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domingo, dezembro 05, 2021

Sai Eduardo Cabrita e meio mundo aplaude e diz que já vai tarde.
Lamento se vos desiludo mas eu não me junto a esse coro.

 

Devo dizer que não conheço particularmente a actuação de Eduardo Cabrita pelo que não posso dizer que é alguém por quem nutra especial especial admiração ou simpatia. Contudo, tenho ideia que é um todo o terreno, pau para toda a obra, trabalhador, dedicado ao país e sem ambição pessoal -- e isso não é pouco.

Vejo toda a gente encarniçada contra ele mas eu, sou franca, não sei bem porquê.

É certo que aconteceu aquela vergonha com o assassinato de Igor às mãos do SEF. Mas não aconteceu seguramente por ordens dele; e desgraças e acidentes acontecem quando se lida com realidades nem sempre fáceis. Contudo, o SEF era coisa de seu pelouro e, portanto, responsabilidade política havia. 

Ora, quando acontece uma desgraça ou acidente, a comunicação social, comentadores e redes sociais salivam e espumam exigindo a demissão. 

Para mim, não é claro que essa seja a atitude mais responsável, mais digna ou mais corajosa. Pelo contrário, assumir a responsabilidade e continuar de pé, de cabeça erguida, zelar pela independência dos inquéritos, ficar a a enfrentar as críticas e a tentar resolver os problemas, isso, sim, parece-me corajoso e louvável. 

Claro que se o problema acontecer por acção directa, negligência grosseira ou intenção comprovada, aí, a conversa seria outra. Se o próprio não se demitisse, quem estivesse acima dele deveria correr com ele a pontapé. 

Mas se o não é, se as coisas acontecem por um azar dos távoras, força maior, acts of god, ou por mau funcionamento de serviços sobre os quais ainda não houve tempo de fazer a devida limpeza, então o responsável deve aguentar firme e resolver o problema.

Por exemplo, se acontecer uma desgraça ou acidente numa coisa sob minha responsabilidade não me passa pela cabeça, nesse momento de aperto ou angústia bater em retirada e deixar o problema nas mãos de quem não teve nada a ver com isso. 

Além disso, acredito que Cabrita até deve ter posto o lugar à disposição e acredito que o Costa deve ter feito o que eu faria: deve tê-lo mandado bugiar, a ele mais a demissão, e que ficasse era a fazer limpeza radical no SEF, integrando-o noutra coisa qualquer para ver se acabava de vez com aquele regabofe de seguranças privados e escumalha a rebentar de testosterona e aditivos para ficarem com os músculos a bombar e a cabeça vazia de neurónios. E ele aguentou. Debaixo de apupos, debaixo dos insultos permanentes.

E agora esta pouca sorte do acidente na autoestrada...

Vou contar só para que, quem pouco conduz, melhor possa contextualizar. 

Durante anos desloquei-me regularmente ao norte (e a outros locais mas, preponderantemente, ao norte). Como geralmente não ia sozinha e como nisto (e na dança) gosto mais de ser conduzida do que de conduzir, ia muitas vezes no lugar do morto. 

Um dos mais assíduos conduzia cautelosamente e, por isso, saíamos de Lisboa bem cedo, bem mais cedo do que outros que, por vezes, também iam daqui. Acontecia irmos a meio de caminho e passar por nós algum dos nosso colegas, nas horas de estalar. Nem nos viam. Iam na faixa da esquerda como uma flecha.

Claro que fui muitas vezes com alguns desses. Detestava. Lembro-me que uma vez ia com um -- um daqueles que vai a abrir quase até passar por cima do carro da frente, desviando-se à última hora, o que me deixava com o estômago e o credo na boca -- e eu ia a dizer que na semana anterior tinha ido com um outro e que até tinha tido medo, que tinha ido quase sempre acima dos 180, que nunca tinha feito a viagem tão depressa. E ele riu-se e perguntou: 'Não é verdade. Consigo já fui várias vezes acima disso.' Como eu duvidasse, ele disse: 'Garanto-lhe. Mas, se duvida, olhe'. Eu nem queria acreditar. Íamos acima dos 190. Não sei como não apanhavam mais multas do que as que apanhavam. 

Quando se tem uma reunião em Lisboa a uma hora, uma escritura ou uma cerimónia qualquer pouco depois noutro lado e uma reunião no Porto pouco depois e quando se tem um carro potente, carregar no pedal torna-se um hábito. 

