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quarta-feira, dezembro 18, 2019

Coisas simples, sem fio condutor




Sou urbana. Sempre vivi na cidade. 

As minhas avós viviam no mesmo bairro, em casas com quintais, e todos os vizinhos viviam em casas assim. Se eu brincava com outros miúdos, brincava nos quintais, praticamente como se estivesse no campo. Sempre me senti bicho de rua, galinha do campo, cabrita dos montes. Mesmo se o tempo não estava para arejamentos, eu gostava da rua. Ou da quase rua. Já contei muitas vezes que o avô do meu melhor amigo construíu uma pequena cabana no fundo do quintal e, por isso, passei muitas horas desses meu inocentes anos a conversar nessa cabana. Os meus pais também vivem num bairro de moradias e, portanto, também aí, eu brincava nos quintais, quer no da nossa casa quer no das amigas vizinhas. Ou com uma das minhas primas, mais nova que eu e que gostava de ser a minha médica e a médica das minhas bonecas. Claro que se tornou médica. Mesmo se chovia, havia (e há) alpendres, 'casinhas' em que nos abrigávamos. 

Entre as casas das minhas avós e as escolas, a infantil e a primária, havia uma encosta com ar campestre. Havia papoilas, estevas, mas também sardinheiras, malvas e couves que alguém lá plantara. Aí havia um carreiro pelo qual eu adorava descer a correr. Usava uma mala 'às costas' onde levava os livros e cadernos e cabelo comprido que usava solto ou em tranças e recordo com uma saudade feliz a sensação de correr desarvoradamente, como se fosse incapaz de parar, tanta a velocidade que adquiria, o cabelo a voar, a mala nas costas aos saltos, quase a despenhar-me. Muitas vezes caía mesmo. Ainda hoje tenho nos joelhos as marcas das muitas quedas que ali dei. Mas não me deixava intimidar. Correr, encosta abaixo, destravada, era dos prazeres a que, por essas alturas, não conseguia furtar-me. No regresso, já não subia a encosta pelo carreiro, vinha com os meus amigos pela estradinha. Mas a estradinha era ladeada por árvores e, para mim, era como se viesse pelo meio de uma floresta.


Talvez por ter guardado essas memórias tão boas, sempre tive vontade de ter uma casa no campo. Mas a vida de ambos era, e é, outra. Começámos por viver num estúdio no alto de uma altíssima torre no meio da cidade. Era um quarto com uma varanda e uma sala grande também com uma varanda. E uma casa de banho, claro. Era tão alta que as pessoas na rua, vistas lá de cima, pareciam formigas. Tinha uma vista espectacular. Depois mudámos para uma casa maior mas de onde não víamos o mundo a toda a volta. Sentia muita falta da vista. Depois os livros deixaram de caber e mudámos para esta que é bem maior, mais alta e com uma vista também belíssima. Pelo meio, depois de muito procurarmos, descobrimos aquela casa diferente no meio de um pedaço de terra coberta por pedras e mato rasteiro. E o prazer do campo, pedra a pedra, flor a flor, árvore a árvore, foi sendo cultivado até que hoje é o petit bois com que durante anos sonhei.

Mas, tal como o meu pai alvitrou ao ver aquele terreno pedregoso, dali não conseguimos tirar batatas. Há um ano, o meu filho apareceu lá com rede, estacas, espinafres, alfaces, cenouras, tomates, beterrabas, salsa, morangos. Tudo pequenino para plantar. Fez uma horta. Tudo nasceu. Comemos várias coisas de lá.

Mas a natureza devorou a horta. Não estamos lá durante a semana para tentar suster a sua força desabalada e, ao fim de semana, o tempo é curto. Tudo cresce sem freio, os mais fortes devoram os mais vulneráveis.


