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quarta-feira, agosto 03, 2022

Os mais qualquer coisa de entre os bloggers que sigo (Parte 2):
o mais cirúrgico e o mais inesperado.

 

No seguimento do post de ontem no qual festejei o blogger mais jovem, a mais criativa e o mais romântico, seguem-se hoje outros que se destacam.


O mais cirúrgico. Um dos mais oportunos, mais precisos e mais contundentes nas análises ou denúncias que faz. Não vai em cantigas, mantém-se fiel aos seus princípios e, por mais canelada que leve, não desarma nem baixa os braços. E não manda dizer por ninguém, não rodeia, não usa meias palavras. E como escreve bem... Para além do dia a dia há a série Revolution through evolution -- as recomendações ao início da semana, cada uma mais relevante ou curiosa que a outra. E depois há a turminha do desacato que atrai e que, à porta do blog, nos comentários, arma sempre uma divertida baderna. Esmeram-se nos nomes que inventam e batem-se taco a taco com os nomes que já fazem parte da mobília. Se fosse um bar, seria daqueles em que, a par de uma boa tertúlia, frequentemente acabam todos à batatada (para no dia seguinte lá estarem, de novo, todo caídos).

Valupi do Aspirina B

Alguns exemplos:

Ao assistir à entrevista a Luís Montenegro, dei por mim a concordar com o que sempre achei dele: eis aqui um tipo simpático, bonacheirão, com quem deve ser impecável estar na comezaina e na copofonia. E deste assentimento confirmado saltei para um estado de empatia. Sentia que conseguia sentir o que ele sentia acerca de si próprio ao ser apertado pelo excelente Paulo Magalhães. Foi assim que fiquei a saber, graças à magia da empatia, que o Montenegro sabe que mesmo nos seus melhores dias não passa de um político inane, merdolas.

O futuro da direita não decadente precisa da lhaneza e virtude de Moreira da Silva ou similares. Isto para começo da conversa.

in Empatia para Montenegro

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Quem ler mais esta ladainha contra as democracias liberais – Estamos a matar a democracia? – facilmente conclui que o putinismo da Soeiro Pereira Gomes é a consequência de já não se ouvirem os amanhãs que cantam. Passam agora os dias a olhar para o abismo, com as consequências que o outro há muito descreveu.

in Tadeuismo

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«Quando eu ponderar uma vida no crime, a primeira coisa que eu vou fazer é construir um altar todo em talha dourada em honra de Ivo Rosa lá em casa e rezar-lhe uma oração todas as noites.»

Araújo das piadolas

Existe uma campanha contra Ivo Rosa, a qual une a direita política e mediática num coro de perseguição obsessiva como nunca se viu igual a respeito de um juiz em Portugal – só comparável à perseguição a Sócrates. Tal deve-se à Operação Marquês, tendo começado logo que Carlos Alexandre ficou em risco de perder o controlo absoluto sobre o seu desfecho. É uma campanha que não aflige os partidos da esquerda pura e verdadeira, nem o PS, nem o ministério da Justiça, nem o sindicato dos juízes, nem o Presidente da República, nem a minha vizinha do 4º andar. Trata-se de uma campanha alegre, portanto, e que continua porque todo o dano que se lhe conseguir fazer promete trazer ganhos para o dano maior que se deseja venha a atingir Sócrates (logo, a também atingir o PS, embora o PS de Costa conviva muito bem com essa armadilha onde os direitolas estão enfiados a ver a caravana do poder a passar).

O Sr. Araújo e coleguinhas televisivos pagos pelo Balsemão são três dos mais influentes carrascos de Ivo Rosa na comunicação social “de referência”. Fazem-no a coberto do registo “humorista”, para que o cinismo e a sonsaria atinjam o grau máximo de veneno no espaço público. Na citação acima, este “comediante” recorre ao sensacionalismo para broncos e trata literalmente Ivo Rosa como cúmplice de criminosos. Só rir, né? O Estado de direito e as legítimas diferenças na interpretação e aplicação da Lei que se fodam, viva o culto dos justiceiros que despacham a bandidagem com cordame e autos-de-fé.

Um estudo da Marktest analisou 60 e tal figuras públicas e descobriu que Ricardo Araújo Pereira é a personalidade com quem os portugueses sentem mais empatia. Ocasião para recomendar a leitura do Against Empathy, onde a tese é precisamente a de que a empatia pode boicotar, e mesmo anular, a deontologia e a ética – ou seja, a empatia pode servir para as maiores canalhices. É o caso com esta pulharia paga a peso de ouro, as vedetas da indústria da calúnia.

in Against empatas 

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O mais inesperado. Inconstante. Incerto. Indescritível. Intuitivo. Insólito. Nem sei bem dizer porque lhe acho a graça que acho. Mas acho. Apesar de uma certa maluqueira, encontro ali opções estéticas que me agradam e um certo gosto pela provocação que também me agrada. Talvez seja um dos bad boys da blogosfera. É pena que seja tão maçadoramente bissexto e é pena que não se esforce mais. Não fora isso e habituar-me-ia ao seu encanto. Assim, apenas está quase lá...

O anão gigante

in Sharing is caring

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Paul Outerbridge
André Kertész

in Projecto Díptico vertical #283

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todos os instantes de

infalibilidade e glória

em que estive 

certo, axiomático, infalível, convicto,

por conhecimento ou instinto,

com e/ou sem argumentos,

vencendo adversários, contendas e litígios,

trocaria por este

em que a verdade é minha

e tudo o que quero 

é estar 

errado


in Summa cum laude 

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The Sisters of Mercy, Henriette Browne
Word of the Day por Bella Tokaeva

Empalidece a arte ao encarar o fruto da natureza.

