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domingo, março 08, 2020

Eros em visita




Estendeu na terra atapetada de erva a toalha de pano que comprou aos vendedores ambulantes em Lagos e deitou-se ao sol. Quando ele chegou perto dela, deu uma gargalhada e exclamou: 'Mas o que é isto? Passaste-te?'. Ela soergueu-se sobre um cotovelo, colocou a mão em concha sobre os olhos e perguntou: 'Porquê?'. Enquanto falava, segurava as folhas de couve. Riu também. Depois explicou: 'O sol está forte. Não tinha protector solar. Fui ver o que poderia usar e lembrei-me disto'.

Deitou-se de novo e ajeitou as duas folhas. Ele riu. Cada folha cobria um seio mas a meio de cada folha havia um orifício através do qual saía o mamilo. 'Um curioso modelo. Qual a ideia?', ironizou ele. Ela, maliciosa, explicou: 'Para te facilitar a vida.' Ele ajoelhou-se e, tendo a vida facilitada, fez o que tinha a fazer.


Num outro dia, quando chegou a casa, ela estava na sala a ler. A sala quase às escuras. Um foco de luz incidia no livro. Admirou-se: 'Vieste mais cedo.' Ela esclareceu: 'Estava doida para ler este livro'. Estava coberta por uma mantinha muito fina, branca, que parecia renda. Ele reparou nos seus ombros despidos: 'Estás nua?'. Ela respondeu: 'Não. Apenas despi o vestido para não o amarrotar. Liguei o ar condicionado para não ter frio'. Ele sorriu. Ela disse: 'Mas completei com um adereço.'. Ele olhou-a e percebeu que o sorriso dela era daquela malícia que tão bem conhecia: 'Ah sim? Ora deixa cá ver...'.

Destapou-a.

'Ah... ' Ela percebeu que ele tinha gostado do que tinha visto mas, sabendo-o distraído, não ficou com a certeza que ele tinha visto tudo. 'Viste a minha flor?'. Ele não percebeu, admitiu que fosse uma metáfora: 'A tua flor? '. Em voz baixa, ela esclareceu: 'Um malmequer. Para ver se tens sorte.  Desflora-me. Devagarinho. Mal-me-que, bem-me-quer. Anda, vem ver qual o veredicto. Aproxima-te.'


No dia oito, quando estavam a almoçar, ela descalçou o sapato e com a ponta do pé acariciou-lhe a perna por debaixo das calças. Ele começou por se admirar mas depois sorriu. Ela voltou a calçar o sapato e pediu que ele lhe desse o cheese naan à boca. Ele disse: 'Deixa-te de coisas'. Ela insistiu: É Dia da Mulher. Sê simpático'. Ele sorriu: 'O que é que ganho com isso?. Ela olhou-o nos olhos. 'Nem queiras saber'. Ele quis saber: 'Diz lá'. Ela disse: 'Estou a pensar numa coisa. Mas é surpresa.'.

Pegou no pé do copo, balouçou o vinho enquanto aspirava o seu odor, depois bebeu um pouco, devagar, sentindo o sabor. Disse: 'Frutado, umas notas de romã, umas notas de madeira. Bom.'

Depois, voltou a olhá-lo nos olhos: 'Vá, agora o cheese naan, bebé'. Ele separou um pequeno triângulo e deu-lho à boca. Ela saboreou o queijo derretido, quente, e percebia-se que estava agradecida. Então ele perguntou: 'E agora...?'. Ela sorriu mas muito ao de leve: 'Agora ganhaste o direito à sobremesa, baby...'


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A primeira e a última fotografias são de Helmut Newton, a segunda é de Marino Parisotto e a última de Richard Avedon. Segundo Nina Simone Wild is the wind.

