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quarta-feira, março 03, 2021

Velharias e outras coisas do Olano, culinária, pássaros esvoaçantes e um jasmim escorraçado

 


Mais um dia em que o pé fora de casa foi apenas para caminhar a meio do dia e, de quando em quando, ao atender uma chamada, ir até ao jardim. Tirando isso: reuniões, telefonemas, análise de documentos, mails e mais mails. 

Uma vida assim. E, apesar de tudo, os telefonemas de trabalho foram até às sete e tal da tarde. Não me parece normal. Horas e mais horas de trabalho. Acho que vou ter que me sindicalizar. Ou ir ao psiquiatra -- porque ninguém normal, sendo dona e senhora do seu horário e estando em sua casa, fica assim tão refém do seu trabalho. Chega a ser ridículo, acho eu.

Bem. Adiante.

O almoço foi sopa e o que ainda havia de arroz de tomate, pimento e salmão do outro dia. 

Fiz o arroz assim:

Num tacho coloquei azeite a cobrir o fundo, duas cebolas grandes grosseiramente cortadas e um bocadinho de bacon cortados aos cubinhos. Depois de tudo alouradinho, juntei duas folhas de louro, uma quantidade generosa de salsa e um alho francês, a parte branca, aos bocados. Depois, quatro tomates grandes e maduros e dois pimentos daqueles pequenos e bicudos, encarnadinhos. Deixei amolecer. Quando amolecido, juntei dois copos de água. Juntei feijão verde às ripinhas fininhas. Deixei ferver. Juntei um pouco de sal e um copo de arroz basmati. Envolvi com os legumes meio desfeitos. Por cima, coloquei três lombos de salmão. Quando ferveu, baixei o lume. Antes de concluído, envolvi o peixe no arroz. O tacho tapado, claro. Quando o caldo começou a escassear, desliguei. Ficou a apurar.

Estava bem bom (modéstia à parte). Acompanhámos com salada de alface, cenoura e couve roxa.

De manhã, tinha deixado a descongelar uns peitos de frango. Depois de almoço, fiz o jantar. O meu marido perguntou: 'Como é que vais fazer?' e eu disse a verdade: 'Não sei'. Quando já estava ao lume, voltou a perguntar: 'Então, afinal, como é que estás a fazer?' e voltei a responder: 'Não sei dizer, estou ainda a fazer'. Ele não insistiu pois sabia que eu não sabia mesmo.

Nos meus cozinhados uso sempre muita cebola. Gosto, acho que dá bom paladar. Então, fiz assim:

No tacho, o tal fio de azeite no fundo e duas cebolas grandes aos bocados e também umas folhas de louro e também salsa. Uso os ingredientes que tenho em casa que não são muito variados. E estes tento ter sempre. Quando tudo estava ligeiramente amolecido, juntei dois tomates também aos bocados e coloquei por cima os peitos de frango um pouco abertos para não ficarem excessivamente secos. Coloquei um pouco de sal e por cima coloquei duas maçã royal gala não muito grandes, aos bocados. E, ainda, a parte branca de um alho francês. Coroei com mais um fio de azeite. Quando ouvi que tinha começado a ferver, baixei e, com o lume no mínimo, o tacho sempre tapado, ali ficou. Passado um bocado, virei os peitos de frango mas virei só porque sim pois já estavam imersos no caldo que se formou. 

Quando percebi que a carne estava cozinhada, desliguei. Passado um bocado, tudo isto entre reuniões ou telefonemas, tirei a carne para um prato e recuperei o louro para o deitar fora. Com a varinha mágica, moí todo o caldo. Ficou um molho espesso, quase uma papa. Inseri, então, os peitos de frango nesse molho e ali ficou a apurar. 

Antes de jantar, depois de falar com a minha mãe e com a minha filha, fiz o acompanhamento. Fervi água. Num recipiente, coloquei couscous (têm que ser de boa qualidade) e reguei-os com um fio de azeite e salpiquei-os com orégãos e um pouco de sal. Por cima, deitei a água que quase tinha fervido. Mexi com um garfo. Passado um bocado, voltei a mexer.

Tive que aquecer o frango antes de servir. Empratei assim: os couscous em volta, como uma coroa. A meio a carne com o molho. De volta, alface. 

Devo dizer que o meu marido -- que estava altamente céptico pois não estava a ver como é que um molho no qual estavam contidas duas maçãs e mais dois tomates, cebolas, alho francês e salsa poderia ser bom -- comeu, repetiu e molhou pão e mais pão no molho. Só lhe faltou fazer sopinhas de pão. Perguntei-lhe: 'Então?' e ele disse: 'Está bom. Reconheço'. 

Pelo menos, acho que faço comida saudável, sem frituras, sem molhos repuxados ou meio queimados. Tudo simples, as proteínas sempre com legumes, tudo cozinhado a baixas temperaturas. E acompanhamos com saladas, comemos fruta, comemos geralmente uma sopa por dia. 

E mais...?

