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quarta-feira, novembro 01, 2023

Nudez e cumplicidade nos balneários.
E receita rápida e boa para um jantar de halloween

 


Os balneários da piscina são todo um mundo. Em locais assim, mesmo sem querer, fico 'antenada'. As conversas são uma delícia. Muitas vezes acho que são altamente disparatadas, outras que são cúmplices e interessantes.

Há agora muito mais pessoas que antes. Hoje, quando cheguei já o meu cantinho estava ocupado, tive que ir para uma zona para onde nunca tinha ido, para junto de pessoas com quem nunca antes tinha falado.

A zona dos duches já não alberga todas ao mesmo tempo.

Continuo a não ser capaz de me pôr nua no meio das outras. Passo-me por água com o fato de banho vestido. Mas ao meu lado, a escassos centímetros e a toda a volta, as minhas companheiras ensaboam-se alegremente, lavam a cabeça, põem amaciador, viram-se e reviram-se. Algumas levam aquelas coisas que não sei como se chamam (não é esponja, mais parece uma espécie de rede plástica). Há uma senhora, diria que talvez mais velha que eu, que é relativamente baixa e muito gordinha, aliás bastante, bastante gordinha. Para lavar o rabo e os genitais faz uma ginástica extraordinária, baixa-se, curva-se toda, para conseguir chegar com aquela redinha cheia de espumada às partes baixas... E, enquanto está nestas acrobacias continua a conversar como se nada fosse. Fico espantada com o à vontade delas.

Hoje, já no balneário, uma mulher simpática, neste caso bem mais nova que eu, conversava comigo sobre o peso que já perdeu desde que faz hidroginástica e natação livre. Contava-me que todos os dias, à hora de almoço, vai para ali, dois dias de hidro e três de natação. Que gostava de fazer caminhada mas estava com excesso de peso, doíam-lhe os joelhos, deixou de caminhar, cada vez mais sedentária. Então resolver mudar de maneira de viver. Mudou a alimentação, começou com a piscina, ao fim de semana caminhada. E dez quilos já lá iam... E, enquanto conversava comigo, toda nua, aplicava hidratante em todo o corpo, na maior das calmas. E eu, com uma toalha gigante cobrindo a minha nudez e vestindo-me, por dentro da cortina do toalhão. Não sei porquê isto. Que pudor meu é este que não me deixa despir-me, lavar-me, hidratar o meu corpo em público?

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Hoje o meu dia foi mais tranquilo. Mas ando num estado em que parece que estou sempre em estado de alerta total, sempre à espera que as coisas descarrilem e que me veja, uma vez mais, em stresses. Por isso parece que não chego a desfrutar bem os instantes de tranquilidade. Até o meu sono anda inquieto, sempre com sonhos em que há situações de preocupação ou susto, acordando meio sobressaltada. Por isso, quando acordo, agora, volta e meia, estou com dor de cabeça.

Mas, enfim, hoje não foi mau de todo pelo que tenho é que aprender a conseguir desligar nos momentos tranquilos, nem que seja para recarregar baterias para quando tiver momentos intranquilos.

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Antes de terminar, conto o que cozinhei agora para o jantar, num instantinho e que ficou bom.

Tinha trazido lombos de atum congelados.

Descongelei. Numa tigela, coloquei cebola-doce cortadas às rodelas, os lombos de atum, mais rodelas de cebola, salta picada, um pouco de sal, um pouco de azeite e o sumo de duas limas. Ao fim de um bocado, se calhar aquilo estava ceviche e comer-se-ia bem assim. Mas não arrisquei.

Depois coloquei num tacho azeite e a cebola que estava a cobrir o atum e, em lume muito brando e com o tachinho tapado, deixei a cebola amolecer. 

Entretanto, noutro tacho cozi batata com casca cortada em rodelas largas. Quando estavam cozidas, escorri, temperei com azeite e orégãos.

No tacho em que estava a cebola, coloquei os lombos de atum marinado, depois piquei um tomate grande, maduro e esguichei um pouquinho de ketchup. Em lume brando, tapado. Ao fim de uns minutos, não sei se chegou aos cinco, desliguei. Deixei ficar tapado, envolvendo tudo bem, umas coisas nas outras.

Digo-vos que estava mesmo bom. O atum mal passado, macio, a saber a lima e ao tempero bom, o tomate picado ainda com leve sabor a fresco, as batatinhas com todos os sabores absorvidos.

E foi num instante...