A minha vida inteira tem sido passada em ambiente empresarial, fechada em escritórios, em torres de marfim, assépticas, climatizadas, na cidade mais cidade, em filas de trânsito -- ou seja, longe da limpidez e dos perfumes e dos sons bons do campo. Saio de casa cedo, chego tarde, não me sobra tempo para nada, nem para ir procurar um jardim.
Hoje, à hora de almoço, num semáforo, porque não acelerei para passar antes de virar encarnado, um anormal ultrapassou-me a grande velocidade, já no encarnado, quase atropelando uma senhora na passadeira. Teve que parar, meio atravessado. A senhora pôs-se a protestar com ele e, então, o estúpido saíu do carro e veio na minha direcção a gesticular: 'Tás a olhar? Não passaste porquê?! Tavas à espera de què?! Tás a olhar? Tás a pedir é uma lambada nas trombas! Tás a olhar? Tás a pedir, tás, tás'. Eu estava a ouvir a Antena 2, tinha a janela aberta. Continuei absolutamente tranquila. Estava a olhar para ele pois, com aquele número ali à minha frente, seria impossível não olhar. Mas era como se não tivesse a ver comigo. Se me medissem as pulsações, de certeza que não se detectava alteração. Apenas quando ele avançou, ameaçador, é que pensei: 'Será que devo fechar a janela?'. Mas não fechei. Entretanto, ficou verde, os carros começaram a apitar e o estúpido meteu-se no carro e disparou, nos cascos. E eu prossegui, para mais uma reunião. Parece que já estou imune a estas coisas.

E, no entanto, quando tenho uns minutos para mim, o que gosto de me pôr a ver vídeos da vida no campo ou da vida tranquila...

Penso que gostava de me pôr a experimentar fazer compotas diferentes, frutos com especiarias, com licores. Depois penso que coisas doces já não estão com nada e que o melhor é que nunca me dê para isso. Mas gostava de tentar. Ou bombons com coisas boas lá dentro. Ou de, finalmente, aprender a costurar a sério. Também gostava de ter tempo para organizar papéis que estão um bocado ao monte, organizar as fotografias mais recentes. Ou escrever. Gostava tanto de ter tempo para escrever. 


Finalmente, consegui resolver a questão das fotografias e, apesar do dia tão recheado e das reuniões e de ter que andar sempre a correr, vim para casa descansada. Amanhã não poderei ir buscá-las pois a saga dos almoços natalícios continua. Mas o peso de chegar ao Natal e não ter fotografias para oferecer já não tenho. 

Para festejar esse alívo, mal acabei de jantar e me acomodei, o meu corpo desligou. Adormeci. Pouca dura mas boa. A seguir, pus-me a ver os vídeos que mais abaixo vos mostro.


Também andei à procura de informação sobre a permacultura. Pressinto que um dia o vou tentar.

Mas se é tema que me desperta mesmo interesse a verdade é que, estando eu à espera de informação objectiva, factual, pão pão queijo queijo, me impacienta um bocado ver aquelas pessoas muito alternativas, o cabelo como se não fosse lavado há anos, em rastas, e todos muito pendões, dentro de roupa demasiado larga e mal jeitosa, todos muito zen, muito fora, muita filosofia transcendental. Prefiro a ruralidade básica, os instintos primários, a pouca conversa. Quando a coisa vira religião, espírito de seita, quando a coisa vira moda, culto, matéria para formação com a malta sentada no chão, tudo muito peace and love, eu desligo, salto fora. Não é para mim.


Nunca me ocorreu sentir-me desenquadrada. Pelo contrário. Por exemplo, sinto um forte sentimento de pertença ao pedaço de terra a que aqui, no blog, chamo heaven. É como se tivesse nascido de lá e, muito naturalmente, quando um dia o meu corpo se diluir, me for misturar com aquelas árvores e musgos, e com o canto dos pássaros.  Sinto-me também muito bem nesta casa ampla onde agora estou, cheia de livros, e de cujas janelas vejo o rio. Tal como, quando estou a trabalhar, me sinto integrada: sou uma daquelas e daqueles que, quando vistos de fora, me parecem gente com que pouco tenho a ver. No entanto, quando lá estou, eu sou uma daquelas, sem tirar nem pôr. Quando saio de lá, sou outra, sou esta.