Só se for que, ao fim da tarde, enquanto andava a falar ao telefone, apanhei uns ramos de jasmim. Depois fui à vitrina, peguei numa jarrinha pequena de cristal, enchi-a de água e coloquei as flores. Coloquei-a no aparador da copa e voltei à rua. Às tantas, vi o meu marido, em língua gestual, a querer dizer-me qualquer coisa. Aproximei-me. Estava a apontar para um vaso. Olhei e só não soltei uma interjeição, alto e bom som, pois estava ao telefone. Tinha posto a bela jarrinha de cristal com uns perfumados pés de jasmim em cima da terra de um vaso. Disse-me: 'Tem um cheiro que não se aguenta'. Quando acabou o telefonema tentei negociar: ponho-a na escrivaninha, ponho no andar de cima, ponho no móvel do corredor. Não aceitou nenhuma hipótese: 'Tresanda. Nem penses em pôr aquilo dentro de casa'. Fiquei desolada. Agora está em cima da mesa de vidro que está sob o telheiro.

Hoje o meu marido viu o gato preto em cima dessa mesa, a olhar para dentro de casa. Chamou-me. Um gato esfíngico, negro e de belos olhos verdes. Fui a correr buscar a máquina mas, quando me aproximei, saltou e fugiu (refiro-me ao gato). Portanto, a ver se amanhã a minha jarrinha ainda está inteira, em cima da mesa.

E, tirando estas coisas de nada, que mais posso dizer? Não sei. Acho que nada. Os meus dias correm assim, sem história. 

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Ontem descobri aquele rapaz dado a decorações. E eu tenho mais paciência para conversas destas do que para comentário político esquentado e requentado ou para jornalistas-dominatrixes que acham que, já que apanharam uma ministra à frente, têm o direito de acusar, insinuar, duvidar, tentar apanhar em falso. Não aguento. Para peditório revertendo para gente prepotente e estúpida eu já dei. Prefiro disto: o Arvin Olano até olha para livro como bibelot -- o verde lindo da capa, o dourado que dá tanto glamour. E eu isso perdoo. O que não perdoo é gente parva, populistas, justiceiros, cagões. Tudo menos isso. Ouço o Olano e farto-me de rir. Se fosse ao vivo, adoraria ouvi-lo em directo e a cores ou ir às compras com ele. Haveria de andar sempre a rir. No meio de coisas acertadas (acertadas dentro do género, claro), há com cada maluqueira... 

E eu, tal como ele, também gosto de andar a ver velharias. Tenho na minha casa in heaven algumas peças adquiridas assim. Fascinam-me. Por vezes, quando morava mesmo na cidade, ia a um antiquário que tinha pinturas, porcelanas, livros, móveis, estatuetas, caixinhas, molduras. Ficava por lá, sempre tentada a trazer peças únicas. O meu marido recusava-se, dizia que não suportava aquele cheiro a mofo. Melhor para mim: podia ver as coisas com mais vagar. Mas já não tenho onde meter mais coisas, ainda por cima agora que estou a virar minimalista. Já pensei arranjar um barracão e transformá-lo em museu e, assim, já teria onde ter peças que me acho que merecem ser estimadas.

Custa-me muito ver peças que se vê que foram escolhidas e guardadas com carinho pelos seus donos e que, por qualquer fatalidade, acabam assim, tantas vezes amontoadas, entre restos de outras vidas, tristemente à procura de novo dono. 

Penso muitas vezes que, se calhar, assim acabarão um dia as minhas coisas. E não será por mal ou descaso, será porque não terão onde ser guardadas ou porque são coisas de um género que não tem cabimento no meio de outros estilos. E, até por isso, para não criar mais problemas futuros, acho que não devo adquirir mais nada. Mas, confesso, fico com pena de já não ter qualquer incentivo a ir visitar antiquários. Portanto, contento-me em ver o Olano a cirandar por entre objectos vintage, em imaginar como uma daquelas cadeiras de madeira suave e antiga poderia ficar bem aqui ao pé de mim.

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Fotografias feitas hoje aqui em casa, enquanto andava a telefonar.

(Será que voltarei a ser capaz de estar fechada numa torre de vidro, sem ter flores ou pássaros para fotografar enquanto trabalho...? Duvido...

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Desejo-vos um bom dia.

Saúde. Sorrisos.

terça-feira, março 02, 2021

Depois de um dia banal, mais um, conselhos de decoração: os piores erros, o que é preciso parar de fazer

 


Bom. Dia nem sim nem sopas. Aliás: sopa, sim. Logo de manhã, antes do expediente, fiz uma suculenta sopa. Base que depois de cozida, moo: courgette, abóbora, cenoura, cebola, chuchu, nabo e, claro, como um certo crazy guy uma vez me ensinou, uma maçã. Confirmo: faz toda a diferença. Às vezes até ponho duas para que a diferença seja ainda maior. Com casca. Só lhe tiro o pé e as sementes. Depois retiro parte do caldo e nele, noutro tachinho,  cozo feijão verde aos bocadinhos e, quando estou quase a retirar, espinafres. No fim, antes de moer a base, junto generoso fio de azeite. A base moída, junto o feijão verde e os espinafres.

Depois desta obrigação, fui às restantes. 

Assustou-me um bocado começar a semana no dia 1 e logo um mês tão comprido. Gosto de meses que começam a uma sexta feira para, na segunda seguinte, o mês já ir com algum avanço. É absurdo, bem sei. Contraproducente. Despachar o mês para quê? Não faz sentido. Mas aconteceu-me pensar nisso com susto. Dei até por mim a contar os meses que faltam até ao verão. Tanta coisa para fazer em tão pouco tempo e eu a começar a semana a pensar em férias. Logo a seguir, ligou-me um jovem muito motivado, transbordante de energia. Tive que esconder o que me ia na alma para tentar estar à altura da sua garra.