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Ainda há bocado estiveram a tocar-nos à campainha. Devem ser os miúdos aqui do burgo. Ao fim da tarde, noite cerrada, vimos dois grupos de fantasminhas, serezinhos diabólicos, ruidosos mascarados. 

Para descelebrar o dia, plantei aqui graffitis que talvez tenham alguma coisa a ver com o dia das bruxas, Creio que são da autoria de Plast (Buenos Aires). 

Acompanha-nos Philip Glass com Musicbox.

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Desejo-vos uma boa quarta-feira

Saúde. Serenidade. Paz.

sábado, outubro 31, 2020

Aceitam uma fatiazínha de cérebro...? Ou, antes, um dedinho...?

 

Parece que este sábado é Dia das Bruxas (aka Halloween) e, portanto, isso é bom porque a bruxaria é uma profissão da qual convém não nos esquecermos. Não sei bem quais as skills das Bruxas nos tempos que correm mas acredito que sejam mais polifacetadas do que dantes. Talvez roguem pragas on demand, talvez preguem partidas do destino a la façon. Não sei se prestam serviços de teletransporte nem sei se efectuam serviços por via remota, não sei se têm take away para patas de galinha ou olhos de morcego nem sei se trabalham com o Uber. Talvez, parece-me provável, faria sentido. 

Seja como for, é sempre bom a gente estar de bem com elas. Nunca se sabe quando vamos precisar dos seus serviços ou, pelo menos, se alguém requerer os seus serviços contra nós, talvez, estando nós de bem com elas, talvez elas nos poupem. Pelo menos um bocadinho.

Seja como for, para festejar o dia, fiz um bolinho à maneira. Caso queiram provar, sirvam-se de uma fatia. Nham nham, parece tão apetitoso...

Mas, pronto, se os miolinhos ensanguentados vos parecerem um bocadinho nojentos, tenho aqui um outro acepipe mais apropriado a meninos sensíveis e a meninas apertadinhas, um inocente e little dedinho (por sinal, um dedinho a quem a vida correu um bocadinho mal). 


Mas, enfim, reconheço, é só um dedinho. Para os lambões que achem que um dedinho não é nada, que nem enche a cova de um dente, tenho aqui um pratinho deles. Ui, tão bom, tão bom... Temos é que nos abstrair de olhar para eles para não nos incomodarmos com as artroses nem percebermos que já foram usados para limpar o nariz, para retirar cera dos ouvidos e para fazer toques rectais a garganeiros.


Bom apetite.

Talvez possam banquetear-se enquanto vêem este amoroso vídeo.


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E, vá, para quem costume frequentar este boteco apenas para ouvir a bela música que habitualmente aqui é servida, para não desiludir, aqui vos deixo a banda sonora de um filme bem fofinho (e agora estou a falar mesmo a sério).


Primeiro bolinho do Halloween daqui, restantes daqui e não encontrei as receitas

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E um doce Dia das Bruxas.

sexta-feira, outubro 23, 2020

Covid-19: com os casos novos a treparem assim... onde é que isto vai parar....?
E, também, o corpo dos velhos... e das velhas

 


Os números de novos infectados continuam a subir a pique e, não tendo nós pela frente um tempo propício ao ar livre nem a perspectiva de um confinamento total (dois factores que, obviamente, favoreceriam o achatamento da curva), o que temos pela frente não serão, certamente, boas notícias.

No outro dia, em comentário, o Corvo dizia que eu, lutadora e resiliente, não deveria desmoralizar. Pois não, não desmoralizo. Mas não estou relativamente tranquila como estava em Março, Abril ou Maio, isso não.

E não estou pois não apenas há aquelas duas condicionantes críticas e incontornáveis (os dois factores que acima referi) como continuo a não ver acontecer três coisas que me parecem fundamentais para tentar conter o disparo a que se assiste: 

  1. Não vejo a DGS a fazer campanhas de divulgação intensivas, assíduas, explícitas, e sobre todos os meios, sobre cuidados a ter, boas e más práticas, hábitos arreigados que têm que ser alterados, etc
  2. Não vejo o Governo a decretar que, sempre que as funções o permitam (e os trabalhadores o aceitem), o teletrabalho é obrigatório (reduzir o número de pessoas em circulação sem prejudicar as actividades é vital)
  3. Não vejo serem enunciadas regras concretas para garantir a qualidade do ar, com auditorias à qualidade do ar obrigatórias e com apoios a empresas e organizações em geral que tenham que reformular os seus sistemas de AVAC por forma a garantirem a injecção de ar novo, a desinfecção de condutas, a substituição regular dos filtros (que devem ser os indicados e não os mais baratos)

