Estou casada há vinte e quatro anos e não sei se gosto ou se me habituei. Não morro de entusiasmo com a ideia do meu marido voltar todos os dias para casa às seis e meia sete mas também não é desagradável. Não me apaixona o facto de passar o mês inteiro de férias com ele e os pequenos mas também não me arrependo por aí além. Fazer amor não é a coisa mais apaixonante do mundo mas também não posso dizer que seja um frete.
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Chego a pensar que gosto se o comparo com outros homens, com os maridos das minhas amigas por exemplo, com os meus cunhados, chego a pensar que me habituei quando vejo um filme com o Robert de Niro. Não é que o Robert de Niro seja bonito ou assim: é o sorriso, é a maneira de olhar, é o vazio que fica em mim ao acenderem as luzes e em vez do Robert de Niro, o Zé Tó ao meu lado no automóvel, o Zé Tó a perguntar-me em português se a mulher a dias lhe passou as calças cinzentas, a torneira do quarto de banho a correr, eu deitada, e o Zé Tó, em pijama, quem se estende à minha esquerda com aquelas revistas de jipes todo-o-terreno que ele adora ler, é o Zé Tó quem me dá um beijo, quem apaga a luz, é o calcanhar do Zé Tó que me toca a perna, é o Zé Tó que adormece com uma rapidez que me irrita e me deixa sozinha no escuro a olhar o tecto à espera do sono que não vem, que não há maneira de vir, que demora séculos a chegar. Claro que se o Robert de Niro aqui estivesse não o queria para nada.
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a ausência de discussões, o bom feitio do Zé Tó, ainda bem que você julga que não me devo questionar sobre se gosto dele ou se me habituei, ainda bem que me convidou para jantar só que eu jantar não posso, doutor, que desculpa ia dar ao Zé Tó diga-me lá, podemos mudar para um almoço sexta-feira num restaurante que não seja perto nem do seu consultório nem da minha casa, de preferência sem pessoas conhecidas, eu até sinto que você tem qualquer coisa do Robert de Niro, o sorriso, a maneira de olhar, mal entrei no seu gabinete pensei logo
- Este psicólogo tem qualquer coisa do Robert de Niro aposto que nos vamos dar bem
e agora sou capaz de jurar que nos vamos dar bem, sou capaz de jurar que a seguir ao almoço nos vamos dar lindamente.
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Não sei há quanto tempo estou aqui sentado à tua espera. Um quarto de hora? Meia hora? Mais? Penso: se passarem dez automóveis encarnados e ela não vier, vou-me embora. Penso: conto de uma a trezentos e se, chegando aos trezentos, não apareceres, peço a conta. Passam doze automóveis encarnados e fico. Cheguei aos quatrocentos e vinte e três e continuei à espera. Recuo dos quatrocentos e vinte e três para o zero na certeza que aos cento e cinquenta te vejo chegar, acenando entre as mesas da esplanada, um problema no emprego, um telefonema da tua mãe, o drama de arrumar o jipe no parque de estacionamento. Mas como o baton te escorrega da boca para a bochecha e me dá ideia que, para além do perfume, cheiras a loção de barbear, tenho alguma dificuldade em acreditar em ti. Digo
- Trazes o baton na bochecha
os teus olhos mudam sem deixar de olhar-me, tiras o espelhinho da carteira, verificas a bochecha, pedes-me um lenço de papel, limpas o batom, procuras o tubo prateado numa confusão de chaves e agendas, refazes a boca mais devagar do que o costume em busca de uma justificação, guardas tudo na carteira, sorris porque encontraste uma mentira, os teus olhos mudam de novo, a tua mão poisa na minha, pedes não sei quê ao empregado, a mão troca a minha mão pelo teu queixo, explicas que devido à suspensão do jipe o baton errou o alvo (...). A mão abandona-me o queixo, belisca-me a orelha e ao beliscar-me a orelha quase acredito em ti. A parte que ainda não acredita insinua
- Cheiras a uma loção de barba diferente da minha
a mão que me esfregava o lóbulo hesita, ofende-se, a tua cadeira afasta-se indignada, reparo que te farejas a pretexto de fungares, que tropeças no cheiro, que te afastas um pouco mais para que eu deixe de sentir a loção, que tentas uma ironia qualquer
- Estive a rapar o bigode
que, como de costume, te defendes atacando-me
- Não é possível viver com um homem que desconfia de tudo
que tentas resolver o assunto ofendendo-te
- A tua falta de confiança magoa-me
(...)