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E tenho estado a escrever e, agora que parei para escolher as fotografias (feitas in heaven, no sábado -- e, sim, o medronheiro está cheiinho de doces medronhos e, sim, ainda há cogumelos all over), percebo que isto está sem rei nem roque, uma coisa à toa, um texto sem ruas, sem direcções, tudo a eito. Na volta, não cheguei bem a acordar. Mas a esta hora (duas da manhã) já não dá para tentar compor. Espero que não fiquem almareados com tanta flutuação, assunto para aqui, frase para acolá.

Passo, portanto, aos vídeos que estive a ver de gosto. Espero que também gostem.



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Se o texto tiver um número anormal de gralhas, por favor relevem, está bem?
Mas, se encontrarem alguma cabeluda, por favor avisem-me, sim?

E a todos desejo uma bela quarta-feira.

terça-feira, novembro 19, 2019

A autofobia ou o medo da solidão: o novo mal do século?




Cedo começámos a fazer festas que incluiam sessões dançantes. Formou-se um grupo que durante anos se manteve unido e, por uns motivos ou por outros, o que interessava era que houvesse pretexto para dançar. Vários rapazes vieram a dar engenheiros e, talvez por vocação, desde miúdos, havia iluminação especial e instalação sonora a acompanhar a selecção musical. Coisa a preceito. Alguns de nós morávamos em moradias que tinham garagens, outros em grandes andares nos quais parte da casa era transformada em discoteca.

Havia um, franzino, apagado, que era muito atilado, filho de figura institucional da cidade, homem distante e austero, e de uma mãe também muito senhora, pais mais velhos do que a maioria dos pais, que viviam numa moradia antiga, solarenga. Contudo, na mais pura contradição dos termos, não apenas arranjou uma namorada mais alta, mais forte e muito mais desempoeirada que ele como organizava as mais desopilantes festas. Em casa da namorada dele, minha grande e divertida amiga, filha muito mais nova de três irmãos, as festas também era à solta. Se a mãe dele ainda aparecia para nos receber e cuidava de arranjar belos lanchinhos para os amigos do filho, aos pais dela nunca conheci. Conhecia os irmãos mas os pais não estavam nem aí. Foi através dela que vieram os primeiros ensinamentos sexuais, os quais ela colhia junto de irmãos e primos.

Outra era a minha melhor amiga. Eram também três irmãos e vários primos. O pai era um bon vivant e a mãe, triste pelo comportamento do marido e cansada pela agitação da miudeza, também se refugiava na sua marquise ensolarada ou numa estufa que havia no jardim e deixava-nos na maior largueza.

Portanto, quase todos os fins de semana havia festa. A partir do que hoje é o décimo ano passámos também a ter os convívios no liceu, supostamente para angariarmos dinheiro para a excursão de finalistas. 


Entre nós, havia vários casais. Eu estava apaixonada por um enfant terrible e ele por mim mas, já o disse várias vezes, éramos tão temperamentais que grande parte do tempo estávamos arreliados, eu a fazer-lhe ciúmes como vingança por achar que ele não me cortejava o suficiente, ele zangado comigo por eu supostamente andar a dar atenção ou a achar graça a outros. Mas, seja como for, éramos empolgados namorados, e de tal forma que nos chamavam o Romeu e a Julieta. A seguir chegou outro que cantava e fazia poemas para mim, deixando o legítimo desvairado. E, entre um e outro, eu não tinha mãos a medir -- emocionalmente falando, claro. Mas isto para dizer que, durante as festas, eu tinha sempre par para dançar. Claro que dançávamos em grupo e sozinhos mas o grande apelo era dançarmos a par, slowzinhos bons, abraçadinhos, a sentirmos como o nosso corpo tinha vontade própria. E mal a música começava, logo um ou outro me vinha buscar para dançar.