Summa Theologica, S. Tomás de Aquino c.1272

 in  Ars autem deficit ab operatione naturae

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Amanhã tentarei continuar. Tenho ainda que falar do melhor mestre relojoeiro que, afinal, é um disfarce pois a verdade, verdadinha, é que poderia fazer parte da mesma tropa de choque a que também pertence o sniper mais certeiro da blogosfera. Ou do historiador mais lhano e objectivo cujos textos gosto de ler em voz alta para o meu marido. E de outros. Ou outras.

Contudo, o tema dos novos precários também está a pedir para eu o agarrar. O mundo mudou e a precariedade assume novos contornos e toca os mais insuspeitos. Noutros casos, são os precários que não querem deixar de ser precários. De uma forma ou de outra somos todos descartáveis e é bom que o assumamos com humildade. Mas é um tema caleidoscópico. Apenas a malta mais obtusa o vê como um tema linear suceptível de ser resumido num slogan que seja martelado em manifs de aspecto vintage.

No entanto, para falar disto terei que ter disposição para falar um bocado a sério e não sei se tenho paciência ou se aí desse lado há quem, a meio da silly season, tenha pachorra para uma conversa desse tipo.

Amanhã logo vejo.

Pormenor de Apocalypse Tapestry, Angers, França

Como la cigarra (Jaroussky/Andueza/Pluhar)

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Um dia bom

Saúde. Boa disposição. Paz.

sábado, fevereiro 19, 2022

Escrever sem filtros

 

Não vou falar muito do meu dia. Deve ser uma seca para quem me lê, é sempre mais do mesmo. Por isso, limitar-me-ei a dizer muito pouca coisa. 

Tinha uma reunião manhã cedo e, de véspera, tinha-me queixado disso. Esta mania de marcarem reuniões de madrugada. Como não quero dizer que me deito às quinhentas, não tenho pretexto para dizer que à hora a que gostam de fazer reuniões estou eu ainda na melhor parte dos meus sonhos.

De facto, estava ainda a dormir, a sonhar que estava numa casa com uma parede azul-verde-turquesa-esmeralda e que estava a escolher objectos curiosos para a decorar. Lembro-me de uma caixa muito bonita com uma tampa de vidro e eu estava a colocar colares lá dentro e ia pendurar a caixa como objecto decorativo, ao alto, a tampa de vidro a parecer uma portinha que deixava ver a colorida pedraria dos colares. O tecto era branco e tinha a meio um florão estucado com um candelabro de Murano pendurado. Nisto, ouvi o meu marido a perguntar-me: 'Mas não tens uma reunião agora?' Levantei-me de um salto. Ele até disse: 'Calma! Não precisas de te levantar assim...' Pensei que me tinha esquecido de pôr o despertador. Afinal não. Devia já estar tão a dormir que o pus para uma hora depois. Por isso, tive cerca de quinze minutos para me preparar para me apresentar fresca, arranjada e desejavelmente assertiva na reunião. 

Portanto, começou assim o meu dia... e seguiu sempre a abrir.

Mas a seguir à hora de almoço peguei no livro e fui lá para fora, para o sol. Só que não havia sol. E o dog em vez de se deitar a dormir ao sol, talvez pela ausência do mesmo, resolveu pôr-se de pé a puxar por mim, a pôr a pata peluda em cima do livro, a esburacar-me as mangas. Fui buscar-lhe um ossinho a ver se se entretinha a roê-lo mas, qual quê, andou a atirá-lo, a saltar-lhe em cima, a escondê-lo e, pelo meio, punha-se de pé para me puxar o cabelo, para me descalçar as meias ou simplesmente para me moer a paciência. O meu marido critica-me: 'Não te impões... Bate-lhe'. Então, de vez em quando, dou-lhe uma tapa. Ele salta e volta ao mesmo ainda mais animado, até parece que a rir. O meu marido diz: 'Isso é que é bater? Para ele isso é uma brincadeira.'. Mas claro que não sou capaz de lhe bater com mais força. A coisa geralmente acalma-se quando o meu marido lhe dá um daqueles seus violentos gritos. Aí abana-se todo, como se para se sacudir (eu acho que é para fazer reset), e vai fazer outra coisa. Mas, muitas vezes, apenas faz um intervalo pois rapidamente volta ao mesmo. Até se cansar.

Mas, no meio, consegui ler mais um bom bocado do livro O ano do pensamento mágico. Não tarda estou a acabá-lo. É um livro muito tocante, muito sincero. A fragilidade de Joan, viúva, exposta de uma forma muito inocente, é verdadeiramente tocante. 

Já o falei: há no que ela diz muito do que a mim também me faz muita impressão -- a transição de um estado para o outro é coisa de um instante, de um acaso. Está-se bem e, no instante seguinte, já não se está. Ela interroga-se: e se, naquele dia, em vez daquilo, eu tivesse feito outra coisa? Joan percorre, de memória, todos os passos dados em conjunto, todas as palavras trocadas, tenta ver no computador dele as últimas palavras que escreveu. Tenta encontrar vestígios do que estava para vir, receia ter estado desatenta perante sinais que eram óbvios, tenta perceber se ele antevia, de alguma forma, que a sua vida estava prestes a extinguir-se. Percebo-a muito bem. Joan sente que, se de alguma forma conseguir desvendar o mistério, talvez consiga entrar melhor no mundo vazio, sem John. Tenta encontrar alguma racionalidade num mundo que, sem ele, lhe parece irracional. E, de uma forma muito íntima, muito ilógica, Joan deseja que o que aconteceu possa ser revertido. Um milagre da ciência ou qualquer outra coisa, não importa qual.

Enquanto tentava recuperar-se da perda do marido, a filha estava gravemente doente. O que Joan sofreu, o desgaste físico e psicológico a que esteve sujeita foram brutais. Perdeu imenso peso, ficou uma frágil pluma. 

