No post abaixo já me insurgi contra o que se está a passar nas urgências dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Há coisas que devem ser olhadas com a seriedade que elas merecem e a vida humana é, seguramente, uma delas.
Paulo Macedo deveria reflectir nisto, a contabilidade que ele gosta de fazer não deveria esquecer a contabilidade das mortes que decorrem da gestão do seu ministério. Passos Coelho, que parece que chefia o governo do qual Paulo Macedo faz parte, também deveria reflectir nisto. E Cavaco Silva, que supostamente estará a acompanhar a situação do país, não deveria ignorar o que se está a passar.
Mas, enfim, talvez tudo isto seja pedir demais a estes personagens. E, sobre isto, falo no post abaixo. Aqui, agora, a conversa é outra.
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No outro dia, uma das crianças, numa exposição, em frente de uma pintura abstracta, perguntava-me o que era aquilo. Respondi que achava que não era nada. Ele ficou admirado, como poderia alguém fazer uma coisa que não era nada? Disse-lhe que uma pintura não precisa de ser alguma coisa em concreto. Ou poderia ser uma parte de uma coisa de que só estávamos a ver essa parte e, por isso, não percebíamos. E, de facto, ele não percebia. Está habituado a fazer desenhos em que se lhe pede que represente qualquer coisa concreta: um barco, uma casa, uma árvore, a família. Disse-lhe que se pode pintar de uma maneira diferente da que se vê, que podemos pintar o que imaginamos. Ele continuou muito admirado.
Disse-lhe que, para fazer uma coisa tal e qual, mais valia fazer uma fotografia e que, mesmo assim, numa fotografia também se pode mostrar apenas uma parte do que se vê ou mesmo não se perceber o que é.
Gosto muito de Paul Klee e, tantas vezes, vá lá eu saber explicar o que é aquilo que ali se vê ou porque é que o fez daquela maneira.
À direita, Senecio, Paul Klee, 1922 (também chamado, com humor, Head of a Man Going Senile) _______________________ A minha cor é psíquica — ele disse. E as formas incorporantes. (...) Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee. Manoel de Barros em Klee da Bolívia |
Fiz copiar algumas das suas pinturas para azulejos para poder tê-las junto a mim.
Uma delas é de uma simplicidade desarmante, um anjo, ou um espírito, a servir um pequeno almoço. Não me perguntem porque é que eu olho para esse pequeno trabalho e lhe acho tanta graça - talvez a leveza, o humor, o desconcerto. Quis tê-la perto de mim, um espírito a andar por ali, in heaven, servindo leite, pão, fruta.
Eu levava as caixas com os azulejos pintados, marcava-os por trás, para que o senhor da aldeia que fazia estes trabalhos, ao aplicá-los nas paredes ou nos muros, soubesse a sequência e, para ajudar, deixava ainda um desenho com o esquema matricial. Ele ia lá fazer isso durante a semana e durante a semana nós não estávamos lá, era por esses esquemas que ele se orientava. Geralmente corria sempre tudo bem.
Contudo, quando aplicou este pequeno painel e eu lá cheguei, ao olhar para o resultado ia-me dando uma coisa: uma perna do espírito para cada lado, uma das pernas encostada à ponta de um braço, a asa nem se percebia que era uma asa, os pés em cima, a um canto, quase pegados um ao outro, tudo desligado - em suma, um desastre. Fiquei estarrecida a olhar para aquilo e, confesso, só me apetecia chorar. Não percebia como tinha acontecido uma coisa daquelas nem percebia como não tinha ele dado por aquele disparate. E não via maneira de tirar os azulejos para os aplicar da forma correcta sem os partir.
Quando o senhor lá chegou, mostrei o meu descontentamento. Eu olhava para o desenho e achava que se via bem que estava tudo mal e sentia-me mesmo triste com o absurdo que ali estava. Ele, muito admirado, disse-me que se calhar se tinha enganado e que tinha lá tido um cunhado a ajudá-lo e que, se calhar, o cunhado tinha percebido mal as orientações tendo-lhe passado os azulejos para as mãos virados ao contrário, não sabia, mas que aqueles desenhos dos azulejos que eu andava a trazer-lhe lhe pareciam tão fora de normal que achava que não se notava a diferença. Eu ouvia aquilo e não queria acreditar.