E porque o que continuo a ver são as televisões e os comentadores a olharem para o passado e a quererem encontrar culpados (como se, em Março ou Abril, quando toda a gente ainda estava a assimilar o que estava a acontecer e não havia experiência sobre a covid, os governantes portugueses devessem ser mais inteligentes que os cientistas de todo o mundo) ou reportagens a puxar à censura pública e à maledicência (como a que vi hoje no noticiário da noite da SIC) sem acrescentarem nada de concreto para resolver os problemas daqui em diante, começo a ficar apreensiva, sim, Corvo. 

Mas não sou de me deixar afogar em apreensão pelo que, quando estou preocupada ou arreliada, depois de espingardar, apetece-me é espairecer. 

Para já vou pôr uma máscara, para dar o exemplo. Com vossa licença.

Mais máscaras adaptadas ao Halloween aqui


E agora aqui estou agora a partilhar o vídeo que acabei de ver das meninas mais doidonas do Brasil e arredores. Avós da Razão, claro está. Hoje, cada uma em sua casa, curtindo a quarentena, falam de como é quando a velhice toma conta do corpo (ou melhor, como o corpo é o que é e que se dane a velhice) 




E força aí, minha gente.
Saúde. E dias felizes.

segunda-feira, outubro 29, 2018

Jair é massa, inda bem que ganhou ele
Papo entre Irís e Duca que também votaram em Bolsonaro




Irís sobe, sacola ao ombro, nails em pink com estrelinhas douradas. Diz à amiga que a acompanha que o ónibus vai cada vez mais cheio. A amiga sorri e diz: 'Cada gringo mais lindo que o outro'. Irís olha, apreciadora, e diz que sim, que dá gosto ver.

Duca abre a bolsa, tira o espelho pequeno, tira o lápis azul e ajeita a sombra que a deixa com um olhar cor de céu. Morena de dar gosto mas com cabelo tingido de louro, gosta de sombrear a pálpebra com um céu limpo. Traz boné de feltro vermelho a puxar ao tom do lábio e toda ela se sente gostosa.

Irís faz o mesmo, tira o espelhinho e o gloss da sacola, reforça o pink dos lábios. Olham uma para a outra com ar aprovador. Bonitas, produzidas. Se têm canseira lá dentro, por fora não se nota é nada. As más línguas diriam que são duas piriguetes de se lhes tirar o chapéu e elas não estariam nem aí.

Depois da beleza posta em ordem, Duca comenta: 'Morreu o caçula de Pedrinho. Sabia? Mataram ele.' Tom indiferente. Íris também tem indiferença na voz: 'Foi, não foi? Minha tia já tinha me contado. O meu primo no outro dia escapou por pouco, sabia? Tiraram tudo. Bateram nele, ficou de dar dó. Fez selfie e me mandou. De dar dó, amiga, todo amassado'. Depois encolheram os ombros. Assunto banal.

Duca lembrou: 'Não perguntei. Tá contente lá na loja nova, Iry?'. Íris voltou a encolher os ombros. 'Muita sujeira, muita desarrumação. Primeiro que fique limpo... nem queira saber. Mas a grana é boa. Dá pra mandar para Lindinha se vestir, para Tiquinho ter livro pra escola. E ainda sobra. É bom. Na loja à noite, nos advogados logo pla manhã, na pizzaria ao almoço. Dá pra tirar uma boa grana. Ainda ontem fui na Primark e me aviei, nem queira saber, olhe este top veio de lá, não é lindo?'

Duca diz: 'Lindo, mesmo. Olha, nem sei como não te vi lá. Também fui ontem, tá com coisas lindas de morrer, a nova colecção tá de mais, a gente se tenta mesmo, não é, não?'.

E sorriem, felizes.

Duca continuou: 'Já mandei minha mãe vir. E pode trazer meu mano piqueno. Arranjo trabalho pra ela, escola pró caçula e casa pra todos. Aqui é bom. Tá ficando caro, a turistada faz subir o preço da casa, mas a gente se vira, né? Tenho medo que um dia alguma bandidagem leve algum deles lá. Não descanso enquanto não tiverem cá comigo. Mas me desdobro, amiga, me desdobro. Chego à noite toda derreada, nem sabe. Mas vale a pena.'

