
Quando eu era pequena, quer os meus pais, avós, tios ou quase todos os demais conhecidos viviam em casas que eu achava normais. Entrava-se e toda a casa ficava relativamente à vista. Mas havia uma casa que eu achava misteriosa e da qual nunca percebi os contornos. Tinha divisões em baixo, depois uma escada sempre a meia luz e, em cima, um corredor comprido com muitas divisões de portas sempre fechadas. Lembro-me de algumas vezes estar numa das divisões com a amiga da minha mãe, uma mulher da mesma idade que era modista. Tenho ideia de que estava também a meia-luz embora me tenha ficado a ideia de janelas altas, com portadas de madeira. Essa mulher era a mãe de um menino um ano mais velho que eu, o meu primeiro amigo, o meu grande e inseparável amigo até eu ter dez anos. Tal como a mãe, ele era reservado, silencioso. A minha mãe era muito loura, de olhos muito azuis, muito alegre. A amiga tinha o cabelo escuro, olhos escuros e parecia viver sem prazer. No entanto, isto pode ser a impressão de uma criança pequena. A casa era como ela, sombria, silenciosa e eu gostava sempre de ter oportunidade de lá ir, em especial lá acima, para tentar perceber o que lá se escondia.

Mais tarde, conheci uma outra casa fascinante. Teria eu onze ou doze anos. Uma das minhas colegas de turma era muito rica. Vivia numa casa extraordinária. Vivia no último piso de um dos prédios mais emblemáticos da cidade, prédio que pertencia aos pais. Nos outros andares havia direito, esquerdo e centro e todos enormes; mas, no último piso, onde ela morava, estava tudo ligado. Tinha apenas um irmão. Uma casa imensa para dois adultos e duas crianças. E as criadas. E tinha um terraço enorme e uma estufa e um solário. Eu adorava ir para lá. Tinha uma vista espantosa de toda a cidade. Por dentro, a casa era tão grande que havia uma central com botões correspondentes a cada divisão. Quando alguém queria uma água ou um sumo, tocava uma campainha que soava na central que havia na copa. As empregadas andavam fardadas e, na realidade, eram as verdadeiras chefes da casa. A mãe ou nunca estava em casa ou nunca saía dos seus aposentos. Tinha perdido um filho, anos atrás, e parece que nunca tinha recuperado. O pai era um homem de negócios e também nunca o vi em casa. O irmão dela levava amigos lá para casa e ela também. Mas cruzávamo-nos apenas vagamente pois a casa era francamente gigante. Lembro-me de uma sala que ficava a meio da casa, uma esquina em redondo como redondo era o ângulo do prédio. Nunca eu tinha estado numa sala daquele tamanho. Sempre vi aquela sala sem pessoas, só móveis muito bonitos e bibelots fantásticos que vinham de outros países. E nós por ali andávamos à vontade, usando a casa como se não tivesse dono. Por volta das quatro ou cinco da tarde, não sei, tocava uma campainha e nós interrompíamos o que estávamos a fazer e íamos lanchar à copa. Havia uma mesa grande mas havia também um balcão alto com bancos altos. Era aí que preferíamos lanchar.

Uma outra nossa amiga, que morava entre a minha casa e esta casa gigante, vivia numa casa muito grande de tipo solar, numa quinta também enorme onde havia um extenso laranjal. Aí não íamos tanto. Havia lá muitos cães e eu tinha um bocado de medo. A quinta estava toda murada. A casa grande dava para um grande pátio para o qual davam também as casas dos empregados. Aí havia sempre bulício. Nunca vi o pai. Quer o pai quer a mãe eram bem mais velhos que os meus pais. Tinham seis filhos, todos irreverentes, mal comportados, bem dispostos. Se bem me lembro, a mãe tinha sido deputada na antiga assembleia nacional. Não sei se nessa condição ou na condição de aristocrata e rica, só se fazia deslocar com motorista. Só me lembro de a ver a chegar ou a sair com motorista. Em casa, não me lembro de a ver. Era uma casa em dois pisos, com muita patine, e também aqui, eram as empregadas que tomavam conta da casa e das crianças. Tinha bancos de pedra junto às portadas, tinha grandes tapeçarias, mobílias que deveria ser valiosas. Lembro-me de um grande louceiro, mesmo grande, grande, imponente, com pratos de louça e peças de prata e de uma mesa enorme nessa casa de jantar. Passava-se de umas divisões para outras, parecendo que não acabavam e isso para mim era um grande motivo de curiosidade e interesse.
Depois disso tenho conhecido outras casas fantásticas. De uma, em Sintra, um belíssimo palacete, já uma vez falei num daqueles folhetins que, volta e meia, me dá para escrever. É uma casa de família e ali poderia ser feito um belo filme. De facto, é uma casa tão extraordinária que poderia ser a personagem central de um romance, de um drama, de uma série de televisão. Aí, uma vez mais, passa-se de umas divisões para outras como se fosse uma casa infinita. Quando sou convidada para lá ir, encanto-me. Por minha vontade pedia carta branca para passar lá um dia inteiro por minha conta.
Mas, enfim, escuso de continuar a falar de casas que, de alguma forma, me impressionaram.