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quinta-feira, março 15, 2018

Recrutas do destino




Da varanda vê-se toda a cidade, as suas luzes no preto vínico da noite, doces linhas curvas de cúpulas e colinas no seio da obscuridade. O small talk, nas mesas postas a rigor para um jantar de grande solenidade, perde-se por entre o barulho dos copos e dos talheres, flui num murmúrio indistinto; as palavras e as vozes são intercambiáveis, de todos e de ninguém, histórias que se passaram com quem está sentado ao lado, mas que poderiam perfeitamente ter acontecido ao conviva da frente, sussurro que se desvanece como um agradável e indiferente buliço.Os jantares de um certo tom são uma representação sagrada, Mistério medieval que põe em cena a anónima insignificância de toda a gente. Qualquer pessoa poderia estar no lugar de uma outra ou ser outra, por trás da máscara do papel social o rosto marcado pelos anos é mais ou menos o mesmo; diante de um cocktail homens e mulheres são todos iguais tal como diante do amor e da morte, recrutas do destino dispostos em fila nos seus uniformes.

 

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Excerto de Instântaneos de Claudio Magris
Arioso de Bach
Fotografias respectivamente de Helmut Newton e de Richard Avedon

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terça-feira, julho 11, 2017

Todas as memórias são memórias de outros





Neste domingo estive a ler os ensaios e crónicas de Marcello Duarte Mathias. Diz ele, citando outrem, que todas as memórias são memórias de outros. Concordo. Diria eu: que envolvem outros. 

Penso que é bem verdade, isso: se tentar lembrar-me de momentos meus do passado, eles chegam-me sempre com outras pessoas lá dentro. Não tenho grande ideia de mim sozinha. Sempre fui muito gregária. Se estava sozinha, estava a ler e isso não é estar sozinha. Ou estava a escrever cartas e isso muito menos. De resto, em miúda, estava com uma das minhas primas, a que vivia perto de mim, ou com as meninas da rua. Meninas e meninos. Um dos meninos, ilustre deputado e várias vezes ministro e detentor de outros cargos públicos, era um deles. Sempre muito apertadinho. Gostava dele mas não era o meu preferido. Geralmente era ele que ficava a tomar conta a ver se não aparecia ninguém enquanto andávamos por onde não devíamos.

Depois, mal adolescia, já namorava. E mantinha uma rede de amigos e amigas e organizávamos bailes, convívios, festas de anos, idas ao cinema, passeios à beira-mar ou à praia. 

A minha mãe passava-se e tentava que parte disso fosse desconhecido pelo meu pai. Se eu não conseguia parar em casa, exigia que eu, ao menos, estivesse em casa quando eles, à tarde, chegassem a casa. Claro que aí obedecia. 

Mas lembro-me de episódios isolados, irrelevantes, de forma muito vívida. Por exemplo, quando andava no último do secundário, os meus pais inquietavam-se com a minha vida atribulada, em processo de rompimento com um namorado que amava de paixão, a namorar um outro que me amava de paixão, sempre em actividades sociais de toda a espécie e feitio, a participar num concurso na televisão, a escolher e provar o vestido comprido e a ensaiar a entrada e a valsa para o baile de finalistas, a corresponder-me com uns quantos admiradores de outros liceus que tinha conhecido nesse concurso... e eles não me viam a estudar e temiam que algo corresse mal e que eu não entrasse para a faculdade. Depois, todos os meus colegas andavam na explicação e a minha mãe achava que eu também devia andar. Lá se informou com as colegas e apareceu-me a dizer que havia um professor fantástico, já com alguma idade, professor reformado, que dava expicações, que era melhor eu ir, sempre manteria a disciplina de estudar. Nessas coisas eu ia ver, tinha até alguma curiosidade. Uma casa na baixa, uma daquelas belas casas pombalinas (digo que é pombalina a partir da memória que guardo mas, na verdade, sei lá). Azulejos por fora, varandins. Tocámos à campainha e, quando a porta se abriu, ouvimos lá de cima: 'Pode subir'. Uma escadaria larga em madeira com um bonito corrimão. O senhor esperava-nos. Era pequenino, pullover coçado, lã deslassada, cabelo grisalho, ar um pouco especial. Entrámos numa divisão cujas paredes estavam cobertas por estantes com livros. Daquelas casas com alto pé direito, janelas até ao chão, uma mesa antiga num recanto. Qualquer coisa ali me intimidou. Acho que nem abri a boca. A minha mãe deve ter percebido que eu não estava a aderir. Lembro-me que ela perguntou o preço e que eu achei um exagero. Ele disse que eram lições individuais. Mal comecei a descer as escadas já ia a dizer que nem pensar. A minha mãe admirada: 'mas porquê?'' Lembro-me que disse que era um disparate de caro. A minha mãe disse que o preço não era problema meu. Mas fui categórica. Nem sabia dizer porquê. Aversão instantânea. Hoje sei bem porquê. A questão é que percebi que aquilo era a sério. Seria eu e o velho mestre, sem escapatória. Ora era o que me faltava era perder uma hora das minhas santas tardes a ter que prestar atenção a um professor que notoriamente não me deixaria pôr o pé em ramo verde. Mas hoje penso que o senhor deve ter percebido o meu total desinteresse pelo que ele dizia. E lembro-me daquela casa, tão incrivelmente bonita. 