Aproximo a cadeira da tua e peço-te perdão. Logo, se estiveres para aí virada
raramente estás para aí virada
é possível que a gente tal e coisa, e a seguir tu de nariz no tecto numa espécie de careta
e eu, sem reparar no teu chupão no braço
nunca consentes que te chupe o braço
eu, apesar do teu chupão no braço, a acomodar-me melhor na almofada, sentindo-me
como direi?
satisfeito, Fernanda, satisfeito.
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O primeiro excerto pertence à crónica 'O amor conjugal' do Primeiro Livro de Crónicas. O segundo pertence à crónica 'Não ligues às minhas picuinhices' do Segundo Livro de Crónicas. Lembro que António Lobo Antunes, a nível de crónicas, já vai no quarto volume.
Pessoalmente acho as crónicas de António Lobo Antunes uma excelente leitura (e acho os seus romances, desde há algum tempo, uma seca. Acabo por os deixar de lado ao fim de uns dias de luta).
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E, vocês, meus Caros Leitores, desculpem esta minha onda de transcrições. Não tenho paciência para falar do Relvas (e, a sério: a bem da consciencialização de quem ainda não percebeu o desastre que é este Governo, acho que Passos Coelho faz mesmo muito bem em aguentá-lo porque aquilo é tudo tão irremediavelmente mau que é bom que haja bem visível, à vista de toda a gente, uma caricatura como o Relvas) e quase tudo o que vejo na televisão me maça.
Hoje ouvi que o Moita Flores suspendeu o exercício da função de presidente do município de Santarém. Invocou razões de saúde e pressões literárias. Como?!?!?!? Fiquei aqui de queixo caído durante um bocado. Isto só visto. Razões literárias...?
Por aqui, pelas televisões, pode ele andar sempre que há um qualquer crime para comentar. Para isso tem saúde e agenda livre (agenda livre face aos compromissos literários). Entretanto, anunciou que está disponível para se candidatar por Oeiras. Ou seja, entre as idas à televisão e os livros e as séries de televisão, faz umas perninhas nas Câmaras. É este o espírito destes fantásticos políticos.
No outro dia tinha visto um rapazola qualquer a dizer que a culpa do Relvas se ter portado como um chico-espero era do Mariano Gago e que mau mesmo era o que Sócrates tinha feito, desculpabilizando de forma bacoca e disparatada o seu correlegionário Relvas. Ora isto seria apenas estúpido se o rapazola fosse um qualquer apanhado à má fila, no meio da rua, por um repórter daqueles que gostam de ouvir opinar quem quer que passe na rua; mas não, parece que é o líder da Jota (JSD, claro), ou seja, um secretário de estado, quiçá directamente ministro, em potência. Deprimente.
Depois vejo a revolta nas ruas de Espanha e vejo a bonomia passiva dos portugueses, muitos ainda a apoiar estas políticas de miséria. Não que eu apoie a violência, claro que não. Mas defendo a indignação, a manifestação da indignação. Esta bovinidade mansa dos portugueses às vezes chateia-me. A empobrecer e a estupidificar... e tanta gente ainda tão conformada.
Por isso, para não vos maçar com a minha chateação, prefiro dar a vez a quem escreve bem.
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E ainda: gostaria imenso de vos ter lá no meu
Ginjal e Lisboa. Hoje as minhas palavras são m´suica em volta de um belo poema de Eugénio de Andrade. E, porque se fala de música, há festa: inicio hoje a semana dedicada a Béla Bartók e a vibração está no ar.
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E, assim sendo, desejo-vos uma bela terça feira. Alegria e muitas bebidas frescas!