Eram outros tempos. Hoje já nada disto faz sentido. Mas, na altura, apesar da nossa liberdade e de estarmos ali por nossa conta, havia o costume de serem os rapazes a irem 'buscar' as raparigas. E havia geralmente duas ou três raparigas que ficavam para o fim. A mim custava-me muito isso. Muitas vezes, estávamos todos a dançar e elas ali sentadas ou encostadas e uns dois ou três rapazes, feitos mongas, de roda da música ou das luzes ou a arranjarem desculpa para não as irem buscar. Doía-me ver como elas ficavam a disfarçar, tentando fingir que não se importavam. Muitas vezes eu pegava naqueles panhonhas e ia eu levá-los até elas. Tirava-me a alegria olhar para elas e pensar que deveriam sentir-se peças sobrantes. Naqueles dias de zanga entre mim e o meu grande e tumultuoso amor, acontecia ele estar amuado e não me vir buscar; e os outros, sem saberem se o campo estava livre, hesitavam e eu, por breves momentos, sentia o que seria a sensação de ficar a sobrar. Nunca sobrava pois, na perspectiva de algum outro se antecipar, ele chegava-se à frente e, se esperava demais, era eu que tomava a dianteira e desafiava algum outro.


No entanto, apesar de ter sido grande namoradeira e de ter sempre um belo grupo de amigos, nunca prescindi do meu tempo. Mesmo nesses tempos de grande euforia adolescente, à noite, depois de estar com os meus pais na sala a vermos televisão, eu ia para o meu quarto e lia até tarde. Precisava de estar sozinha. Sempre precisei de silêncio, sossego, tempo meu, alguma solidão. Mas era solidão voluntária e isso faz toda a diferença.

Uma outra recordação: não gosto de tomar refeições fora sozinha. Lembro-me de quando andava na faculdade. O primeiro ano foi uma seca. Gente marrona, pouco dada a festas, a distrações. Uma tremenda desilusão, aqueles primeiros meses na faculdade. Andando o meu namorado noutra faculdade, quando não conseguia almoçar  comigo -- e não tendo eu ainda arranjado amigos novos -- quando ia almoçar na cantina, acontecia-me estar sozinha. Detestava. Felizmente havia sempre alguém que se juntava e eu acabava sempre por ter companhia. Aliás, foi assim que arranjei um grande amigo, alguém que vinha de um outro mundo, que me trazia vivências para mim totalmente desconhecidas. Passava horas à conversa com ele. Horas. Ouvia-o fascinada. Vivia numa residência, tinha muito pouco dinheiro, pouca roupa e nitidamente roupa pobre, os pais tinham uma pequena mercearia no interior do país, tinha uma irmãzinha pequena de quem gostava imenso e a quem comprava presentinhos para levar quando ia a casa de visita. Emocionava-se quando falava da menina. Tinha uma fotografia dela na carteira, uma menina loura como ele e, como ele, com aquele ar saudável da província. E depois havia aqueles estudantes africanos, negros retintos, com corpos extraordinários, e que tinham uma simpatia desconcertante por mim. E eu achava-lhes graça, achava graça ao que eles gostavam do meu cabelo, achava graça à sua inocência ao virem oferecer-me iogurtes como se fossem presentes valiosos. Por isso, por um ou outro motivo, eu acabava sempre rodeada de gente divertida ou curiosa, a ouvir histórias que me pareciam exóticas.


Mas via pessoas solitárias, sozinhas, a olharem para o vazio. Se por vezes tentava aproximar-me, notava que eram pessoas que tinham alguma dificuldade em interagir. Não me parecia que gostassem simplesmente de estar sozinhas mas, pelo menos parecia-me, não sabiam bem como interagir, faltava-lhes naturalidade. Ficava com a sensação que sentiam alguma timidez, algum embaraço por não terem companhia, mas conviver não era natural para elas.

E assim, por um ou outro motivo, sempre havia pessoas desirmanadas, sozinhas, ar vagamente perdido.

Hoje tudo isto seria impossível: ou porque já não é assim que funciona ou porque todos os instantes são preenchidos com o telemóvel ou com o tablet ou computador. Em qualquer circunstância em que alguém está sozinho, salvo raras excepções, está a ver ou a interagir com um destes dispositivos. Será o horror ao vazio, à solidão, será a necessidade absoluta e permanente de parecer acompanhado, a interagir com 'amigos'. Estar simplesmente a olhar para ontem é coisa que já não existe. 