Mas, ao contrário do que poderia pensar-se, não é um livro de autocomiseração. Escrito de forma seca, despojada, não há ali uma só lamechice. É uma escrita sem filtros. Quase parece uma escrita sem edição. As mãos escavando a mente e a alma.

Encontro também ali uma ideia que me é familiar. No meio da maior desgraça, eu dou por mim a tentar encontrar o lado positivo da coisa. Não há uma única situação em que isso não aconteça. Muitas vezes, interiormente condeno-me por dar por mim a tentar descobrir o lado positivo de uma coisa que é má de uma ponta a outra. Mas é involuntário. Apesar de ser uma coisa que nasce espontaneamente em qualquer ocasião, a verdade é que me ajuda a suportar os maus momentos e, ao mesmo tempo, ajuda-me a tentar ajudar os que estão inconsoláveis pelo que aconteceu.

Mas isto, a leitura, foi à hora de almoço.

A tarde foi bas (= business as usual). 

Mas conseguimos acabá-la um pouco mais cedo. Fomos caminhar e ainda era de dia. Ver os dias a crescerem traz-me alegria. Antes, ainda fui fotografar as magnólias que, prenunciando a primavera, já estão em flor. É uma árvore de um fantástico simbolismo: dá flor quando está despida. E se são belas e simples as suas flores. Emociono-me com as flores deste jardim que herdei, que uma mulher, antes de mim, imaginou, plantou, cuidou. Sei como é deixar para trás uma casa mas não imagino o que seja deixar para trás um jardim. Espero nunca ter que deixar.

Depois fomos ao supermercado. Depois à pet shop e dali ao restaurante buscar o jantar. Felizmente havia dinheiro nas duas carteiras pois o multibanco estava em baixo. 

Jantámos tarde, claro, mas, embora para aqui esteja como sempre estou (com sono), acho que foi um dia bom e, como estamos a entrar no fim-de-semana, sinto-me como se estivesse a entrar em férias. Contento-me com pouco e sinto-me agradecida com tudo. 

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Joan Didion's nephew reflects on her legacy and inspirations: 'Life was her material'


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Fotografias de Zara Carpenter na companhia de Emőke Baráth, Philippe Jaroussky, Artaserse – Handel: Lotario, HWV 26: "Scherza in mar la navicella"

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Desejo-vos um sábado agradável
Paz de espírito. Beleza. Afecto. Alegria.

terça-feira, junho 02, 2020

A tessitura e o açauí







Para não ser preciso ir despejar o lixo ao contentor da estrada, separamos os plásticos para um lado, o vidro para outro, o cartão para outro e, quando saímos para ir ao supermercado ou para ir ver  a família, levamos para a reciclagem, para os contentores grandes que estão perto da estrada nacional. Os restos, os orgânicos, vou despejar lá em baixo, sob a caruma. Os animais comem-nos e, o que sobra, vai sendo revolvido na terra. Acho que fertiliza o solo, que aproxima os animais, e escusamos de andar a pôr restos que se degradam no contentor da estrada.

Mas, então, um destes dias ia eu à noite, às escuras, descalça, pé ante pé, com um pratinho na mão com cascas de batata ou de fruta, quiçá alguns ossinhos, e dou com um pirilampo a voar à minha frente, a alumiar-me o caminho. Nestas alturas, arrepio-me. Não sei se é emoção pura, se é o inesperado do dito hecho estético de que Borges falou:
La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético." 
Eu ali, a noite com aqueles seus sons que cruzam o silêncio, a lua a crescer no céu, os meus pés nus e cautelosos sobre a caruma e, à minha frente, ziguezagueando, um pirilampo. Emocionada, pensei: olha, o açauí veio ter comigo. E ia andando e dizendo em voz muito baixa, quase sussurrando: 'Açauí, açauí...', como se querendo falar com ele. Açauí, açauí...

E, desde aí, quando escurece, eu olho em volta e penso: 'Será que o meu amigo açauí vem visitar-me?'. E, sem que ninguém me ouça, eu murmuro Açauí.... açauí...

Ao mesmo tempo ocorre-me, de vez em quando: 'quem será que aqui veio dar-me a conhecer este outro nome do pirilampo?'. E ponho-me a pensar se será este, se aquele, se aquela, tentando perceber como será a pessoa que tão generosamente me ofereceu um nome para eu dar à irreal aparição que é um pequeno açauí voando na noite, um pontinho de luz em que dificilmente se acredita.

Hoje cheguei aqui e resolvi rever o comentário para ver se havia alguma pista que me deixasse antever quem seria. Li, reli e não queria acreditar. Afinal não é açauí coisa nenhuma, é arincu. Reli. Arincu? Se o que ali está escrito é arincu, como é que eu registei açauí...?

Fui agora verificar o significado de açauí e, para ainda maior espanto, é palavra inexistente. E, no entanto, o pirilampo lindo que cruza a noite para deixar que eu o acompanhe parece que fica melhor vestido de açauí do que arincu. Não sei se alguém pode registar o nome ou se fica só meu. É um arincu mágico que muda de nome quando chega perto de mim, transforma-se em açauí.

Enfim. Não liguem. Coisas minhas.

É como tessitura. Li e pensei na La Dame à la licorne. Fiquei a pensar no que tinha lido e a pensar que a palavra certa ali era mesmo aquela, palavra que descreve bem tudo o que envolve coisas como  à mon seul désir (que eu, volta e meia, confundo com à mon seul plaisir). Tive vontade de ir buscar A Dama e o Unicórnio para reler alguns poemas, para ver as tapeçarias, para perceber bem as declinações de desejar e ser desejado: a primeira, a segunda e a quinquagésima derivada. 

Tessitura. Ponto a ponto, passo a passo, o fio que se entrelaça, que desliza e prende e volteia e se cruza com outro fio, de uma outra cor, o ponto e outro ponto, a tessitura perfeita, o desenho a anunciar-se, a insinuar-se. 