Acabei por ir parar a um casal, pouco mais velhos que eu mas já com um bebé. Eram estudantes no Técnico, davam explicações para ganhar uns trocos, malta de esquerda, numa casa frequentada por tudo o que era reviralho, incluindo o José Afonso. O meu namorado da altura, que era de outra área, nada de matemáticas ou físicas, aparecia também por lá com a sua guitarra e dava belos concertos, o pessoal todo espalhado pelos sofás ou em almofadas no chão. Quando eles, esse tal casal, souberam que eu ia para lá ficaram preocupados: o que é que uma aluna de 18, 19 ou 20 ia para lá fazer? Na volta sabia mais que eles. Mas nunca houve problema porque, na verdade, eu andava lá porque o meu ex-namorado também andava e era uma maneira, que eu não assumia, para estar perto dele, e porque todos os meus amigos também por lá andavam e porque aquele ambiente era a minha praia. A minha mãe ia ouvindo falar daquele forrobodó e perguntava-me: 'Mas aprendes ou estudas alguma coisa?' e eu não a enganava mas dizia que era importante o convívio e que, parecendo que não, sempre íamos fazendo algumas coisas. Ela encolhia os ombros, sabia desde sempre que pouco havia a fazer. O meu marido diz-lhe: 'Não a educou', referindo-se a mim. A minha mãe ri e confessa: 'Não consegui. Sabe lá... Nunca foi de se deixar educar...' No entanto, ainda hoje tenta mas, claro, as esperanças em ser bem sucedida são cada vez mais diminutas.

Mas voltando ao tal casal de explicadores.

A casa deles era meio escura, parece que tinham aprendido a viver desconfiados. Mas, tirando isso, a informalidade reinava. Lembro-me de uma vez, todos em volta da mesa, o Bê, o explicador, à cabeceira e eu e a maltinha à volta. Como sempre, falava-se de mil coisas e, às tantas, o Jota, um dos meus grandes amigos, usou a palavra falo e detectei uns sorrisos e que, logo, o Bê quis mudar de conversa. E eu 'O que é o falo?' e ele a desconversar e o maluco do Jota e dos outros a cochicharem, a rirem, a quererem metaforizar e o Bê a mandá-los estarem calados e a querer voltar à matéria escolar. Mas eu percebi logo que tinha caroço naquele angu. Não desisti: 'Não vou parar enquanto não me disserem'. O Jota preparava-se para uma alarvidade mas foi logo atalhado pelo Bê. 'Xiu, que é isso?' e o Jota: 'Então... mas não é ela que quer saber?' e o Bê: 'E não sabes dizer de forma educada?' e depois, virando-se para mim, ele próprio subitamente corado, 'É o orgão sexual masculino'. E o Jota: 'Mas quando está teso' e logo o Bê: 'Está mas é calado. Já chega'. E eu morta de riso e de repente tudo a rir à gargalhada.