Mesmo em reuniões, tenho colegas que estão com o computador ligado e sempre a verem qualquer coisa, a escreverem. Dir-se-ia que têm assuntos urgentes a tratar, dir-se-ia que gostam de passar a imagem de alguém a quem os outros ou as circunstâncias não dão tréguas. Mas, sempre que vejo o que fazem, constato que estão simplesmente a manter-se ocupados com tretas que poderiam esperar: ou mails banais ou notícias.

Mesmo em sociedade ou em família o que não faltam são pessoas que, a meio do convívio, estão a ver o que outros postam no facebook ou no instagram, colocando comentários ou smiles. Parece que há a obsessão pela conexão, pelo preenchimento total de cada instante. Na paragem de autocarro, na mesa do restaurante, na sala de espera, na fila de supermercado, mesmo enquanto andam, são raras as pessoas que não estão a ver o telemóvel. No outro dia, alguém estava com ar muito compenetrado, muito atarefado. Quando vi que estava a fazer um jogo de cartas, fiquei estupefacta. Dá ideia que ninguém quer ser apanhado em flagrante delito de solidão


E se hoje estou a recordar cenas minhas ou a referir estes temas é porque li um artigo que achei interessante e cuja leitura recomendo a quem consiga entender-se com a língua francesa. 

(...) ce serait «pour ne pas entendre. Ne pas entendre le vertige qui nous saisit lorsque l’on pense ! Ne pas être seul, c’est ne pas avoir à négocier avec nos peurs, notre culpabilité et notre responsabilité. La solitude impose une posture de lucidité, la lumière crue. Ne dit-on pas "Ne reste pas seul" dans une période délicate ? Être seul est une épreuve métaphysique. Or, nous vivons une période si angoissante que beaucoup ne peuvent plus supporter cette épreuve. Et puis, la solitude n’est pas très instagrammable ! Sauf si on ajoute un plaid, un livre, un chat et un thé chaud !» (...)

São os tempos que vivemos. Vivermos sem internet disponível em todo o lado já nos pareceria coisa  insuportável, própria de desertos e inóspitas lonjuras, ou, então, hábito dos ctónicos, esses seres misteriosos dos quais descendo e que só hoje fiquei a saber que têm este intrigante nome.

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Cá para mim as fotografias que aqui hoje coloquei não têm muito que ver com isto mas também não sei porque haveriam de ter. São da autoria de Terry O'Neill e grande parte delas obtive-as no The Guardian. E vêm ao som do violoncelo de Yo-Yo Ma e da voz de Alison Krauss que tentam aqui introduzir o tema do Natal que, parecendo que não, já por aí anda nas iluminações, nas montras e por todos esses novos lugares de culto. 

Era para ter optado pela Janis Joplin que, para sempre, associarei a essas dias iniciáticos da minha adolescência mas depois reconsiderei: afinal o tema deste post não é sobre essas eternas tardes dançantes mas, sim, sobre um dos grandes males dos tempos presentes, o pavor da solidão -- e, vá lá saber porquê, apeteceu-me condimentar as minhas palavras com um cheirinho a natal.

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E a si, a si em especial, desejo uma feliz terça-feira. 

sexta-feira, dezembro 07, 2018

Nesta noite de boas surpresas




Dias assim, em que pernoito fora, costumo sentir algum desagrado. Por muito habituada que esteja, a verdade é que sinto sempre falta do conchego caseiro, do sossego da casa. Nada como a vidinha boa da gente, os mesmos passos, os nossos cantos, as nossas conversas e silêncios. Mas hoje foi bom, muito animado, muita alegria, ambiente leve e repleto de afecto, aplausos, gestos de carinho.

O tempo passa, Leitor, o tempo passa e a gente vai ficando, vendo o tempo a passar, umas vezes depressa demais, outras vezes devagar, devagar. 


Não há muito, um homem possante arbitrava uns certos jogos de futebol. Alguém dizia que ele, quando tinha que se impor, até parece que crescia. E era mesmo. Um carisma ímpar. Toda a gente o respeitava. Hoje atravessou a sala e veio falar-me. E perguntou-me pela minha filha, disse que era uma miúda espectacular, falou dela e sorria enquanto falava. E eu, vendo como ele a recordava e como falava dela, fiquei feliz, feliz.