Antes da caminhada do almoço, fui despejar as cascas dos legumes usados na sopa no lugar da compostagem na horta. Mas, porque mulher prevenida vale por duas, peguei na máquina e, de caminho, fui cheirar o jasmim e as rosas. E fotografar as rosas. Eram encarnadas, dantes. Sempre foram, diz a anterior proprietária que ainda não acredita em milagres. Agora são multicores. Uma loucura. Amarelas, lindas. Cor-de-rosa. Uma quase branca. E tão perfumadas que mal consigo deixar de cheirá-las. Um encantamento e, pelos vistos, um milagre.

Na horta uma flor branca, imaculada. E uma árvore toda em flor. Será macieira? Não sei. Mas umas florzinhas virgens e radiantes. Fotografei, maravilhada. Andavam abelhas em volta. Ainda consegui apanhar parte de uma. Cherchez l'abeille.

O almoço foi uma tigela de sopa e uma sandes com isca que tinham sobrado do outro dia. Pão quentinho, isca quentinha. E alface e rúcula dentro da sandes. De trás da orelha. No fim, laranja fresca e doce, a seiva ainda vibrante, viva. Para terminar ainda melhor, um little quadrado de chocolate preto.

A tarde foi de reuniões e telefonemas. 

Combinámos não arranjar compromisso para o fim da tarde. E cumprimos. Assim, mal nos despachámos, fomos ao supermercado. Dizia-me ele: despacha-te para ver se não apanhamos lá muita gente. Há algum tempo que não íamos. E o que tenho a dizer é que, uma vez mais, fiquei beige. Muita impressão me fez: muita gente. Tudo de máscara mas já sem que ninguém se desviasse de quem quer que fosse. Estava à procura de kefir e com uma pessoa a estibordo, outra a bombordo, mas mesmo a rasar. Só não fui abalroada porque sou velejadora atenta. Estava a escolher o pão e havia gente à ré e gente a querer pôr-se à proa. Tudo a poucos centímetros. Muita impressão. Não sei o que deu naquela gente toda. Já ninguém guarda distância. Tudo alegre, falando alto, chamando uns pelos outros. Já lá vai o tempo em que nos supermercados quase não havia ninguém, todos fugindo uns dos outros. Qualquer dia chego lá e já andam todos sem máscara, aos beijinhos e abraços. Será que acabou a covid e eu não sei?

Lá viemos com as nossas coisas. Aqui chegados, lavámos, limpámos, separámos, arrumámos. E, mal me vi livre dessa faena, peguei na máquina fotográfica e fui para a rua. Claro que o jardim já estava envolto em penumbra e frio. Ainda hesitei. Não quis reentrar para ir buscar um casaco senão ia perder tempo e quando voltasse já estaria noite-noite. Portanto, aguentei firme. Em momentos assim penso que o frio é psicológico.

Acabei por falar com a minha filha. A noite já pousada nas árvores, nos arbustos. Ainda pensei ligar, de seguida, à minha mãe. Mas impossível. Já estava a enrelejar. Até espirrei. Portanto, foi já em casa que falei com ela. O meu filho só ligou depois de jantar. Tudo de boa saúde, nas suas vidas. E isso é que é preciso. 
Não contei que, no sábado, tivemos calls com todos, os meninos crescidos, bem dispostos. E a minha mãe, milagre!, já a entrar à primeira. Agora as dúvidas concentram-se no telemóvel. É novo, mais sofisticado. Então, estranha tudo. O bisneto mais velho partilhou  a sessão e deu-lhe uma aula. Não sei se ela assimilou pois as tecnologias servem para a baralhar. Diz ela.

Foi assim este meu dia. 

Ah, já me esquecia. Quando tinha o cabelo molhado, de manhã, pensei que devia cortá-lo. Mas, com a preocupação de fazer a sopa, esqueci-me. Quando, mais tarde, passei em frente de um espelho desgostei-me: já estava seco e nitidamente comprido demais. Com a juba seca fica difícil mas não estive para me despir e voltar a molhar o cabelo. Fui buscar a tesoura grande da costura e foi assim mesmo, a olho, a eito. Talvez uns quatro dedos de altura. Custou: muito atrito. A tesoura não deve estar especialmente afiada e o cabelo seco apresenta um volume indomável. Mas nada que não se resolvesse em três tempos. Agora já me sinto mais leve. 

Se calhar estou a precisar de férias. No verão quase não tive férias. E se o ano passado foi dureza... Entre o natal e o ano novo não tive férias. Mas férias sem mudar de sítio serão férias? Penso que não. Portanto mais vale não pensar nisso.

Penso antes em pinturas e remodelações na casa in heaven. A minha filha tinha dito que o primeiro passo seria tirar a overdose de coisas que estão na zona da lareira. Há livros, há esculturinhas, velas. Sobretudo, livros. Se calhar terei que aliviar a concentração de livros que por ali há. Mas não sei onde colocá-los. Se calhar terei que trazer alguns para cá. 