E, agora que aqui vou, estou com vontade de contar uma coisa do mais divertido que há, que se passou com um colega e presenciado por mim e por outros dois. Mas acho que não devo porque é coisa muito recente e é tão inusitado que não pode ter acontecido o mesmo com mais alguém à superfície da terra e, portanto, se isto for lido por uma das outras quatro pessoas que, de certa forma, participaram, fica logo a cena e os intervenientes identificados. E digo outros quatro porque, em cena, entrou uma mulher que desconhecíamos. Quando contei ao meu marido, quase sem conseguir parar de rir, ele disse: 'Era freira'. Neste domingo, voltei a lembrar-me disso e desatei outra vez na risota e o meu marido voltou a sentenciar 'Só podia ser freira. Só uma freira faria isso'. Não conto agora mas um dia tenho que contar porque uma cena daquelas não pode ficar por registar.

Claro que os apontamentos de Marcello Duarte Mathias não versam sobre episódios desta natureza. Pelo contrário, fala de pessoas públicas, políticos, escritores, refere livros, volta e meia cita pequenos trechos. Tudo de gente bem comportada, tudo ideias bem estruturadas e interessantes. Vai-se lendo e aprendendo, enquanto se partilham bons momentos de memória ou reflexão.

Assinalei algumas passagens para aqui partilhar convosco mas agora está a dar-me preguiça de me pôr a copiar. Portanto, calinas como a esta hora sempre me sinto, deixei-me por aqui ficar a molengar e a deitar conversa fora. E foi o que viram.


[Não digo que estou com sono para não levar outra desanda da minha filha: não faz sentido andares sempre a dizer que tens sono. Se tens tanto sono, porque não vais dormir? -- pergunta o roto ao nu (porque recebo mails dela a horas também impróprias e, feita moralista, também lhe passo lições de moral e saúde mental). Mas é um facto. Tive que me levantar cedo e, como sempre que tenho que me levantar cedo, feita estúpida acordo ainda mil horas mais cedo. E como o dia foi puxadésimo e, à chegada, ainda fui caminhar e comprar fruta aos indianos, tudo deu para tarde e, já se sabe, cair neste sofá é entregar-me, de alma e coração, nos braços de Morfeu. Ou seja, assim sendo, não há volta a dar: fico-me por aqui e espero que vocês fiquem bem].

As fotografias são de Helmut Newton e, claramente, não devem ter nada a ver com o texto. E quem canta Midnight Blues é Snowy White que não faço ideia se faz pendant com a conversa. E eu, com vossa licença, vou pregar para outra freguesia e vamos fazer votos para que amanhã a prosa tenha algum interesse.

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Um dia feliz a todos

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quinta-feira, abril 13, 2017

Cátia Palhinha sem cuecas -- ou 'A origem do Mundo'
[E alguns piropos sedutores para satisfazer alguns dos meus Leitores]


Só de vez em quando me lembro de ver as estatísticas do Um Jeito Manso e, ainda menos, a das palavras-chave que, a partir dos motores de busca, trazem as pessoas até mim.

Contudo, quando me apetece ficar bem disposta já sei que é a essa porta que devo ir bater. É que não é apenas a graça de perceber o tipo de questões que assola ao espírito de algumas pessoas como também o constatar em que conta me tem o algoritmo da google.

Todos os dias há algumas que se repetem. Desde logo 'um jeito manso' ou 'blog um jeito manso' ou 'quem é a autora de um jeito manso'. Isso é banal.