Cabelo todo branco, longas barbas brancas. Possante ainda. Fizemos as contas. Passaram talvez uns quinze anos. E eu pensava que tinha sido há pouco tempo. E foi. Mas quinze anos não é nada. 


E depois, à mesa, estava eu a conversar com a pessoa do lado, diz-me ele que lhe parecia que o meu telemóvel estava a tocar. E estava. Um número que não conhecia. Àquela hora, um número desconhecido. E, de repente, uma voz conhecida mas longínqua. Perguntava se um certo blog onde se falava da filha dela era meu. A filha tinha lido e tinha perguntado quem teria escrito aquilo e ela tinha dito que só podia ser eu. E contou-me que tinha gostado de ler -- e eu fiquei tão contente, tão contente por ela ter ficado contente porque se há alegria grande para uma mãe é sentir o reconhecimento dos outros sobre os filhos e eu gostei de lhe ter dado essa alegria e fiquei contente por falar com ela porque já não falava há tanto tempo e fiquei contente porque a filha dela é, de facto, muito talentosa e, do que vejo nos vídeos, vejo-a luminosa, especial e tão há pouco tempo era ainda uma menina pequenina, alegre, expressiva. E dissemos que haveríamos de nos reencontrar e eu quero que isso aconteça. E, portanto, foi o terceiro presente da noite. 


Este ano tem sido atípico, com momentos muito complexos, alguns no limiar da rotura, um tecto baixo e sombrio sobre mim, ameaçador, nuvens escuras sempre a cercar-me. E, no entanto, de repente, de forma incompreensível, parece que o teto se levantou, que as nuvens desapareceram. Não acredito em fadinhas pelo que imagino que um dia destes algo de desagradável volte a acontecer. Mas, de momento, as coisas estão como nunca. O horóscopo tinha dito: o seu poder de persuasão vai fazer com que se abram todos os caminhos, com que todos os obstáculos sejam ultrapassados. E, de facto, de uma forma nunca antes vista, é isso que está a acontecer. Ainda hoje. De uma forma que me parece quase impossível. Uma coisa de loucos. Não dá para acreditar.

Um dia de cada vez. Pode, um dia destes, de forma de novo inesperada, desabar sobre mim novo ceú carregado. A vida é cheia de surpresas e de equívocos. Mas posso testemunhar: não devemos temer e aceitar vergar a nossa consciência. Se o que ela nos diz é que digamos não, mesmo que isso comporte riscos devemos dizer não -- e prepararmo-nos para as consequências. Até porque pode acontecer que, mesmo que apenas temporariamente, as águas se separem para que passemos, incólumes. Ou seja, é aproveitar enquanto é bom. Sem medo do que aí pode vir. Até pode não vir. Ou, se vier, pode, afinal, até ser bom


E a vida é assim mesmo: momentos, surpresas, memórias, alegrias inesperadas. O tempo passa. Tantos anos que têm passado. Não me pesam. Acompanham-me com o seu rasto de boas memórias (eu, as más esqueço).  


E agora vou dormir. O quarto é grande demais só para mim e mal empregado para apenas uma noite. Mas é o que é. De manhã, ala moço que se faz tarde e o dia vai, de novo, ser bem longo.

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Os esquilinhos foram fotografados por Geert Weggen e estão aqui só porque são uma ternura. Yo-Yo Ma e Alison Krauss interpretam The Wexford Carol. E eu penitencio-me, de novo, por não conseguir responder a comentários ou mails. Não dá. Hoje não foi o tapete, foi aquilo de que falei e que me fez chegar ao quarto já por volta da meia noite e de, ainda, por cima estar a trocar mensagens com a minha filha. Mas tinha que lhe contar.

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Um dia feliz a todos quantos por aqui me acompanham.

Para ti A., se me estás a ler, um grande abraço e felicidades para todos, incluindo para o serzinho que está para chegar.