A Dama seduz
Ou o Unicórnio entrega-se?

No jogo da sedução
Quem usa a taça e a seta?

Eu capricho na conquista
no fogo da sedução

Sou Dama da minha vida
deixo nela a minha pista

Senhora de meu desejo
de meu prazer e paixão

Agora, estando eu nisto, assaltou-me a dúvida: tessitura? ou tecedura? Reli. Tessitura. Fui conferir. Pois, li uma coisa, tresli e pensei noutra. E, no entanto, agora parece-me que são sinónimos. Ou uma outra forma de dizer a mesma coisa. 

Aliteração. Alitero o sentido das palavras, aconchego-as a mim, ao fogo da minha paixão, ao capricho da sedução, teço e entreteço e enlaço e deslizo o laço e em alvoroço escondo a taça e espero que o prazer das palavras de mim não faça sua escrava porque não nasci para serva mas para senhora da minha vontade e, mesmo quando me desnudo, nunca mostro o meu corpo nu mas a minha alma que apenas ilude uma nudez que nunca é real. E agora que o escrevo penso que talvez aliteração também não seja a palavra certa mas isso agora também não interessa para nada até porque é capaz de não haver palavra para isto de nascerem asas no corpo das palavras. Portanto, adiante.





E um dia bom para si que aí está desse lado

domingo, março 01, 2020

Numa cabana sobre o rio, a ouvir a chuva





Foi por mero acaso. Era para ser noutro sítio, num lugar normal. Mas depois este tempo, de chuva, 
aí não, que graça tem?, não achas? 
acho, mas então onde?, aqui? 
aí acho que não, junto à praia com o tempo assim não tem grande jeito
pois, concordo, mas então onde?
não sei, não estou bem a ver
olha, e se for aqui? 
não sei, parece que também não me inspira, 
e assim, nesta hesitante preguiça, acabámos por pensar vir conhecer a região onde o meu filho tinha estado recentemente. Escolhemos um lugar que pareceu bonito, diferente. Cheio, excepto uma última cabana na encosta sobre o rio, desistência de última hora. Como uma casinha na árvore, mignonne como um ninho aconchegado. Um ninho feito de madeira, ainda com o perfume da madeira, confortável, pequenino e suficiente. Uma pequena cabana mergulhada na natureza.


Agora, enquanto escrevo, ouço a chuva a cair lá fora. Som tão bom. Ouço e é um som familiar, melhor: maternal, coisa do início dos tempos.

Tudo aqui está cheio de vida e de beleza. Fomos a pé até ao rio. As rochas estão molhadas, a terra está atapetada de musgo. Andámos no passadiço sobre as águas, vimos as margens férteis, as árvores inclinando-se, as folhagens tentadas, querendo ir a banhos. Tudo tão bonito, tão verde.


Vim com vários livros -- e, se agora não estivesse aqui tão quentinha, levantava-me e ia fotografá-los para vos mostrar -- mas, na estação de serviço, deu-me aquela vontade que me dá quando me cheira a férias e que antes me levava sempre a querer comprar uma revista e que agora, um pouco mais sensata, se ficou pelo Expresso. Mas ainda só li no carro pois aqui o tempo não tem chegado para desfrutar leituras. De tarde, fomos conhecer as redondezas e já tive uma agradável surpresa. A ver se ainda vos mostro. Ia à procura de uma terra soturna e austera (austera foi a minha filha que disse há pouco quando lhe contei da surpresa por ir a contar que a terra estivesse embrenhada em seco negrume e não me ocorria a palavra para o classificar). Que terra preciosa fui descobrir. Tenho mesmo que falar nela. 


Aqui ao meu lado um cavalheiro lê um livro. Como é usual, é um livro de História. Não sei porque escolheu uma área tão radicalmente oposta à História. Penso que um dia que tenha tempo para isso ainda irá dedicar-se mesmo à coisa. Estava tão absorto que nem deve ter reparado que o fotografei. Mas, para aqui mostrar, já lhe cortei um pedaço senão passava-se. Assim só se vê o livro que está a segurar. Não costumo estar na cama a escrever no computador enquanto ele lê. Agora também podia estar ali, na zona do sofá ou na secretária. Mas apetece-me estar aqui, quentinha. Ele, receando que estivesse frio, trouxe para dormir uma blusa fininha preta, creio que foi o meu filho que lhe deu quando ele fazia pilates ou lá o que era no ginásio. Agora aqui de tshirt preta e de óculos, coisa que só usa para ler, até me surpreendeu. Disse-lhe que só falta estar de gola alta para parecer o Sócrates. Ele olhou espantado, não percebeu. Acrescentei que aliás só falta também ter mais cabelo. E, pensando bem, acho que o Sócrates nem usa óculos. Se calhar, bem vistas as coisas, razão tem ele para não perceber.


Entretanto, o som da chuva abrandou e ouço agora também uma aragem mais forte. As árvores nuas estão lindas.

Há aqui umas que não sei o que são mas que dão umas coisas curiosas, nunca tinha visto. Ainda pensei que talvez fossem castanhas mas não, as castanhas vêm envoltas em ouricinhos. Lembrei-me da palavra bugalho e fui ver. Sim, é capaz de ser bugalho. Se calhar são carvalhos estas árvores.

Este planeta é uma gigante arca do tesouro a céu aberto. Maravilho-me com tudo isto que brota da terra, construções surpreendentes, infinitos milagres.


E o  mesmo sobre o meu país. Tão lindo. Gostava de chegar ao mapa e dividi-lo em quadrículas para, escrupulosamente, as conhecer bem uma a uma. Não deve haver bocadinho que não seja cheio de encantos. 

Bem.

