei e almocei à pressa, depois fui soltar o cabelo que tinha prendido e que ainda estava húmido, vestir outra blusa e outros brincos, depois, sentindo-me melhor arranjada, fui a correr fazer um chá para ter em cima da mesinha e depois, a correr, a correr, fui juntar-me à reunião que estava a começar. E foi até às sete da tarde.

Cansada, cansada. 

Mal acabou, vendo que o sol estava dourado, lindo, agarrei no telemóvel e na máquina fotográfica e fui andar e, enquanto andava, telefonei ao colega a quem não tinha atendido pouco antes, depois à minha filha, depois à minha mãe. Enquanto falava, ia fotografando. Gosto de andar em silêncio mas não foi possível. Mas é bom falar com os meus. Tão bom. E as cores do pôr do sol estavam tão lindas, tão lindas. Emocionantemente lindas. A beleza emociona-me.

Depois regressei a casa e vim espreitar dois mails com documentos que vão ser analisados em duas reuniões sucessivas amanhã de manhã.

E há coisas ali com que não concordo e que me apetece atirar para o espaço. Estou  na minha casa, a trabalhar demais e ainda tenho que aturar coisas com que não concordo nem um bocadinho?

Bolas.

(Será que estou mesmo a passar-me?)

Gostava, Lúcio, acredite que gostava de escrever alguma coisa de jeito. A sério que gostava. Mas falta-me o distanciamento que a viagem de carro, no trânsito, atravessando a bela cidade, introduzia na minha vida depois de um dia de trabalho. Havia essa barreira que eu transpunha. Saía de um dia fatigante mas saía, mudava de ares, saía dali e ouvia música ou o Alvim, chegava a casa, mudava de roupa, mudava de ambiente.

Agora não, agora é desde que me levanto até à noite. E reuniões e mais reuniões, prazos, projectos com prazos curtíssimos, cenários, ficheiros, cálculos, e dia após dia a ver os cenários a derraparem, a derraparem.

A gente quer aguentar, a gente faz cenários a ver até onde aguenta. A preocupação é sempre: cumprir compromissos, não quebrar as cadeias, não romper o tecido económico e o social. Mas todos os dias chegam novos números, a actividade quebra, os custos fixos pesam, as obrigações apertam. 

Até quando?

Chegará um milagre?

Pedro Simas, homem francamente bonito, sorridente, inteligente, disse que não descarta essa possibilidade: tantos cientistas de todo o mundo e de tantas áreas a estudarem que pode acontecer que se descubra a forma de se sair disto. Mas, a não acontecer, serão meses. Meses a doer seguidos de meses de liberdade condicional e intermitente.

Haveremos de nos habituar, haveremos de adoptar outros comportamentos, haveremos de construir novas formas de viver. Mas preocupo-me tanto com os que não conseguirão aguentar este período de provação e com a miséria que muita gente vai conhecer. Preocupo-me com os tempos que aí podem vir. Tomara que a democracia sobreviva, tomara que a barbárie não esteja nunca à espreita. 

Falando com colegas em terras de Espanha chegam-nos sinais de que, em determinados locais, estão como se estivessem a aproximar-se do fim dos tempos. O medo no rosto e na voz deles é de nos deixar paralisados. Não sabem o que fazer aos doentes, não sabem o que fazer aos mortos. Estão aterrorizados. Esforço-me por não comentar, aqui em casa. Penso: não vale a pena, só nos deixa ainda mais inquietos. 

Penso muitas vezes: não fora a distância dos meus, se conseguisse ignorar as notícias e se evitasse falar com colegas de países verdadeiramente batidos pela desgraça, se resolvesse não aparecer em algumas videoconferências e se, de vez em quando, conseguisse pirar-me para o meio das árvores, talvez conseguisse tirar partido destes tempos. Mas isto é se e isto do se faz-me sempre lembrar aquela de que se cá nevasse fazia-se cá ski.

Já é sexta-feira e uma vez mais não vou poder ir passear à noite para a praia, não vou ver o mar, e apenas vou ver a minha gente através de vídeos e fotografias. Mas, a esta hora, há muitos médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares muito, mas muito, mais exaustos que eu, há famílias a sofrer de medo ou de dor, há muita gente que não tem a sorte que eu tenho. Por isso, o melhor que tenho a fazer é estar calada porque, pensando bem, devia era sentir-me agradecida.

Pode ser que, daqui por vinte e quatro horas, estando a entrar no fim de semana, consiga estar mais animada, Lúcio e Pôr do Sol e Luísa, mas agora não consigo dar mais do que isto. Sorry.


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O meu amigo algoritmo do YouTube tinha este vídeo para me mostrar e eu, que gosto de partilhar, deixo-o aqui: Jane Goodall, com os seus mais de oitenta anos, diz como é


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E, para acabar com alguma boa disposição, um outro vídeo 

Vogue Corona Parody by Chris Mann


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Desejo-vos um dia bom, apesar de todos os pesares.