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domingo, dezembro 17, 2017

Um pesadelo auto-infligido
que, se não fosse quase infinito, seria um imenso prazer




É fim de semana e estou na mesma. Parece que invento. Sempre com coisas para fazer, sempre sem tempo livre. Chego aqui com necessidade de descansar e não consigo.

Passando por cima de algumas minudências, conto o que foi grande parte deste sábado.

Por esta altura, adio até ao limite uma tarefa à qual ninguém me obriga e que é, para mim, um pesadelo. O meu marido repreende-me: 'Fazes porque queres. És maluca.' Talvez. De tanto o ouvir, um dia destes ainda me convenço disso. E, no entanto, não sou masoquista -- e maluca, pelo menos do tipo maluco-maluco, acho que também não sou.

Só para que percebam. Estive para aí desde as quatro da tarde até bem depois da meia-noite -- apenas com uma breve interrupção para fazer um jantar rápido e depois para comê-lo -- de roda da mais estúpida e árdua tarefa que se pode imaginar.

Explico.


Gosto de oferecer foografias pelo Natal. Aos meus filhos, à minha mãe (dantes, quando o meu pai ainda via e estava mais ou menos bem, era para os dois; agora, já me habituei à ideia de que, vivendo uma vida de verdade, lá em casa já é só ela) e a mais um conjunto alargado de familiares. Penso que uma fotografia em papel é o registo do tempo que passa e dos bons momentos que vivemos juntos. Acontece que, para as escolher, vejo-me obrigada a ver muitos milhares de fotografias. Se faço inúmeras fotografias às paredes, aos graffitis das paredes, ao campo, às montanhas, às nuvens, ao mar, aos barcos, ao horizonte, às sombras, às flores e aos frutos, e a tudo o que mexe ou está em sossego, imaginem vocês o que não será aos meus lindos pimentinhas, aos meus filhos ou a toda a gente com quem estou em festas, encontros, pic-nics, passeios, etc. Milhares. Milhares.

Diz o meu marido: todos os meses, devias fazer essa selecção para não estares no fim do ano nessa empreitada. Talvez. Mas lembro-me lá eu disso. 

Portanto, o resultado desta monda de horas e horasfoi uma pré-selecção de quase seiscentas fotografias. 


Agora segue-se outra tarefa igualmente espinhosa: ver cada uma destas e anotar a quem a darei para saber quantas de cada uma tenho que fazer.

Seguidamente, novo pesadelo: predispôr-me a longas filas de espera e ir à FNAC, a uma daquelas máquinas, e registar o pedido, ou seja, uma a uma das quase seiscentas fotografias, escrever a quantidade.

Quando estiver pronta a encomenda, novo pesadelo: ir levantá-la e vir com sacadas de fotografias,  as quais depois, uma a uma, terão que ser separaradas por destinatário.

Ora, atendendo que já estamos na semana antes de Natal e que continuo a trabalhar como se não houvesse amanhã, imagine-se a saia justa em que já estou. Bem sei que já podia ter feito isto antes. Mas onde tenho eu o tempo para coisas destas? Tenho este fim de semana porque, com muita pena minha, virámos costas a encontros e almoços e lanches e viemos os dois dias a tempo inteiro para o campo: eu para estar nisto e o meu marido para travar o seu insano combate contra o matagal.


Claro que a quantidade infinita de fotografias quase anula o prazer de passar em revista os último doze meses da minha vida. Mas, apesar disso, é um deleite e uma felicidade.