Está mal? Claro que está. Tem riscos? Porra, se os tem. Deviam ser apanhados e levar pela medida grossa? Pois, se calhar, sim. 

Mas as solicitações são inúmeras, as pessoas que estão fora da capital querem ter a presença de quem está a Sede, querem sentir que o seu trabalho é reconhecido. Vir alguém de Lisboa para o testemunhar é importante. E, portanto, muitas vezes debaixo de cansaço, há quem voe para atender todos os pedidos. Voa-se já sem se dar conta que se está a voar.

Que o carro do ministro fosse a 163 km/h não me parece escandaloso. Está fora de lei, é certo. Mas quem faça a A1 sabe que, com carros que andam bem, o difícil é ir abaixo disso. 

O ministro deveria ter imposto os 120? Claro que podia e se calhar, de vez em quando, alertou o motorista para não se alargar. 

Ainda hoje alertei várias vezes o meu 'motorista' para ir mais devagar. Respondeu o que sempre responde: 'Porque é que não conduzes tu? Conduz. Não me importo... Conduz tu para ires à tua vontade' 

Mas o ministro, no carro, deve ir a ler papéis ou notícias ou mails, não deve ir a olhar para o conta-quilómetros. E, num carro bom, nem se dá pelos cento e sessenta e tal. 

E depois um peão a atravessar uma autoestrada é daqueles riscos em que escapar é como escapar à roleta russa. A minha filha no outro dia perguntava se, caso o carro fosse a 120 e um peão atravessasse a autoestrada no momento em que o carro ia passar, o peão escapava incólume. Obviamente a pergunta era retórica pois claro que dificilmente escaparia com vida.

Portanto, uma vez mais, o que aconteceu a Eduardo Cabrita é daquelas coisas que não se desejam a ninguém. Claro que desgraça maior foi a do trabalhador que atravessou a autoestrada quando um carro estava a passar. Mas alguém estar num carro que atropela mortalmente uma pessoa é cruz que se carregará para o resto da vida. 

Uma vez mais, claro que o mais óbvio seria que apresentasse a demissão não porque a morte da pessoa resultasse da velocidade a que o carro ia mas porque, mesmo que não tivesse havido acidente algum, ia em excesso de velocidade.

E acredito que o tenha feito mas provavelmente Costa pediu-lhe que se aguentasse à bronca, esperasse pelos resultados do inquérito e continuasse a trabalhar.

E, uma vez mais, falo por mim: imagino o stress, a angústia, a dificuldade em continuar a enfrentar o fogo contínuo por parte da comunicação social e das redes sociais e a incompreensão por parte de quem nem sonha com as ameaças diárias, as crises e as múltiplas dificuldades com que um ministro da Administração Interna tem que enfrentar, imagino a vontade de largar tudo e ter uma vida simples e descansada.

Aguentou até onde conseguiu aguentar e Costa pediu-lhe que continuasse até ao ponto em que percebeu que estava a pedir demais.

Sai Eduardo Cabrita, um homem que se sacrificou pelo país, incompreendido e mal amado, um homem que acredito ser corajoso e digno e que teve a pouca sorte de ter que enfrentar por duas vezes dois casos de morte que se cravaram na sua reputação como certamente na sua mente e coração.

Demitiu-se -- e todos batem palmas. Eu não. Acho que quem bate palmas perante o infortúnio alheio e salta em cima de quem está no chão é gente cobarde.

Mas a comunicação social está cheia de jornalistas e comentadores cobardes e que fazem da crueldade e da maledicência o seu modo de vida. E as redes socias, salvo uma ou outra excepção, são o palco onde desfilam rebanhos de gente que vai atrás de tudo o que os raivosos desta vida atiram para a rua, enlameando-a.

Caminhamos lentamente para uma sociedade lamacenta, conduzida por gente medíocre e cobarde, a única que a populaça tolera. Todos os outros, os que exibem orgulhosamente alguma inteligência, valentia ou dignidade são carne para canhão e alvo da sistemática tentativa de neutralização através de públicos enforcamentos, apedrejamentos, injúrias e difamação.

Seja como for, daqui envio votos de boa sorte a Eduardo Cabrita nesta nova fase da sua vida. E obrigada pelo que deu de si tendo recebido tão pouco em troca.