Ah, ainda outra coisa: acho que o ninho das andorinhas ainda está vazio. Já o mostrei? Não me lembro. Quando será que elas vêm? E... se não vierem? Serão sempre as mesmas, ano após ano? Andorinhas já velhas voando por aí em busca de ninhos que ficam vazios durante meses, esperando que regressem. Será?

Bom. Voltando ao tema. Nisto de ver decorações, apareceu-me um vídeo que a-do-rei... A-do-rei!

A minha filha vai ficar cheia de prosa: é o que eu digo... é o que eu digo...

A palavra a Arvin Olano:


10 things you should stop doing to your house | the worst interior design mistakes



STOP THIS! 

1. Mirrors that look like windows
2. Matchy matchy accent colors
3. Copying showrooms
4. Too much texture
5. Painted arches
6. Over decorating
7. Themed rooms
8. Artificial scents
9. Crowded sofas
10. Wrong size rugs

Conselhos mais sábios. Muitos já estou a seguir. Outros estou quase.

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Desejo-vos um dia feliz

Saúde. Amor. 
Melhores dias virão.

terça-feira, janeiro 05, 2021

Como se vive com demência? Como se vive com uma pessoa com demência? É possível combatê-la?

 


A primeira vez que soube de alguém concreto com demência foi com a mãe de um colega. Ele era daqueles solteirões ingénuos, desejosos de arranjar namorada, mas tão explícito nessa vontade que se tornava alvo fácil de chacota. As mulheres gostam de perceber que os homens têm uma certa malandrice e que já tiveram alguma vida. Ora, aparecer-lhes um homem com cerca de quarenta anos e que, pela sofreguidão que demonstrava, mais parecia um adolescente virgem é coisa que uma mulher dificilmente pode levar a sério.

Na altura eu tinha uma colega, a quem tinha levado para lá para me substituir durante a baixa de parto. Tinha-a conhecido na faculdade e tínhamos ficado amigas. Muito bonita, muito independente, muito maliciosa, ultra moderna, super gozona. Provocava-o só para se divertir com os inocentes entusiasmos dele. Eu casada, na altura já com a minha filha, pedia-lhe que não exagerasse pois ele não percebia, caía em todas as esparrelas, estava como se estivesse apaixonado, sem perceber que uma mulher como ela jamais -- em tempo algum  --poderia interessar-se por um inocente carente e totó como ele.

Vivia com a mãe, ele, uma senhora viúva, professora reformada, tinha sido uma mãe tardia. Falava dela sempre com cuidado e ternura e percebia-se que a mãe deveria querer que o filho se casasse e percebia-se que, até para dar esse gosto à mãe, ele não apenas tinha vontade de namorar como queria que fosse coisa 'a sério' para dar essa alegria à mãe.

Mais tarde, o namorado de longa data dela, um homem divorciado, mais velho que ela, com filhos adolescentes, com quem nunca vi qualquer afinidade nem grande interesse mútuo, saiu da hesitação em que andava há uns dois anos e propôs que namorassem mais a sério e casassem. Nunca consegui perceber qual o verdadeiro sentimento dela em relação a ele. Contava-me que andavam com advogados a discutir acordos pré-nupciais. Eu, que me tinha casado, miúda ainda, na desportiva, sem pensar em nada disso, aliás sem sequer saber que coisas dessas existiam, pasmava com tanta discussão para delimitar com o que cada um ficaria se se separassem. Ela tinha um apartamento dela mas ele morava numa grande casa numa zona nobre da cidade para além de que tinha uma outra casa na praia. E devia haver dinheiros, já não me lembro.

No meio disto, destas discussões entre eles, desentendimentos, geralmente aborrecidos um com o outro por estes motivos, entrou um jovem economista, alto, giraço todos os dias, uma simpatia. Arranjava sempre maneira de vir falar connosco: éramos os mais jovens e gostávamos de conversar e de rir. O outro pobre coitado andava pelos cantos a morrer de ciúmes, completamente descartado. Claro está que não tardou que, saindo eu para ir buscar a criança, dar-lhe de mamar e ir tratar da vida doméstica, ela e o jovem colega saíssem dali para beber um copo, depois beber um copo e ir jantar, depois beber um copo, jantar e ir dançar. Ela ia-me contando isso com sorrisos maliciosos, que o colega beijava bem que só visto, que dançava bem que só experimentando. O namorado dela devia andar muito ocupado com advogados e com os filhos adolescentes e a muito bem sucedida vida profissional que o levava a viajar muito, e ela andava naquilo, ocupada a gozar a vida.

Um dia, de manhã, apareceu com ar pesado, quase choroso. 'Então, o que foi?'. Nem precisava de ouvir a resposta mas ela confirmou: 'Aconteceu'. Fiquei admirada com aquele ar tão pesaroso quando estava na cara que tinha que acontecer. Disse-me que não, que não era suposto acontecer e que se sentia muito mal, que não sabia se havia de contar ao namorado. Respondi-lhe que ela parecia querer arranjar pretexto para se afastar do namorado e que aparentemente não gostava dele, que, se calhar, mais valia, simplesmente, dizer-lhe que afinal não gostava dele o suficiente. Desatou a chorar, que gostava, que não sabia porque tinha feito aquilo. Fiquei estupefacta, disse-lhe que me parecia que ela estava a enganar-se. Disse-me que não, que gostava mesmo. Achei extraordinário. Mas desde cedo aprendi que não se deve fazer juízos de valor.