Vou ver se leio um pouco mais e se depois ainda cá volto para um petit rien. Podia já tratar disso mas estou com vontade de ir ler ali umas coisas. Tenho pena que o Expresso, a nível de jornalismo político e/ou de actualidade, seja tão leviano, tão populista, por vezes tão torpemente vulgar. A primeira página deste sábado é apenas mais um exemplo disso, uma descontextualização infame do que Graça Freitas disse. Não posso pactuar com essa linha editorial e, de cada vez que constato que perderam completamente a vergonha, mais me convenço que não devo comprar o jornal. Mas a nível cultural continuo a encontrar múltiplos motivos de interesse. Há ali gente que, ano após ano, sustentadamente, mantém a qualidade na análise e na escrita, a elegância no uso da palavra, a frescura das ideias nascidas de novo. Quando os releio sinto prazer. Ler o que uma pessoa inteligente e culta escreve é estimulante. E, por eles, tenho muita pena de não poder acompanhá-los com a regularidade que mereciam.


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Do LS, Leitor que de vez em quando me oferece poemas, muitas vezes enviando-me também vídeos nos quais os poemas são lidos por si, recebi ontem dois. Cometo a ousadia de aqui transcrever um deles sem antes obter a sua autorização mas penso que ele perceberá que seria uma pena eu não os partilhar com todos os que por aqui me aturam.  E, LS, uma vez mais, agradeço a sua simpatia e generosidade.

A ânsia
a febre
a fome
no teu ventre se afundando
me consome;
um gesto de asas
preso na garganta,
os dias suspensos
de teus dedos,
os cabelos densos
de segredos...
Rios de desejo
correndo ao rés da pele
na superfície febril
dos teus braços...
A ânsia
a febre
a fome
ao ritmo dos teus passos
desvendando
lentamente
o mistério do teu nome.


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Agora que se sabe que o Luis Sepúlveda está infectado com o COVID-19 e que esteve em Portugal,  no Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim,  sugiro a leitura que o João L. deixou, em comentário, no post abaixo: COVID-19—New Insights on a Rapidly Changing Epidemic

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E a todos desejo um bom domingo

sábado, outubro 19, 2019

Não fui capaz de comer o amor-perfeito




À minha frente estava um inglês. Por detrás dele estava a melhor vista de Lisboa quando avistada de dentro de Lisboa. Lisboa e rio e o lado de lá. Um daqueles cenários tão maravilhosos que uma pessoa poderia ficar um dia inteiro a olhá-lo. Talvez a ouvir música, música muito a meu gosto. Ou alguém a tocar piano num canto, sem que eu visse onde. 

À entrada, reparei numas jarras grandes, de vidro, quadrangulares, com pedras brancas no fundo, e água e flores amarelas muito bonitas. Flores tão lindas. Pensei: não podem ser verdadeiras. Não há flores amarelas tão exóticas, tão grandes, tão exuberantes. Então, discretamente, enquanto os outros falavam da vista e diziam olha ali o castelo, olha ali a basílica, olha ali o passeio junto ao rio, eu passei a mão nas pétalas. E eram verdadeiras. Tive vontade de tirar uma flor, de ficar com ela, trazer para casa, pousar na mesa. Mas o momento não era para frescuras. Disfarcei, escondi a alegria de ter descoberto que a natureza é capaz de coisas tão raras e que a beleza é infinita e inesperada.

Como não podia deixar de ser, falámos do Brexit. Ele ainda não quer acreditar que isso vai acontecer. Contou uma coisa que se passou num lugar, uma experiência social, em que as pessoas votaram numa coisa contrária aos seus interesses e, na verdade, sem saberem em que é que estavam a votar e tudo porque alguém os manipulou, acicatando as pessoas contra uma coisa de que não gostavam e embrulhando a outra coisa nessa tal que foi usada como engodo. Eu disse que por vezes tudo parece uma anedota: as decisões estúpidas que as pessoas tomam, a gente estúpida que as pessoas elegem, o rumo estúpido que as coisas levam. E ele disse que até tem vergonha. E eu compreendi e não disse mais nada pois não quis envergonhar um inglês com um accent tão british, todo ele tão gentleman.

Do que comi nem vou aqui falar pois foi bom de mais. Mas posso dizer que, para sobremesa, a tarte não era só boa, era também linda. Tinha em cima não apenas umas bagas pequeninas, lindas como enfeite de natal, como um amor-perfeito pequenino. E o amor-perfeito era amarelo fulgurante e roxo de veludo. E era tão lindo que não consegui comer. Cometo heresias a toda a hora mas comer uma flor tão linda é heresia para lá de violenta, do lado de lá da linha vermelha que não ouso transpor. Disseram, coma, é bom. Mas nem pensar. Disse que não com a cabeça e olhei para a cidade grande, vasta, estendendo-se ao longo do rio. No pratinho ficou um risquinho sólido de chocolate, e ficou porque estava pregado ao prato, e a florzinha que se salvou por ser tão linda.

Depois das despedidas fui para o parque subterrâneo. E aqui acaba a poesia e começa a comédia. Mas como tudo tem vários lados, para mim foi comédia mas para a outra pessoa envolvida foi um sufoco, um drama.

Mas já lá vou.

Agora antes.

Horas antes, quando entrei, depois de passar a cancela e percebendo que o piso estava cheio, dirigi-me para a descida para o piso inferior. A faixa livre tinha sinal de proibido e na outra faixa vinha uma lady a subir dentro do seu formoso bólide. Pensei: tinha que ser, enganei-me, enfiei-me no lugar onde só se sobe. Então comecei a fazer marcha atrás mas, como todos os parque novos nesta cidade, é tudo feito para carrinhos pequenos ou para ilusionistas capazes de encolher os carros. Então, pensei: estou frita. E como estava apenas a pensar não foi frita que pensei. Mas pensei: tenho que conseguir. E lá comecei a tentar fazer uma manobra impossível até porque já tinha outro carro atrás. Nisto ouvi alguém a bater no vidro. Era um senhor com ar aflito. Abri a janela. E ele: onde é que vai? não consegue fazer marcha atrás. E eu: mas como é que vou para o -2? Aqui é proibido. E ele: Mas a senhora vai bem, aquela que vem a subir é que vem na faixa errada, enfiou-se em sentido proibido. Então foi quase a correr ter com ela. E ela muito admirada, como se estivesse tudo maluco, lá fez uma manobra também arriscada, saltando para a faixa do lado e eu lá consegui descer pela faixa já desobstruída.