Íris não diz nada. Sabe que Duca trabalha nas limpezas de manhã mas faz programa à tarde e à noite. Também ela já foi sondada pra fazer. Mas não quer. Acha que não ia conseguir. Tem medo de ser maltratada, de encontrar cliente bruto que faça doer, que não seja lavado, que tenha mão pesada, com pouco carinho. Sente admiração por Duca. Sempre foi corajosa, sabe se fazer valer, saberá se defender se for preciso. 

Duca sabe que Íris sabe mas não fala disso, falar pra quê?, nada pra dizer, melhor assim. Cada uma vira como se pode. E, depois, tanta coisa pra trás -- bem pior antes, lá longe, em casa, tanta necessidade, tanta maldade, tanta coisa má que nem é bom lembrar. 

Duca desvia, pois, a conversa: 'Olha, Íry, que diz da vitória de Bolsó?'. Íris diz: 'Não sei dizer nada, não, amiga. Não sei nada de política, não. Votei nele porque não é político. E li no Face coisas dos outros, muita malandragem a dos outros, não sei te dizer o quê que não ligo pra isso, só digo o que ouço. Sei é que Jair diz que é de família, que com ele malandragem não tá é com nada, que vai acabar com bandidagem. Ele é massa, viu?'

Duca confirma: 'Também eu, amiga, também escolhi ele. É massa mesmo. Lá na igreja apoiam ele, diz que é do bem, diz que vai pra lá pra defender o povo da bandidagem, que com ele bandido vai é na bala. O pastor lá diz que Jair tem o voto de deus. A ver se é desta, né amiga?, que a gente vai ter alguém do bem pra olhar pra nós, né mesmo?'.

Íris diz que sim, que tá contente. Depois pensa, mas não diz nada, que o broder mais velho de Duca é gay e que Jair diz que não quer nada com bicha. Melhor nem lembrar isso pra Duca -- pra quê preocupar ela, coitada? -- até porque Jair tem tanto bandido, comuna e negão para dar conta que deve deixar bicha pró fim.


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A história que acabei de escrever poderia muito bem ser mais uma das historinhas do halloween que tenho vindo a escrever (a saber: a da advogada, a do olho e a do gato). Mas não. Esta é de terror a sério. 

domingo, outubro 28, 2018

Miaauuuuuuuuuuuuuuuuuu....




Não foi a primeira vez. Aliás, foi por causa do que aconteceu na primeira vez que passámos a ter o portão fechado à cheve. 

Nessa vez, estava um dia de muito calor. Estávamos na cozinha a almoçar, só os dois. Às tantas ouvimos uns ruídos, depois passos e, no instante em que olhámos um para o outro a tentar perceber o que se passava, já um homem corpulento, de espingarda na mão, afastava o reposteiro e assomava à porta. Apanhámos um susto. Levantámo-nos precipitadamente sem saber o que nos esperava. Mas o homem, percebendo que nos tinha assustado, pediu desculpa e perguntou se deixávamos que os cães bebessem água, e com ar aflito, disse que uma cadela já tinha morrido. E logo saíu.

Sem percebermos bem o que se estava a passar, fomos atrás dele. Saíu em direcção a uma carrinha, abriu as portas para soltar os cães mas eles mal se mexiam. O meu marido levou a mangueira, abriu a água, molhou os cães, deu-lhes de beber. Passado uns instantes estavam como novos. Mas o homem estava francamente enervado, talvez até mais enervado do que desolado. Explicou que depois da caça, tinha deixado os animais na carrinha enquanto tinha ido dar uma volta para explorar melhor o local, que depois tinha ido comer uma bucha, que nunca tinha pensado que o calor fosse tanto a ponto de um dos animais morrer.

No meio daquele culpabilização e desgosto dele não íamos dizer que podia ter tocado à campainha antes de entrar por ali como se nem tivesse que pedir licença pois imaginámos a aflição dele ao chegar ao carro e ver um dos animais já morto e os outros quase inconscientes.

Mas, independentemente da situação que talvez justificasse a invasão, os caçadores, tenho ideia, são um bocado assim: tendem a achar que é tudo deles. Foi também por causa dos caçadores que resolvemos vedar esta parte do terreno onde está a casa. Era frequente darmos com eles por aqui, eles e os cães, perseguindo os coelhos. Tinha pavor que os miúdos andassem por aí em dia de caça. O meu marido passava-se com eles, exaltava-se, dizia que tinham que respeitar a distância à cada, que estavam a pedir sarilhos. Lembro-me de um, furioso, se virar para e e lhe perguntar: 'Essa é boa, e ia deixar aqui os coelhos, não?'. Um perigo, gente assim. Eu mesma me peguei várias vezes com eles, ameaçando chamar a guarda.