Mas, tenho que confessar, talvez por outros motivos, as minhas casas também me impressionaram. Esta, da cidade, foi assim: por causa dos livros, eu andava à procura de uma casa maior, de preferência com seis divisões. Pelos meus filhos, habituados a uma vida de cidade, com amigos e amores, com desportos e actividades sempre por perto, queríamos uma casa na cidade e não no campo. Procurámos procurámos, procurámos. Uma vez, estavam a fazer um prédio na rua onde eu morava. Um dia, ao chegar, estava um carro mal estacionado com indicação de que o dono estava na obra. Fui avisá-lo. Apareceu um homem mais ou menos da minha idade, com um bom ar, simpático. Percebi que era o construtor. Perguntei-lhe se as casas desse prédio em construção eram grandes. Disse-me que eram T4 normais. Perguntei-lhe se tinha ou sabia de casas grandes. Disse-me que sim, uma que tinha sido dele e que estava a reconstruir. Mais tarde haveria de me contar que era a casa onde tinha vivido com a primeira mulher e com a filha e que estava a reconstruir para que a mulher da altura, a segunda, não se importasse de ir para lá (mas que não sabia se nem mesmo assim ela quereria). Mas, naquele primeiro dia, não sei dizer bem porquê, interessei-me logo. Perguntei-lhe onde era. Disse-me e disse-me também que ia lá estar no dia seguinte à tarde. No dia seguinte, apareci lá. A casa estava em reboco, tudo a ser feito de novo. A casa tinha uma deslumbrante vista para o rio e era, realmente, uma belíssima casa. Senti imediatamente que era a casa pela qual eu estava à espera. O que tive que penar pela casa, as surpresas que tive, algumas muito boas, o inacreditável que foi todo o processo até que ele assimilou que a mulher jamais viria viver para aqui e aceitou vender-me a casa, é digno de outro filme. No dia da escritura, chorou ao vender-nos a casa. A mulher acompanhou-o mas não estava nem aí.

A casa no campo foi outra. Sempre tive vontade, ou melhor, necessidade, de ter uma casa no campo. O meu marido nem por isso. Durante anos procurámos. Ou eram caríssimas, ou horrorosas, ou a milhas, ou em lugares recônditos ou com vizinhança nula ou péssima. Já todos, o meu marido e os meus filhos, odiavam que eu persistisse, já nenhum deles tinha mais paciência para continuar a procurar. Até que um dia vi um anúncio. Chamou-me a atenção. Consegui convencê-los a ir ver. Estava de chuva, não queriam ir. Fomos ter com a dona da agência, uma pequena agência local. Quis mostrar-nos primeiro uma outra. Na verdade, um monte, literalmente um monte. Era vendido com o projecto de uma moradia que ela e o marido, que tinham também uma empresa de construção, fariam nascer. Mas eu estava com a ideia no tal anúncio. Lá fomos, num dia muito cinzento e muito molhado. E foi, de novo, amor à primeira vista. Era uma casa muito, muito antiga, com um acrescento recente e legal, uma casa no meio de pedras e mato rasteiro. Os miúdos entraram a correr e um disse: 'aqui é o meu quarto' e outro disse 'e aqui é o meu'. E eu comecei logo a pensar em desfazer-me daqueles móveis escuros e a pensar que tudo aquilo precisava de uma grande volta. E que ali, onde estavam pedras e mato rasteiro, haveria um dia um pequeno bosque. E foi outra luta. Papéis, papéis. Muito, muito tempo. Mas não desisti(mos). É agora o pedaço de terra que sinto como meu, como se tivesse nascido dele.

E talvez por ter esta ligação estreita a casas ou à recordação de algumas, sonho recorrentemente com casas. Sonho que chego a um lugar e que há uma casa fantástica que eu desejo que seja minha e que a vou visitar e que é enorme, sem princípio, meio e fim, com muitas divisões, que tudo ali me encanta, que me ponho à descoberta e que tem recantos maravilhosos e surpreendentes. Adoro ter este sonho. Nem quero acordar, para estar, maravilhada, a descobrir divisão após divisão, móveis lindos, louças e quadros magníficos, janelas grandes, muitas portas.
Mas, se hoje fizesse uma casa de raiz ou fosse escolher uma casa para iniciar uma vida nova, escolhia uma casa diferente das minhas. Talvez escolhesse ter casas como estas dos vídeos abaixo.
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As pinturas são de Gerhard Richter e acho que vão bem com Arvo Pärt, aqui com Pari Intervallo
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Era para ter falado dos 'Livros Perdidos' mas cheguei tarde a casa, tive mil coisas para fazer, é tarde e espera-me um dia e pêras. Por isso, com vossa licença, vou já direitinha para a cama, apenas não rezando a todos os santos para isto não estar pejado de gralhas porque sei que não seria a reza a editar o texto.
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E uma boa semana a todos a começar já por esta segunda-feira.