Pois bem. Agora, então, à tarde.

Quando vinha a conduzir no parque para sair, apareceu à minha frente, vindo do -3, um mercedes antigo. Só que, em vez de virar logo, avançou até a um ponto em que ficou sem espaço para curvar, entalado entre dois pilares. Fazia marcha atrás e roçava atrás, chegava à frente e batia à frente. Não tinha espaço e notoriamente estava enervado. Saí do carro para perceber se havia margem. Não. Só batendo ainda mais. Ao princípio tinha pensado: Que aflição. Podia ser eu. Deve ser uma mulher. Mas não, era um homem. Ao seu lado, um rapaz. O rapaz também saíu. O homem pediu para ele tentar. O rapaz não queria. Disse: o carro é teu, não quero dar ainda mais cabo dele. Atrás do meu carro, parou outro carro e saíu de lá uma mulher. Perguntou-me: Mas o que é que se passa? Eu disse: Encravou o carro. Agora está ali entalado. Ela deu uma gargalhada: É uma mulher, certo? E eu: Pois, também pensei. Mas não, é um homem. E ela riu ainda mais: Mas não sabe conduzir, não? Como é que ele fez aquela merda? E foi, resoluta, ver se dava algum palpite. Mas voltou para trás e disse: Não tem solução, o carro é grande demais, só se lhe perder o amor. Entretanto, o rapaz passou para o lado do condutor. O condutor estava num estado de nervos de dar dó. Ajudou o rapaz. Mandou-o recuar contra um pilar. O som da lata a bater. O rapaz ganhou uns centímetros para curvar. Depois mandou-o curvar na direcção do outro e ouviu-se o carro a raspar violentamente no pilar. Ao fim de um bocado, lá conseguiu. Trocaram de lugares e seguiram e eu segui atrás deles e a outra mulher atrás de mim. Com isto atrasei-me. Mas não me importei. Soube-me bem estar ali sem fazer nada, aqueles minutos num parque subterrâneo, apenas à espera. Ao princípio pensei que provavelmente só com um guindaste para o içar e que isso poderia durar horas. E não me importei.


Também posso recuar outra vez a umas horas antes, a quando estacionei e, como era cedo, resolvi ir andar a pé. De dia, num dia útil, não costumo andar por ali a pé. E fiquei muito admirada. Street style. Fashion da boa. Tanta gente tão moderna, tão bem vestida, tão inusual. Parecia que estava na proximidade da Vogue, da Vanity Fair, nos boulevards elegantes de Paris. Há tantos mundos dentro do nosso mundo e o que conhecemos é nada. Quando cheguei ao meu destino, cruzei-me com uma cena de filme e era tudo filme, o cenário, grandes espelhos, grandes candeeeiros, um luxo, até as pessoas eram de filme. Pensei que a pessoa que não pertencia ali era aquela mulher que eu via no espelho e que me levava a mim escondida dentro dela, uma que gosta de andar pelo meio do mato, a pisar caruma, a andar por entre os pinheiros perfumados a apanhar pinhas para a lareira, a fotografar as folhas douradas com que o outono embeleza os meus dias in heaven.


Ou seja: não consigo resumir o meu dia e, de boa acção, acho que a única digna de registo foi não ter canibalizado o inocente amor-perfeito.

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Obtive a fotografia de Lisboa em 20 locais de interesse numa visita a Lisboa

As duas últimas foram feitas in heaven.

Espero que tenham vindo pela mão de Monteverdi. Pur ti miro, Pur ti godo

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A todos desejo um sábado à maneira

quinta-feira, março 14, 2019

Shen Yun





Já o disse muitas vezes
mas andar a escrever coisas há alguns anos tem que dar nisso: uma pessoa, mesmo sem querer, torna-se repetitiva: 
fui boa aluna mas não boa estudante. Nunca fiz uma directa, nunca estudei muito, nunca fui muito de apontamentos, de fazer cábulas, de me empenhar para garantir que obtinha o máximo. Nunca. Estudava apenas o qb e, se era boa aluna, era apenas porque tinha facilidade, não porque me esforçasse. Por isso, nunca queria receber elogios ou parabéns, achava que se tinha boas notas era mero acidente, não propriamente mérito resultante de hard work.

Ainda hoje sou assim: vou para as reunião sem cadernos, notas, tablets. Só quanto vejo toda a gente aparelhada é que me ocorre que estou de mãos a abanar e que tomara que não me veja numa situação em que precise de algum suporte. Felizmente nunca preciso mas, uma vez mais, não me parece que seja mérito, parece-me que é mais por levar as coisas na levezinha. 


E não estou a dizer isto para me gabar. Digo-o apenas porque reconheço em mim um grande gosto por conhecer muita coisa e isso resulta numa incapacidade em dedicar-me esforçadamente a alguma coisa em especial. 

Dito assim pode parecer que estou a fazer género até porque, quem venha a minha casa e veja várias carpetes de arraiolos ou quem conheça este blog e verifique que já publiquei mais de cinco mil posts, pode pensar que não é bem assim. Mas é. O que faço, faço por prazer, sem me esforçar. Tudo o que me violente ou obrigue a sacrifícios é banido. 