Mais estupefacto ficou o bonitão com ela a cortar relações com ele, sem perceber o que tinha acontecido, que tinha sido uma noite fantástica, não entendia tal reacção. 

O outro ingénuo, percebendo que a costa estava livre, voltou a aproximar-se mas só recebeu da parte dela uma grande frieza.

Passado pouco tempo, a minha bela colega demitiu-se. E pouco tempo depois casou-se. E, como expectável, uns quatro ou cinco anos depois, período durante o qual andou a iludir-se relatando viagens, festas e feitos enamorados de ambos e louvando as grandes qualidades dele como se estivesse apaixonada, divorciou-se. Quando me contou, face à minha indiferença, perguntou-me: 'Não dizes nada?'. Só consegui dizer-lhe que não, e mudei de assunto. Desde o início era claro que n,ão eram um para o outro. Não sei como aquele pseudo-romance tinha durado aquele tempo todo pelo que a surpresa era essa, não que tivessem acabado.

Entretanto, tinha entrado uma outra colega, uma mulher grande, gorda, despudorada, desbocada, sempre pronta para uma conversa apimentada, palavrão de criar bicho de permeio. Também pelos quarenta, divorciada, mulher livre, sem receio do que dissessem ou pensassem. Os homens gostavam de provocá-la para verem até onde ela ia e ela nunca desiludia. O outro inocente, sempre a ver se conseguia namorada, não percebia que aquela não era também a mulher certa para ele. Mas o que ela se divertia com o pobre coitado. Ele, uma vez mais, caidinho por ela, autêntico babaca, toda a gente a gozar com ele e ele sem perceber. Ainda me lembro quando ela fez anos, ele a mandar entregar-lhe um ramo de rosas, ela levemente comovida -- mas toda a gente a gozar com ele e ela também, para não desiludir a plateia, e ele, tão tonto, apesar de tudo, a julgar que tinha encontrado a mulher certa. Durante muito tempo ela dizia-me que das poucas coisas que se arrependia na sua vida de excessos era de ter gozado com ele quando ele lhe tinha oferecido as rosas.

Até ao dia em que ele recebeu um telefonema da polícia: a mãe tinha saído de casa, tinha-se perdido, tinham-na levado para uma esquadra porque ela não se lembrava da morada, tinham encontrado na carteira dela o cartão de visita do filho. Ficou espantado, preocupado, saiu a correr.

Nessa tarde, voltou ao trabalho, disse que a mãe tinha ficado em casa, estava bem, não percebia o que se tinha passado. Tenho ideia que não se preocupou muito. Desvalorizou. Achou que toda a gente de vez em quando pode ter um lapso.

Continuava aquela paródia de flirt tardo-adolescente, ela tinha um carro meio velho e ele um desportivo e, volta e meia, um dos carros ficava lá durante a noite -- e nada de mais. Até que um dia, de tarde, ele chegou bem mais tarde. Não morando muito longe do trabalho, ao passo que todos nós almoçávamos uns com os outros nos restaurantes das redondezas, ele ia almoçar a casa com a mãe. Nessa tarde, vinha atordoado. A mãe não tinha feito o almoço e tinha deixado o gás ligado, sem colocar o tacho em cima e, aparentemente, não tinha dado por isso. Não tinha havido almoço e a mãe, que toda a vida tinha tratado escrupulosamente, do seu menino, aparentemente não estava nem aí. 

Na altura tenho ideia que pouco ou nada se falava em Alzeihmer. Eu também ficava espantada com aquilo, dizia-lhe que alguma coisa não estava bem. Ele dizia que ela conversava bem, estava bem, de boa saúde, cuidava da casa, que não percebia o que tinha sido aquilo, talvez tivesse adormecido, talvez nada de mais.

Mas, progressivamente, as coisas estranhas iam-se sucedendo. Um dia, quando ele ia a chegar a casa, viu uns sacos de plástico com roupas à porta de casa. Espreitou e pareceu-lhe perceber serem lençóis normais. Quando perguntou à mãe que sacos eram aqueles, ela disse que não sabia mas ele viu as gavetas da cómoda desarranjadas, meio esvaziadas.

A partir daí foi em crescendo. Coisas inexplicáveis, esquecimentos, alheamento. A tristeza dele era comovente. Ajudámos muito, nós, com os nossos conselhos, ouvindo-o, apoiando-o. Mas apoiou-o, sobretudo, ela, a maria-doida. Foi uma irmã para ele. Por fim, saíam juntos para ela ir ajudá-lo no que fosse preciso, e cada vez era preciso mais. Passou a ter que fechar a mãe pois fugia e perdia-se, deitava tudo fora, tinha que deixar a torneira do gás desligada. Andava sempre em pânico. As coisas que ele contava enchiam-no de estranheza e a nós também. Acabou por contratar uma senhora para ficar com a mãe durante o dia. Frequentemente, confundia o filho com o marido, depois com o pai. Por fim, já nada dizia que fizesse qualquer sentido. Já não tinha força nem qualquer autonomia. O declínio foi rápido. 

Na altura falava-se de demência. Quando ele falou em Alzeihmer ficámos a saber que havia uma doença com esse nome.