Ao princípio, ainda eram apenas quatro pimentinhas à vista e o quinto enchendo a barriga da sua mãe. Depois, quando o meu filho esteve nos States, nós com os que cá ficaram -- ou em nossa casa ou, ao fim de semana, a passearmos no parque -- e as saudades que tínhamos dele apesar de nos falarmos todos os dias. E um elemento da família que estava a fazer quimioterapia, sem cabelo, com cabeleira postiça e que agora, felizmente, já bem e com o seu cabelo renascido. Depois já o bebé nos braços de todos. Vejo pelas fotografias como a minha filha e o pimentinha mais velho gostam de andar com ele. E aqueles instantes de ternura, a mamar, ao colo da mãe. E todos a brincarem, todos a crescerem, o mais crescido já com os novos dentes, os dois seguintes todos destendados, o seguinte ainda com os dentes de leite e o bebé agora com os seus dentinhos em que está sempre um a despontar. Ela sempre linda, linda, das meninas mais lindas que já vi (e não é por ser a minha fofa mais linda) e, desde sempre, consciente da sua fotogenia. Muitas fotografias dela, impossível não registar tamanha beleza. O seu mano do meio, o artista da família, canta, dança, representa. Aparece de óculos escuros, a tocar guitarra, a cantar desenfreadamente ou de olhos fechados tangendo um fado. O bebé, de colo em colo, sempre sorridente, uma carinha linda. Muitas vezes está ao colo do meu marido. Gosta imenso dele. Se o meu marido se esquece da sua existência, ele grita, chama, olha-o fixamente e não se cala enquanto o avô não o cumprimenta. Aí fica todo contente. O mais velho, um menino já crescido, já com ar de menino que um dia destes vai deixar a infância, aperece em algumas fotografias a fazer os trabalhos de casa, com ar contrariado enquanto a mãe, compenetrada, o obriga a estudar antes de brincar (lembro-me bem de um desses dias, aqui in heaven, ele a querer ir brincar com o irmão e a minha filha a querer que ele fizesse fichas preparatórias pois ia ter testes); o seu irmão sempre espirituoso, posudo, um rapaz de grande porte, de quem o avô desde sempre disse que vai ser comando ou da juve leo tal o tamanho e corporalidade. Muitas vezes aparecem os três rapazes crescidos a jogarem à bola. Ou então com o tio e com o avô ou com outros primos. Em algumas fotografias estão equipados a preceito e vejo-os a rematar à baliza ou a fazerem grandes defesas. E uma noite em que fiquei sozinha com os cinco e que ia dando em maluca. Havia velório e os meus filhos não quiseram deixar de estar presentes e o meu marido, claro, também. Então fiquei eu de serviço: dar-lhes de jantar, tomar conta deles, adormecê-los... foi uma odisseia sem paralelo que, nem sei como, ainda consegui registar numa dúzia de fotografias. E há as festas de anos, todos sorriem, muita brincadeira e muita alegria, até porque há sempre muita criançada (e quase todos da família mais próxima). E continuam a nascer que é uma festa. 


Tenho esta sensação, talvez resultante de uma nostalgia escusada, de que o que fica para a história serão as fotografias em papel já que as que ficam em cartões ou no computador acabarão por se perder nas mudanças tecnológicas ou no meio da miríade de ficheiros que acabamos por não rever. Assim, em papel, podendo pegar nelas, colocá-las em álbuns, tenho a sensação que sou dona das minhas memórias. Bem sei que tudo é efémero e, quando colocado em perspectiva, também irrelevante. Mas, ainda assim, permito-me alimentar a ilusão de que faço bem em dar-me a este trabalho de loucos. E porque eu gosto de as ter em papel, gosto de partilhar este gosto com aqueles de quem gosto. Só espero que eles também gostem e não digam: 'lá vem ela carregada com aquela treta das fotografias, que pincel...!'

Seja como for, a ver é se consigo ter tempo para tratar de tudo de modo a tê-las a tempo e horas.


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As fotografias que aqui coloquei foram feitas este sábado in heaven (antes de me embrenhar na empreitada).

Lá em cima: Yo-Yo Ma, Alison Krauss interpretam The Wexford Carol

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E que me desculpem aqueles a quem devo mails há não sei quanto tempo. Juro que não estão esquecidos, é mesmo esta minha vida que não me tem deixado tempo. E hoje, como se o que tinha em mãos não me bastasse, ainda me deu para mudar o look do blog. Um Leitor disse-me que estava escuro e eu resolvi fazer-lhe a vontade mas, à última hora, a opção que ganhou terreno é a que vêem... Bem sei que devia ter antes fundo claro mas parece que as cores neutras não ligam bem comigo, só consigo escolher cores intensas, é mais forte do que eu. Sorry.

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E um bom dia de domingo a todos quantos me acampanham

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