E, no entanto, como admiro as pessoas que se aplicam para se superarem... Por vezes cruzo-me com pessoas que, equipadas a preceito, fazem corridas e percebe-se que já fizeram quilómetros. Enquanto eu caminho, na boa, sem medir passos, tempos ou pulsações, incapaz de me traçar objectivos exigentes, é com admiração que vejo como há pessoas que, ali vão, monitorizadas, passada larga, velocidade considerável, transpiração.


Ou esses ou os que, quando fazem anos, fazem bolos elaboradíssimos para levar para o lanche dos colegas. Admiro mesmo essas pessoas. Acontece-me não conseguir conter-me e, para além de elogiar por estar tão saboroso, dizer: 'Deve ter dado um trabalhão, não...?' e a aniversariante, toda contente, desatar a contar-me, com pormenor, a receita. E conta como pôs de molho as amêndoas, como lhes tirou a pele, como torrou, como as picou, como fez bolo e o cortou às fatias, e fez um creme e uma calda e mais não sei o quê. E eu ouço, espantada, por ver a generosidade da pessoa que deu horas da sua vida para fazer um bolo com que os colegas galifões vão acabar em três tempos. Eu, para começar, nem me ocorre levar bolos quando faço anos. De preferência, nesse dia, ponho-me a milhas. E, para os que vêm cá a casa festejar, o bolo é de compra. Fazer a comida propriamente dita faço porque gosto de fazer. Bolos, que têm que ser by the book e dão muito trabalho, está bem, está.


Ou os pianistas. Horas e horas de trabalho. Acho extraordinária a dedicação, o gosto pela perfeição. Inúmeras vezes a tentarem que o acorde saia perfeito, a tentar que a música flua como se um rio navegando. Os dedos já autónomos a voarem sobre o teclado. Horas de prática diária.
E, escrevendo à medida que as ideias me chegam aos dedos, estou a misturar alhos com bugalhos -- arte e trabalho, esforço com cortesia -- mas não faz mal. Não pretendo que a taxonomia se aplique aqui que nem luva. Prefiro não distinguir géneros. Esforço é esforço, abnegação é abnegação. E ainda bem que, em todas as áreas, há gente trabalhadora, esforçada, gente que persegue a perfeição. Se ontem falei dos caçadores de mel, hoje poderia estar aqui a falar dos caçadores da perfeição. Não especialmente de bolos artísticos, não dos corredores de maratona. Nem de borboletas, muito menos de lolitas: apenas da perfeição. 

E isto para dizer que olho os fantásticos bailarinos de Shen Yun e fico espantada. Quantas horas de treinos,  quantas horas longe dos amigos, quantas quedas, quantas dores?
A mind of steel, a body that’s pushed to its limits, a heart of humility, and much more. Learn about the rigorous physical, mental, and spiritual requirements for studying at the highest levels of classical Chinese dance and being a Shen Yun dancer. This video is written and narrated by Shen Yun performers and illustrated through real practice footage.

What Does It Take To Be a Shen Yun Dancer?




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Bolas. Se soubessem o que me aconteceu... Credo. Bolas.

Conto-vos. Isto começou por me dizer que estava com falta de espaço em disco. Depois propôs-me apagar alguns ficheiros. Respondi que sim e ele começou a arrumar-me a casa e a perguntar se podia apagar isto ou aquilo. Desinteressadamente fui dizendo que sim. Depois apareceu a dizer que tinha actualizações. Agendei para uma hora depois. E pus-me a escrever. Quando estava mesmo a acabar e já não me lembrava de tal coisa, desligou-se-me isto e desatou a instalar cenas. Só que a demorar, a demorar, dizendo-me que não desligasse. Adormeci. Quando acordei, estava isto ainda a configurar. Pensei: isto está empancado, é para esquecer, na volta deixei que apagasse alguma coisa vital e agora não sai daqui. E pensei: o fim de semana todo sem poder fazer nada no blog. Ou seja, acordei de tal forma aluada que pensei que fosse sábado. Olhei para a televisão, sem perceber bem. Só depois percebi que qual sábado... era bom, era. Tentei desligar o computador à força. Quando veio a ele, continuava na mesma. Desisti. Pensei: vou dormir. E nisto, quando estava a prepara-me para me levantar, milagrosamente restabeleceu-se e, aos poucos, começou a aparecer no ponto em que estava antes desta faena. E agora, aqui estou, a acabar o post. Tinha estes bailarinos fantásticos para vos mostrar mas, a seguir, tinha outra coisa. Só que depois disto é para esquecer. As máquinas têm vontade própria e isso, volta e meia, é uma maçada. Podia até, agora, depois disto, pôr-me a dissertar sobre machine learning ou artificial intelligence mas isso era se fosse a outras horas. Ou se este blog não fosse coisa de quem é mais bolos.


Os bolos são de Elena Gnut e deve ser uma pena comê-los. Por isso, sugiro que os olhemos apenas. E podemos acompanhar com L'incoronazione di Poppea "Pur ti miro, Pur ti godo" de Monteverdi com Jaroussky e Danielle De Niese

domingo, dezembro 30, 2018

Madrugar à conversa convosco






Não sei o que é isto hoje que a casa parece que não quer aquecer. Estou com um aquecedor a óleo aqui à minha beira e com a salamandra a queimar lenha como se não houvesse amanhã -- e a sala continua fria.

Ainda não há muito tempo tínhamos que comprar lenha. Mais recentemente comprávamos ao vizinho da ponta da estrada mas, antes de sabermos que ele tinha lenha a mais, íamos comprar a um lugar de que já uma vez aqui falei, um lugar muito estranho. Por vezes, algumas memórias minhas assomam como se quisessem que eu as revivesse mas algumas parecem-me improváveis, como se eu estivesse a ficcionar. Aquele homem silencioso e rude, aqueles cães enormes que ladravam e rosnavam ameaçadoramente sem que o homem tentasse acalmá-los, aqueles barracões cheios de lenha coberta por grandes oleados onde facilmente se poderiam esconder meliantes ou onde aquelas feras poderiam devorar presas indefesas sem que delas restasse algum vestígio é daquelas memórias que me parece saída de um filme de terror. Mas talvez aquele lugar, que existe na realidade, seja apenas um lugar muito pobre e o homem alguém a quem a vida não sorriu.