Também, recorrentemente, aparecem algumas através das quais antecipo o conhecimento de algumas fofocas que, decorrido algum tempo, vejo que se confirmam. Por exemplo, hoje aparece o nome de conhecida apresentadora de entretenimento televisivo ao lado de nome de bem conhecido director do Expresso. Não sei se é só fumaça, como diria o titio do filósogo Bruno de Carvalho, ou se há mesmo fogo. On vera

E há as que me aparecem quase desde o princípio dos tempos: 'alexandra lencastre plástica', 'quem operou a alexandra lencastre»' ou 'alexandra lencastre gorda'. Aliás, esta da gordura é frequente. Coisa de mulherzinha má. Presumo que sejam mulheres que vão ao google e, com sorrisinho vingador, escrevam outro dos 'best of': 'teresa caeiro gorda ou grávida?'. Acho isto de uma perversidade assinalável. Caramba: isto é lá coisa que se pergunte? Onde a subtileza...? Sugiro que, para a próxima, escrevam antes: 'quando é que o Miguel Sousa Tavares começa a cozinhar comida saudável?' ou 'qual a nutricionista onde a Teggy está com vontade de ir?'. Coisa discreta e construtiva.



Mas há uma expressão que está sempre nos tops das estatísticas do Um Jeito Manso: 'Cátia Palhinha sem cuecas'. É certo que um dia, tendo recebido um mail com uma foto da dita vedeta com a passarinha ao léu e, por sinal, uma passarinha bem penugenta, a publiquei. Aliás, tenho ideia que foi até o meu filho que ma enviou. Acho que na altura não o mencionei mas tenho ideia que sim.



A partir daí, esse post é visto com frequência porque, qual Origem do Mundo pela pena de Courbet, dá ideia que há muito pessoal que gosta de ver a gloriosa saída de quem se faz ao mundo pelas vias normais (ia escrever 'a gloriosa entrada' mas, felizmente, dei por isso a tempo).

Claro que não sei se a Cátia Palhinha ainga gosta de andar a dar ar à pluma. Também não sei se é da família de um tal João Palhinha que tenho ideia que joga futebol. Ou seja, infelizmente, sobre tão profunda e cabeluda temática nada mais tenho a acrescentar. Lamento. Ninguém é perfeito. 


Outra expressão que traz muitos leitores até mim é 'piropos sedutores'. Esta não sei bem porquê. Mas como 'sedução' é outras das palavras chaves frequentes, presumo que o algoritmo da google ache que aqui o meu inocente blog é um antro de pecado e perdição, ou, nos melhores dias, um lugar onde se pratica a sedução e onde se pode obter inspiração para sacar alguns piropos à maneira.


Ora, dizer piropos, que eu saiba, não é bem o meu forte. Portanto, temo bem que as pessoas por aqui andem, coitadas, debalde, à procura de piropos. Lembrei-me, então, de, para tentar que, na próxima, não vão daqui de mãos a abanar, inventar agora uns quantos.

Ora bem. Então, vamos lá a ver se sai coisa que se aproveite. Vou tentar que sejam usáveis por pedreiros (livres ou não livres), poetas, filósofos, engenheiros, chefs ou desocupados ou, mesmo, deputados ou comentadores. Para dizer a mulheres:
  • 'Se eu pudesse, colocava-a em água, e cheirava-a a toda a hora, minha linda e perfumada flor'
ou
  • 'Os meus olhos não se cansam de a olhar mas mais ávidos ainda estão os meus ouvidos por ouvir-lhe palavras de amor, amada minha'

Para dizer a homens e, identicamente, para ver se servem para todas as faixas etárias, preferências linguísticas, ocupações ou credos: 
  • 'De entre todas as feras do mundo, é a ti que eu escolho para me ronronares ao ouvido, oh meu leão' -- [Dúvida: os leões ronronam? ou deveria, antes, dizer: 'meu tigre'?)
ou
  • 'gosto do teu verbo, gosto da tua lógica mas gosto ainda mais da força que adivinho nos teus braços, oh meu tarzan'
claro que, se for para dizer a um lingrinhas, a coisa deveria merecer um twist:
  • 'gosto da força mental que adivinho no teu olhar mas é do teu verbo e da tua lógica que eu estou à espera desde que nasci, oh meu platão' 

[Não são grande coisa como piropos, bem sei, mas quem dá o que tem a mais não é obrigado e eu, a esta hora, com os neurónios a meio gás, já não consigo produzir melhor sedução enlatada. Aliás, estava aqui a ver se me ocorria banda sonora para este post e nada. Se me passar esta fase de 'brancas' profundas, ainda aqui venho colocar um little video.]