Vedámos, então, esta parte do terreno mas volta e meia detectamos cartuchos e percebemos que estiveram cá dentro. Lá mais para o fundo, em baixo, ainda não há muito, o meu marido andou a reparar a vedação pois, em baixo, havia uma abertura, certamente para os cães poderem entrar.


Pois bem,  De novo. Só que, desta vez, como o portão está fechado, a pessoa tocou à campainha e o sino. Tão insistentemente que me assustei.

O meu marido andava lá para baixo. Eu estava ainda na cama. Com os dias que tenho tido, o que me vale são os dias do fim de semana em que posso dormir até mais tarde. Apressadamente, enfiei umas calças, vesti a blusa e fui à rua ver o que se passava. Por precaução, levei o telemóvel.

No portão, uma criatura grande, de sexo indefinido. Não percebi se era um homem com feições e corpo vagamente femininos, se uma mulher enorme, masculinizada. Estava com um daqueles fatos de tipo camuflado, boné, e segurava uma espingarda. E tinha uns quantos coelhos pendurados à cintura. Ao colo, um cão que gania.

Com ar preocupado, perguntou se eu tinha alguma coisa com que pudesse tratar a pata do cão que, pelos vistos, estava cortada. Vi sangue e uma ferida um bocado assustadora. Perguntei se não era melhor procurar um veterinário. Perguntou se sabia de algum ali perto. Não sabia. Abri o portão e fui buscar algodão, água oxigenada, betadine. 

Continuei sem perceber se era homem ou mulher. A voz era indefinida e desagradável. Pousou a espingarda, pôs o pé em cima do banco, deitou o cãozito na perna, segurando-o para que eu pudesse limpar e desinfectar o ferimento.

No momento em que me aproximei, tive uma visão aterradora. No meio dos coelhos pendurados à ilharga, outra coisa. Dei um salto. Apontei: 'Que é isso?!' e só me apetecia empurrar a criatura para bem longe. Respondeu com naturalidade: 'Um gato'.  Horrorizada, quase gritei: 'Que é um gato já eu vi. Mas matou um gato e trá-lo aí, como se fosse uma peça de caça?'. Respondeu: 'Que mal tem? Qual a diferença? Gato ou coelho, tudo igual, sabe tão bem um como outro.'

Passei-lhe o algodão com água oxigenada para a mão e quase empurrei a criatura do portão para fora. O cão cania. Fiquei com o chão cheio de sangue. Já do lado de fora, ainda me disse, com voz sarcástica: 'Obrigada, ouviu? Já percebi que não aprecia o pitéu. Mas se quiser um casaco de pele de gato, diga, que já lá tenho que chegue para um'.

Nesse instante, agoniada e aterrorizada com tanta perversidade, ouvi nitidamente um gemido que me deixou transida e que, não duvido, era um miar de gato.


sábado, outubro 27, 2018

Em terra de cegos, quem tem um olho...





Há agora muitas trotinetas em Lisboa. À noite têm luzinhas e parecem pirilampos deslizando pelos passeios da Baixa. A paisagem urbana vai mudando e eu gosto cada vez mais dela. Não é bom trabalhar até tarde mas é bom, no regresso, andar na bela cidade ao cair da noite. Há qualquer coisa de mágico nisso.

Calhou esta semana ter que atravessar a cidade a meio da tarde e ter tempo para ir pela beira do rio. Uma cidade luminosa, aberta ao mundo. Muita gente desfrutando o sol, deitada na relva, estendida na amurada, andando devagar, conversando, fotografando. Sempre gostei de cidades grandes, com muita gente de passagem cruzando-se com quem a habita ou nela trabalha. Gosto de me sentir também de passagem. Estou de passagem. Se calhar já vivi na época vitoriana frequentando animadas tertúlias, se calhar ajudei a contribuir para a fama das etruscas, se calhar fui monja e escapei-me por corredores labirínticos. Mas, entre todas as minhas vidas, vou passando  com o vagar possível, olhando bem a beleza dos lugares, sentindo o perfume do ar em que vivemos.