Mas isso era de quando as nossas árvores ainda eram pequenas. De repente, o lugar alterou-se. As árvores cresceram muito, a terra que, antes era castanha e seca, agora é fofa, escura, fértil e cobre-se de musgo, folhas secas, e dela brotam flores, arbustos, As pedras que antes tinham a superfície seca à vista agora também se cobrem de musgo, e nascem fetos, há heras a cobrir alguns rochedos. Toda a paisagem agora é outra. Estou a escrever e a pensar: do meu amor nasceu um bosque.


Temos, pois, lenha que não acaba. Levantei-me agora mesmo para ir pôr mais um tronco na salamandra. Cheira muito bem esta lenha. Quando chegámos, a casa estava gelada mas cheirava muito bem, a boa lenha queimada. Azinheira, cedro, pinheiro. Não sei se aroeira. Há madeiras que não queimam bem. Por exemplo, o meu marido não quer aproveitar a madeira da figueira, tenho ideia que diz que não arde. Mas deve arder, se calhar leva é mais tempo a pegar-lhe o fogo. Não sei.


Fico muito contente, orgulhosa mesmo, como se as árvores terem deitado tanto corpo fosse um pouco obra minha. Mas não quero parecer pretensiosa. A natureza não se deixará influenciar pelo amor de uma mulher. E, no entanto, as árvores sentem, comunicam entre si e são, acredito nisso, seres sábios, fortes e sensíveis, seres superiores. Quem sabe não se sentem mesmo felizes por se sentirem tão amadas e, como as pessoas que são felizes e criativas quando se sentem estimadas, também elas, as minhas queridas árvores, desataram a crescer e agora chamam os pássaros e dão abrigo a musgos, arbustos e flores? Quem sabe?


Faço perguntas cuja resposta desconheço. Sou bicho inferior, só sei fazer perguntas, não descubro resposta para quase nenhuma.

Estive a fazer o tapete enquanto via televisão mas está a dar um filme que não é adequado ao meu estado de espírito e as alternativas não são muito melhores. Por isso, voltei aqui para escrever e para plantar mais algumas fotografias que fiz durante a tarde. Fotografo tudo porque tudo me maravilha. Enquanto não levar um susto de algum javali, continuarei neste meu doce flanar.


Hoje de manhã fui cortar o cabelo à cabeleireira. Queria coisa mais profunda e estruturada do que as tesouradas que lhe dou em casa. Estou com uma grande vontade de fazer uma coisa nova, apresentei uma proposta, coisa arrojada, ousada mesmo, e tenho que estar preparada para a defender. No meu íntimo sei que joguei uma cartada arriscada, dir-se-ia de improvável sucesso. E, no entanto, sei que quero que aconteça e sei que, quando quero assim uma coisa, não descanso enquanto não a tenho nas minhas mãos. Perguntei ao meu marido: 'E se não consigo?'. Ele disse: 'Se não consegues sabes o que tens a fazer'. Sei.

Mas porque sinto que, de uma maneira ou de outra, alguma coisa vai mudar, decidi que tinha que mudar de corte de cabelo para melhor sentir que aí vem uma vida nova.


E, na cabeleireira, foi aquela diversão de sempre. Disse ao meu marido: 'Se lá pusessem uma câmara a gravar e difundissem via televisão, haveria de ser programa líder de audiências'. O que aquelas mulheres dizem, o que riem, a forma como dizem que dão a volta aos maridos, a forma truculenta como falam umas das outras ou como relatam as suas pequenas rebeldias do dia a dia, fascina-me. Tudo demasiado irreal, tudo extremamente divertido. Eu estava a ler as revistas que não perco por nada quando lá estou mas com um olho nas celebridades e outro naquelas fantásticas conversas. O mundo real é surreal. Tenho pena quando vejo que estou quase despachada.


No carro, à vinda para cá, adormeci completamente. Sabem-me mesmo bem estes sonos que me desligam do mundo. Só acordei quando já estavamos a caminho do supermercado da cidade mais perto aqui da aldeia. Há lá peças de carne que não encontro na 'minha' cidade e já estou a aprovisonar mantimentos para o almoço de Ano Novo. O meu marido, como é um apressado e gosta de planear tudo, até já sugeriu que eu cozinhasse já algumas coisas ou que, pelo menos, adiantasse já as cozeduras. Claro que não vou fazer isso, ia lá servir comida a saber a coisa já feita? Vou congelar e faço no dia, excepto uns petiscos que são de demorada confecção que, esses, farei de véspera.

E estou a sentir que preciso de férias. Aliás, estamos os dois. Mas nem eu nem ele podemos agora. O que me vale é que quando me apanho com um ou dois dias de descanso, aproveito muito bem, estico o tempo, sorvo cada instante com vagar, contemplo com minúcia a beleza de cada pequena coisa.


E agora vou dormir. Já viram bem isto? Estou para aqui a escrever de gosto, nem dou pelo tempo a passar. O lume espevitou, a sala finalmente parece mais quentinha. Estou com uma manta quentinha nas pernas e sinto-me confortável. Em contrapartida o Leonardo DiCaprio, coitado, continua ali naquela dolorosa labuta, a rastejar no meio do gelo e de sangue.  E, quem sabe, a esta hora, ali fora,  sob o belo céu estrelado, andam javalis a revolver a terra à procura de bolotas.

... e eu, se não me detenho, continuo nisto. Daqui a nada são três da manhã, não tarda começa a madrugar e eu ainda para aqui nesta conversa vadia convosco. Santa paciência para mim mesma.

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