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A prescrição de Sanjay Gupta para combater a demência

The neurosurgeon, CNN commentator and author of "Keep Sharp: Build a Better Brain at Any Age" has long studied the brain and the onset of Alzheimer's. He talks with CBS News chief medical correspondent Dr. Jon LaPook about the recommended steps to a healthier brain, from diet and exercise to the value of sleep and social interaction.

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Pinturas de Paula Rêgo ao som de Spiral · Ólafur Arnalds
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Desejo-vos dias felizes

quinta-feira, maio 21, 2020

A inteligência de Jacinda







Dia de sol, a primavera a arrebitar. Dia também de muitas aventuras. A minha filha disse que a fauna resolveu aproximar-se de nós. E, com essa aproximação, vieram arrepios, sustos, gritos.

Mas hoje não vou falar nisso pois a reportagem fotográfica com que complementaria o post comportaria imagens de alguma violência e o tema de hoje pede mais o flower power do que perseguições, violências e desfechos fatais.

Hoje participei numa reunião que, no contexto que foi e para o fim em vista, foi muito importante. Era uma reunião formal. E, como reunião formal que era, uma daquelas reuniões que é o exemplo acabado do que é o mundo dos homens, se um resolve mostrar que está presente no escritório, todos os outros receiam ficar atrás e apresentam-se todos no escritório. Embora cada um estivesse em seu sítio já que a reunião foi uma videoconferência, os homens estavam de fato e gravata a condizer com o local de trabalho e com a formalidade da reunião.

Também escolhi o meu poiso com cuidado bem como foi com cuidado que escolhi o meu outfit. Uma blusinha sem mangas, decotada, às flores, uma alegres flores amarelas e brancas sobre fundo preto. E o local em que me instalei foi também a condizer. Não me pus com estantes atrás, com pinturas a óleo ou com pesados candeeiros a mostrar que sou pessoa responsável. Não, fui para a rua. Sentei-me num banco de pedra, debaixo de uma azinheira na qual os pássaros cantavam desvairadamente. Como estava uma gostosa aragem, a sombra e o sol passeavam na minha cara. Estive para começar a reunião dizendo que esperava que o canto da passarada não os incomodasse mas não sei porquê esqueci-me de tal mas penso que ficou claro que o local em que se está não condiciona, por si só, a produtividade. Há quem pense que teletrabalho é igual a férias e esteja deserto para retomar a 'normalidade', não percebendo que, se com equilíbrio e uma correcta adequação, o teletrabalho pode ser uma opção bastante inteligente. Claro que nem todos os trabalhos o permitem mas, permitindo, o teletrabalho deve ser equacionado com abertura e inteligência.

Foi, pois, com contentamento que vi que, uma vez mais, Jacinda Ardern mostrou que é uma líder para os novos tempos. Toda a gente reconhece como esta mulher descomplexada, sem preconceitos e com a ousadia que caracteriza aqueles a quem a inteligência não atrapalha, é estimada pelo seu povo e anda sempre uns passos à frente dos líderes de outros países.

Uma vez mais, Jacinda inova e arrisca ao avançar com a sugestão de que, para equilibrar trabalho e tempo pessoal e para ajudar a relançar a economia e o turismo local, os empregadores pensem na semana de trabalho de quatro dias.

Fosse por cá e o meu apoio estava tomaticamente dado.

Tenho centenas de anos de vida profissional e uma coisa posso eu testemunhar: se o trabalho estiver eficientemente organizado, se apenas se fizesse o que é relevante, se se pusesse de parte tudo o que é absurdo e burocrático, se as pessoas se focarem no que têm que fazer em vez de se entreterem com frioleiras e desnecessidades, ou o horário de trabalho poderia passar para cinco horas por dia ou a semana de trabalho para quatro dias. E isto posso eu garantir.

E mais: entusiasticamente estou com a Jacinda. Com mais tempo de lazer ou de descanso, não apenas toda a gente poderia ser mais feliz como o mundo seria outro. Consumir-se-ia mais cultura, mais turismo interno, ser-se-ia mais tranquilo e feliz, haveria menos stress, deixaríamos de passar pela vida feitos estúpidos.

Transcrevo do DN -- e só espero que António Costa, um dos melhores líderes europeus, também perfilhe a ideia e desafie os empresários e gestores portugueses a avançarem por aí:
Numa conversa em vídeo ao vivo no Facebook, Ardern explicou que numa altura em que as fronteiras do país continuam fechadas e o desconfinamento já começou, até porque a Nova Zelândia tem sido dos países mais eficazes a lidar com a pandemia de covid-19 e em reduzir a curva de infetados e mortes, o turismo doméstico ganha importância.
Nesse contexto, a primeira-ministra diz: "Tenho ouvido muitas pessoas a sugerir que deveríamos ter uma semana de trabalho de quatro dias. Em última análise, isso é algo entre empregadores e funcionários. Mas, como já disse, temos aprendido muito com a covid-19 e temos visto uma produtividade e flexibilidade das pessoas que trabalham em casa que é prometedora".
Sendo assim, Ardern conclui que a semana de 4 dias "iria claramente ajudar o turismo no país", daí deixe a sugestão: "incentivo todas as pessoas a pensarem nisso, nomeadamente se é um empregador e está numa posição em que isso pode funcionar na sua empresa".
Nem mais. Só espero que os políticos do meu país abram a cabeça e ponham os olhos na Jacinda. A bem do país e dos portugueses, sigam o seu exemplo e incentivem o mundo empresarial. E comecem por dar o exemplo na administração pública.