Saúde.

domingo, fevereiro 03, 2019

E o que é um tomate roxo?
[E isto para não me alongar com a auditoria à CGD, com aquelas denúncias de cenas que se passam nas autarquias PCP, com a baderna que para ali vai na Venezuela, com a extraordinária Elizabeth Holmes, com a criminosa greve dos enfermeiros ou, mesmo, com as minhas andanças nocturnas in heaven, preferindo, com a vossa licença, deleitar-me com Jane Goodall]
-- E sim, um ponto verde no canto da sala é uma ervilha de castigo --




Claro que, na volta, eu devia era falar dos créditos e das imparidades da Cixa Geral de Depósitos. Mas, para falar disso, porque não falar tambem das do BPN, do BES, do Banif, do BCP, etc? Que disso, upa, upa, há por todo o lado e, de uma forma ou de outra, todos temos tido que lá meter dinheiro. E não que com isso esteja eu a querer branqear a coisa. Zero. Não. Mas há os créditos dados a ver se se salva uma fábrica, uma actividade que conjunturalmente está a passar um mau bocado e há os dados por vã ambição, ganância, mania das grandezas. Quem, ignorantemente, ponha tudo no mesmo saco vai por mau caminho. A avaliação técnica de um crédito tem mil e uma vertentes e não é num comentário apressado que se pode tecer opinião. 

Por isso, passo adiante.


Também podia falar da avalancha de notícias sobre os compadrios nas autarquias geridas pelo PCP. Não atiro pedras e não porque ache que o PCP não tem telhados de vidro mas porque prefiro ter a certeza da veracidade de tudo o que está a aparecer. É que há tal coincidência nas pedradas que a coisa parece orquestrada e eu de orquestrações prefiro as musicais. A ter havido abuso de confiança, uso e abuso de recursos autárquicos para fins partidários, dolo na gestão de dinheiros públicos ou infracção de regras claro que acharei mal e que defenderei que não estejam, como ninguém pode estar, acima da leia. Mas, até que para mim esteja claro o que se está a passar e se há fundamento nas denúncias, manter-me-ei expectante e de bico calado.

Sobre a Venezuela é diferente: não quero cá saber do nome que os próprios dão às coisas como se o nome fosse rótulo que garante imunitade. República bolivariana o escambau. Um atraso de vida é o que é. Há populistas, parvalhões e abusadores para todos os gostos e este Maduro é um deles. Que a Venezuela está entregue à bicharada é inegável e o PCP mostra que tem um cordel agarrado ao pé e às ideias quando não é capaz de se desdogmatizar para apreciar as coisas como elas são. Não faço ideia de qual é a do tal de Guaidó pelo que, às cegas e sem o conhecer, custa-me defendê-lo. Nem sei como ficará a Venezuela depois de correrem com aquele parvalhão, prepotente e atraso de vida que é o Maduro mas sei que alguma coisa tem que ser feita. Um país daqueles não pode estar naquela penúria, naquela regressão, naquela indigência a todos os níveis. Mas falta-me competência -- e disposição -- para me pôr para aqui agora a dissertar sobre tema tão sério.

E digo-vos uma coisa: não fora este meu mau hábito de apenas me dedicar ao blog quando a noite vai alta e a minha energia escasseia, aquilo de que eu falaria mesmo seria de Elizabeth Holmes, 35 anos, aquela a quem se augurou ser a próxima Steve Jobs, ex-CEO de uma brutalmente valiosa empresa. E se emprego o qualificativo brutalmente é porque tudo aquilo era uma fraude. Mais um caso em que o mundo ilustrou a célebre doença da cegueira injustificável. Uma história fantástica a que prestaremos atenção quando o filme que já está por aí a rebentar com Jennifer Lawrence aparecer. Agora que é apenas uma história real, não queremos saber. E, no entanto, apesar de não conhecer Elizabeth, juraria que consigo adivinhar como é que aqui se chegou. E adivinho não porque detenha dotes divinatórios mas porque já vi uma história assim. E é tudo tão inacreditável e a cegueira colectiva tão difícil de compreender que não me espanto ao ver como a fantástica e valiosa empresa Theranos se despenhou tão facilmente.


Mas não falo de Elizabeth, hoje não me apetece -- até para não fazer associações a coisas de que nem é bom falar.

E há a criminosa greve dita cirúrgica dos enfermeiros mas acho-a tão aviltante para quem trabalha na área da saúde que, só de pensar nisso, sinto vergonha alheia. Só espero que a justiça arranje maneira de pôr um ponto final na actuação degradante daquela gente que deveríamos respeitar mas que, com o que andam a fazer, só nos fazem sentir repulsa e medo de algum dia virmos a ser vítimas de gente tão perigosa. Passo adiante para não me sentir agoniada.

E, portanto, estando numa de passar ao largo de tudo o que é assunto, poderia limitar-me a contar como andámos até ser noite enfiados no meio das árvores a podá-las, a desramá-las, a dar fim a pés bastardos. Podia contar como os nossos olhos se vão habituando à visão nocturna, como, depois de pensarmos que não vamos conseguir ver nada e que o melhor é ir para casa, nos vai sabendo bem perceber que afinal nos orientamos, como o que sobra de luz  -- e que não sei se era algum vislumbre de luar, se uma réstea de luminosidade de alguma estrela longínqua ou de quê -- é suficiente para ali continuarmos a serrar, a cortar. Ou poderia, ainda, limitar-me a contar como o ar foi ficando cada vez mais frio, como há sons que esperam pela noite para aparecer. E o cheiro das árvores e da terra acentuado pela frialdade nocturna, como é bom.


Mas nem para isso me está a dar para falar. Enquanto escrevo, estou a ver e ouvir Jane Goodall, uma maravilhosa jovem de 84 anos que ama a natureza, que é indomável e que sorri enquanto fala.


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E, assim sendo, volto a perguntar: o que é um tomate roxo?

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[As imagens mostram a exposição Until de Nick Cave]