Há um pensamento em Paul Klee que sempre me comoveu, aquele onde diz que o visível é só um exemplo do real. A poesia seria então a intenção de revelar os aspetos da realidade que não são visíveis Roberto Juarroz em Uma outra realidade |
Mostrei-lhe a página do livro em que se via a pintura tal como ela era na realidade e ele olhou - e eu via que ele estava mesmo preocupado com o que tinha acontecido e com a minha tristeza - e com franqueza disse que eu não levasse a mal mas que o original não lhe parecia muito diferente do que tinha saído.
Juro, eu ouvia as palavras dele e também não queria acreditar. Como era possível? O que estava no muro e o que ele estava a ver no livro não tinham nada a ver... e ele achava que ia dar no mesmo ou que era indiferente? Eu mal conseguia falar tal a estupefacção e tal a tristeza que aquele erro me causava.
O meu marido nestas coisas o que quer é que não haja dramas e saíu-se com uma daquelas que lhe é típica: que assim até tinha mais graça. Mais uma vez eu não queria acreditar no que estava a ouvir. Lembro-me bem de ter ficado furiosa, parecia-me aquilo uma heresia da parte dele, estava a querer sacrificar uma coisa linda apenas para não ter chatices, era uma tentativa estapafúrdia para acabar com o assunto.
Mas a verdade é que, depois, conformei-me. A alternativa seria partir aquilo, mandar fazer outro painel e esperar que a coisa saísse bem. Mais despesa e mais tempo de obras.
Ficou assim. Agora, quando olho dá-me vontade de rir.
E já está o anjo, caseiro como um pão fraternal e seguidor até à morte.
O espírito que vagueia in heaven a servir chá e scones é um anjo psíquico, ainda mais surreal do que o genuíno, talvez nem Klee o reconheça quando o vê lá de cima.
É tudo tão relativo.
É como a poesia. Porque é que umas dúzias de palavras se tornam uma poesia? Não sei dizer. Pode nem ser uma ideia. Pode ser apenas um esboço de uma ideia, um fragmento, uma musicalidade.
Um pássaro preto.
Este domingo de manhã - uma manhã gelada, o rio agreste, rijo, as gaivotas doidas, soltando grandes gritos pelos ares - vi um pequeno pássaro preto sossegado na relva olhando as águas picadas. Preparei-me para o fotografar mas o vento interrompeu a sua meditação, voou, escondeu-se numa árvore, deixei de o ver.
Mas porque fico eu numa alegria sempre que vejo um pequeno pássaro preto no meio do verde? Não sei explicar. Sei apenas que aquele pequeno pássaro é um poema que me cativa e enternece. O que poderia eu dizer sobre ele? Não sei. Não saberia dizer muito mas, quando o vejo, sinto a liberdade de ser um pequeno pássaro preto na relva junto ao rio como se fosse ele.
Mas ouçamos agora as palavras de Wallace Stevens. Qual o sentido das suas palavras? Porque é poesia o que ele diz? Não sei dizer. Mas é. Oh, é. É mesmo.
Thirteen Ways of Looking at a Blackbird de Wallace Stevens
(lido por Tom O'Bedlam)
A man and a woman
Are one.
A man and a woman and a blackbird
Are one.
The river is moving.
The blackbird must be flying.
It was evening all afternoon.
It was snowing
And it was going to snow
The blackbird sat
In the cedar-limbs
Um cedro in heaven, perfeito demais para ser verdadeiro |
Blackbird
por Herbie Hancock & Corrine Bailey Rae
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Paul Klee para quem não esteja muito familiarizado
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Luminosos os dias visitados pela cor, pela poesia, pela música, pelo inesperado, pelo afecto.
Luminosos os dias que trazem palavras inesperadas, formas desconhecidas, vozes que falam de pássaros ou de cedros, afinidades indefinidas, outras realidades, sorrisos que se adivinham em quem os recebe.
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Não é que me apeteça muito trazer para aqui temas desconfortáveis mas permitam que relembre que a seguir a coisa descarrila e falo do actual estado da saúde em Portugal. Não é tema que predisponha bem mas, enfim, caso queiram, é só descer até ao post já a seguir.
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa semana a começar já por esta segunda-feira.
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