O mesmo tema pode também ser lido, com maior desenvolvimento no Guardian: Jacinda Ardern flags four-day working week as way to rebuild New Zealand after Covid-19.



This is an opportunity for a massive reset

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As flores vêm pela mão de Brandy Kraft e são para quem tão generosamente me lê, estando aí desse lado a fazer-me companhia.
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Um bom dia com alegria. 
E com saúde e motivação.

segunda-feira, agosto 12, 2019

Aula prática de ioga
(à beira-mar)





O meu marido diz que fica mais cansado nas caminhadas comigo do que, quando manhã cedo e sozinho, percorre muito maior distância em muito menos tempo.

As minhas paragens nas nossas caminhadas conjuntas quase o exasperam, E digo quase pois ele tem o auto-controlo suficiente para se conter. Explico-lhe que o exercício físico é apenas parte da equação porque o exercício de desfrutar o inesperado e contemplar a beleza faz bem à alma e, certamente, também bem ao coração. Portanto, aconselho-o a que diminua o biorritmo e programe os neurónios para, quando anda a baixa velocidade, ser capaz de contemplar o que o cerca. Por outro lado, faço também eu o esforço de andar de seguida, sem parar de metro a metro. Mas logo aparece novo motivo de interesse e os bons intuitos logo esmorecem. E este domingo foram muitas as razões para abrandar, quiçá mesmo parar - quando não mesmo ficar em stand by

Depois da capoeira, de crianças a brincar em contra luz, de duas reboludas com trancinhas, umas encarnadas e outras roxas, a passearem cãezinhos tão reboludos quanto as entrançadas e bem nutridas donas e de uma madame vestida em full white, um vestido produzido, toda ela como se fosse uma noiva a rebentar pelas costuras do vestido e, curiosamente, a andar de trotineta, e de gaivotas a meditar à beira de água ou a voar com as suas longas asas bem abertas, eis que aparece uma beldade a fazer ioga.

Pus-me a olhar: que elasticidade, que perfeição de movimentos. Pensei no que se passou no outro dia, nem há um mês, quando fui ter uma aula de ioga e ia desmaiando, a pressão arterial nos mínimos dos mínimos. E, no entanto, olhando a elegante e elástica mulher que, no areal, se dobrava e desdobrava, dava a ideia que era fácil. Cada um é para o que nasce.












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Escolhi fotografias em que não se vê bem o rosto da bela mulher -- mas com pena: é mesmo muito bela. Rosto sereno e belo, como elegante e belo é o seu corpo. 

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sexta-feira, novembro 16, 2018

O impossível encontro de dois mundos condenados à incoincidência




Dantes o espaço não tinha um centro. Ganhou-o agora; um olhar, um remoinho de coisas inapreensíveis a que chamo tu. Mas é um centro inquieto. És tu, ou talvez antes, qualquer coisa que só alcanço por ti. É, sob essa voz estridente de desespero e disfarce, uma outra voz inaudível mas infinitamente certa. É, sob esses gestos de fuga e atordoamento, o medo que para ti represento, um medo afinal ao encontro, ao impossível encontro de dois mundos condenados à incoincidência

Sabemos que o amor é sempre de perdição por essência, que nunca o podemos medir com a vida; sobra sempre aquele resto que tanto dói e nos revolta sem causa. E a impossibilidade moral de comunhão física entre ambos dá-nos, por isso, ao menos, a imensa e difícil alegria trágica de viver a incomensurabilidade do amor, sem ser preciso romanceá-lo. Não confundimos a tragédia de essência com as fórmulas romanescas; o monte dos vendavais está-nos no sangue

Tu és o tu que digo a tudo o que tenho amado. Amo-te como se tem um enorme desgosto

Quero-te porque existes, porque não posso enganar-me, que eu amo como só se pode amar com a certeza de estar certo; mas tudo o que tem valor neste mundo é filho de um amor de suor e agonia, sobre a cama de todo um infinito a separar-nos, e a ligar-nos por isso mesmo

Amei sempre em tudo, e em qualquer corpo, o teu sorriso em mim já tão antigo. Tu és hoje para mim o verso, a frase, a certeza fixada, a evidência da nossa divindade humana e real, pulverizada em tantos instantes a reaver. És o alfabeto com que leio a presença real no mundo de tudo o que os mitos prometem sem saber o que dizem

Eu amo, porque te amo (e amo neste meu amar-te) toda esta leva de condenados à morte que temos sido desde as células mais antigas; e quando te beijo sem boca, que é o que faço todos os momentos, quando as minhas mãos se fazem olhar e te poisam levemente no corpo, há a amargura de um fim que é mais do que o nosso; é uma cólera represa a conspirar contra todas as cruzes dos cemitérios.

Tudo o que na terra e no mar nos aturde e delicia de mistério não basta, como imagem, para traduzir esta tão simples, e até imaginária explosão do teu corpo, num rito a que renuncio, mas que, simples amor, se me faz consciência.