Cheguei a casa depois da uma e meia da manhã. Estava desejando despir-me, desapertar-me, descalçar-me. Mal me sentei aqui para espreitar em que param as modas, adormeci. Um bocado antes tinha acontecido o mesmo com os meus meninos. Depois de terem brincado na maior vivacidade, caíram na cama e adormeceram instantaneamente.

Foi longo e muito bom este meu dia. Estar com os meus, ver como gostam de estar juntos, ver como estão bonitos e crescidos é para mim felicidade suprema.

De tarde, tive duas reuniões, a segunda das quais com um homem relativamente jovem, muito alto e parecido com um guerreiro árabe, cabeça rapada e grande barba. Há uma primeira vez para tudo e aparecer num lugar daqueles alguém com aquele ar foi decididamente uma première. Simpatizei com ele. Parecia caído de um outro mundo. Ria muito, muito bem disposto. Acho que não percebeu como estava ali deslocado.

Quando a reunião acabou, despedi-me e acompanhei-o à porta. Nessa altura, meteu a mão no bolso para me entregar um cartão. Nessa altura, alguma coisa veio atrás e caíu para o chão, saltitando como uma pequena bola. Era de facto uma estranha pequena bola. Pareceu-me um olho raiado de sangue. Nessa altura, ele pareceu assustado ainda mais assustado que eu. Apanhou rapidamente a pequena esfera e meteu-a no bolso. Fiz de conta que não reparei e ele nada disse. Quando ia despedir-se de mim fez o gesto de me ir beijar. Estendi-lhe a minha mão, forçando-o a recuar. Sorriu, então, com um ar perverso como se quisesse que eu percebesse que ele tinha captado o meu receio. 

Quando cheguei ao meu gabinete, inquieta, espreitei pela janela. Um outro, que me pareceu exactamente igual mas vestido de outra maneira, esperava no passeio. Estava de costas. Depois aquele que tinha estado comigo chegou, bateu-lhe no ombro. Nessa altura, o outro virou-se. Tinha uma pala preta a tapar um dos olhos. 

Um arrepio percorreu o meu corpo.


sexta-feira, outubro 26, 2018

No melhor pano...




Não posso jurar que nunca a tivesse visto. Eu tinha estacionado num piso muito inferior e estava no elevador quando ela entrou. Pensei: estacionou no piso das visitas. Mais alta que eu, mais nova que eu, mais bonita e elegante que eu. Perfumada e bem cuidada, cabelos muito bem tratados. Olhei-a o mais discretamente que consegui. Pensei que deveria ser advogada pois notoriamente não dispensava roupa e sapatos de marca e tinha aquela segurança e requinte que caracterizam as mulheres que pensam bem, que ganham ainda melhor, que frequentam os corredores do poder e que estão habituadas a só beber do fino.

Tinha um vestido justo, levemente acima do joelho, de manga curta, num tecido suave com flores em azul claro, com laivos de lilás e uns toques de branco e cinzento. Trazia um colar e uns brincos de pérolas. Os sapatos, muito altos, eram no mesmo tom de azul. Olhou-se discretamente no espelho, sacudiu levemente o cabelo. Estava absorta, parecia nem dar pela minha presença.

Quando chegámos ao meu andar, percebi que ela também ia sair. Deixei que saísse antes de mim. Agradeceu e saíu em passo determinado. 

Então, no momento em que eu própria ia a sair, reparei que no chão, no local onde ela tinha estado, estavam umas gotas de sangue.

Fiquei petrificada. Quis fazer alguma coisa, dizer alguma coisa. Mas, sem saber bem como, devo ter hesitado. E logo as portas se fecharam e eu, sem querer, segui no elevador. 

Voltei a marcar o meu piso. Olhei o chão. 

Quando saí, reparei que até à porta do escritório havia mais umas duas ou três gotas. Espaçadas mas grossas. Perguntei à recepcionista quem era a mulher que tinha entrado. Disse: 'Não sei. A secretária do presidente tinha-me dito que ele estava à espera de uma pessoa. Quando a avisei que tinha chegado, ele mesmo veio recebê-la. Estão os dois no salão nobre. Bonita, não é?'. 

Respondi: 'É, pois. E o vestido?'. Ela fez um ar apreciador: 'Lindo'.

Pensei: uma cadeira de veludo vai ficar em mau estado (são em verdinho claro); e do lindo vestido azulinho nem se fala.


PS:

Confirmei depois: é mesmo advogada e, segundo consta, infalível. 

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[Depois deste escrito pré-halloween, caso estejam in the mood há aqui já a seguir dois posts cada um com um poema mais bonito que o outro]

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