Não existo como Adão masculino, porque nunca estarei completo fora de uma identidade contigo que, no entanto, passa pelo meu desejo, portanto pela evidência de seres radicalmente outra como a luva na mão. E não existo como Adão de Eva incluída, porque (ai de nós!) há entre ti e mim, como entre todos os que também dizem eu (e não sei amar como a ti), toda aquela infinita distância tu-eu que muda de sentido para cada um de nós mas subsiste sempre como relação invencível.

Odeio e estilhaço todos os espelhos em que me veja direta ou inversamente contente, e até em que simplesmente me veja (eu que não existo), na epopeia de uma matéria humanizada cuja eloquência mais viva é hoje a dos seus ritmos.

Ajuda-me a fazer essa alma. E que o teu sorriso tão antigo, sorriso de toda a mãe, irmã, namorada que me resta, me olhe desde essa esperança, a mais inominável e a mais certa, a quem emprestaste o teu rosto.

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[Excerto de carta de Óscar Lopes dirigida à mulher, Maria Helena Madeira, há 63 anos quando estava preso nos calabouços da PIDE no Porto, encontrada agora no meio de papéis do espólio do professor e ensaísta. O excerto foi obtido com base no artigo do Expresso da autoria de Valdemar Cruz: Todos os amores são de perdição. E esta é, em minha opinião, uma das mais belas cartas de amor que alguma vez me foi dado ler]

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A primeira fotografia é da autoria de Maurice Renoma. 
Ólafur Arnalds interpreta Take My Leave Of You

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quarta-feira, março 25, 2015

Aurélio Agostinho e Flória Emília. Confissões. A vida é breve.


No post abaixo, falei de Herberto Helder. Não gosto de despedidas pelo que não sabia bem como falar dele sem me tornar vulgar. Por ter tido uma pena muito grande não quis deixar de referir a sua morte mas, confesso, foi com dificuldade e alguma relutância que o fiz.

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.

Comprei uma edição muito bonita das Confissões de Santo Agostinho com prefácio de Eduardo Lourenço, um livrinho que parece um missal. 


Infelizmente o meu tempo é sempre curto e, por isso, o que aqui vou transcrever resulta de não mais do que abrir, ler, folhear, ler, deter-me aqui e ali, aquela leitura picada que me agrada mas que, em alguns casos, me deixa frustrada pois o que me apetecia era reclinar-me debaixo de uma árvore e ler devagar, devagar, pensar nas palavras lidas, talvez lê-las em voz alta para ouvir a sua toada ou sentir-me mais próxima de quem as escreveu. Mas um dia será.

Escolhi um pequeno excerto do capítulo 30, Tríplice Tentação, do Livro Décimo apenas para poder fazer contraponto com um excerto de um outro livro, A Vida é Breve, no qual Jostein Gaarder ficciona a carta de Flória Emília, 'a mulher com quem Santo Agostinho viveu antes de escolher afastar-se do amor humano para conquistar o amor divino'.





Há no interior do homem tanta inquietude que não está ao alcance de nenhum Deus - nem de nenhuma mulher - poder apaziguá-la. 
George Bataille - (no prefácio) 



Mandais-me, sem dúvida, que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência do mundo. Ordenaste-me que me abstivesse das relações luxuriosas. Quanto ao matrimónio, apesar de o permitirdes, ensinaste-me que havia outro estado melhor. E porque mo concedestes, abracei-o antes de ser nomeado dispensador do vosso Sacramento.

Mas na minha memória, de que longamente falei, vivem ainda as imagens das obscenidades que o hábito inveterado lá fixou. Quando, acordado, me vêm à mente, não têm força. Porém, durante o sono, não só me arrastam para o deleite, mas até à aparência do consentimento e da acção. A ilusão da imagem possui tanto poder na minha alma e na minha carne que, enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a acções a que, acordado, nem sequer as realidades me podem persuadir.

Meu Deus e Senhor, não sou eu o mesmo nestas ocasiões? Apesar disso, que diferença tão grande vai de mim a mim mesmo, desde o momento que ingresso no sono até àquele tempo em que de lá volto!


(in 'Confissões' de Santo Agostinho)

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Baseada nesta confissão concluo que ainda não te deixaste castrar. Sentes a minha falta de vez em quando? Não serão as minhas recordações e os nossos antigos 'hábitos' que te visitam nos sonhos? Espero que não te tenhas deixado castrar ainda, Aurélio, tu que fostes outrora tão vigoroso no meu leito. Podias ter arrancado os olhos, como fez Édipo ou cortado a língua, se não o fizeste até agora, é porque ainda desejas os meus beijos.

O teu sexo era também um órgão sensual. Ou estarei enganada, Aurélio? Falas constantemente do 'prazer sensual' mesmo quando te referes ao deleite do amor.

Crês tu por acaso que os teus olhos ou os teus ouvidos são uma criação divina superior ao teu sexo? Pensas a sério que algumas partes do corpo humano são, perante Deus, menos dignas que outras? 

(in 'Vita Brevis' de Jostein Gaarder)
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A música é Only The Winds - Ólafur Arnalds 

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Relembro que sobre as palavras de Herberto Helder - que parecem vindas do interior da terra, do ventre húmido das mulheres que ele amou ou das patas das que correm na noite como éguas abertas - tenho um post já aqui abaixo.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa quarta-feira. Com serenidade. E amor.

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