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E agora das duas uma: ou durmo aqui uma pequena sesta e acordo toda esperta e pronta para outro post ou descubro alguma coisa que me esperte antes de dormir ou, o que também é provável, caio aqui num sono profundo e assim me quedarei até ouvir chamar pelo meu nme.

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Ah, é verdade, as três últimas fotografias são de Helmut Newton

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Talvez o Poema dos Olhos da Amada - Vinicius

(O que acham?)


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A ver se lá para a hora do almoço consigo acabar o que vai a meio. Depois publico.

Me aguardem...

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terça-feira, junho 28, 2016

Ela foi a primeira a usá-lo entre as pernas.
Escândalo! - exclamaram muitos.
Devem as mulheres ser completamente abolidas? - perguntou Clementine Churchill.
Respostas absolutas não sei, falo só por mim (e mesmo assim, oh oh)





Hoje ouvi que Guilhermina Suggia, nascida em 27 de Junho de 1885 e de quem já aqui várias vezes falei, causou escândalo ao tocar com o violoncelo entre as pernas. As mulheres tocavam-no colocando-o de lado. Não ela.

Aquela a quem também hoje ouvi que chamaram Paganina, mulher emancipada, de vontade vibrante e de paixões exuberantes, impôs o seu mérito e o seu querer numa época em que as mulheres eram pouco mais do que um sub-produto da espécie humana.

A sua vida e a sua arte são excepcionais, tanto mais que, num Portugal provinciano e acabrunhado, uma atitude livre como a dela, a expunham a todo o tipo de crítica social.

Mas Guilhermina não se sentia intimidade por ser uma mulher num mundo de homens.
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Não faz grande sentido, depois de falar de Suggia, puxar-me, eu, a mim para o palco. Mas não tenho, assim de repente, aqui à mão, um exemplar feminino que conheça tão bem como me conheço a mim. Não é exibicionismo, é mesmo falta de matéria prima.

Então, com vossa licença:


Desde há mais de mil anos que chefio pessoas. Na maioria, tenho chefiado homens até porque sempre trabalhei em empresas ou em departamentos em que há uma notória preponderância masculina.

Tinha 30 anos e já chefiava uma equipa heterogénea de gente de todas as idades e hábitos. Chefiar mulheres era, então, uma excepção e um prazer. Chefiar é para mim natural. Agora não se diz chefiar, diz-se liderar. Gosto de liderar mas o meu estilo de liderança, segundo reza a teoria e conferem os técnicos da coisa não é uma liderança directiva mas sim inspiradora. Não tenho paciência para explicar o que têm que fazer nem para andar a controlar se já fizeram. Espero, sim, que apareçam com as coisas feitas e que me surpreendam. O meu maior desejo em relação às equipas que lidero é que sejam mais criativas que eu, que inovem, que ousem, que me ensinem. Depois fico toda contente, faço com que o trabalho deles seja conhecido e, sobretudo, reconhecido.

Se não podem ir trabalhar, não vão, se lhes dá jeito ficarem algum dia em casa, que fiquem. Ao princípio, os meus colegas olhavam-me de lado, quase me censuravam como se eu fomentasse as baldas. Nada. Faço defesa intransigente do direito de cada um a gerir o seu tempo e a sua vida -- e arreliam-me as pessoas que acham que devem sacrificar a vida pessoal -- e apenas quero que cumpram ou superem o que era suposto.

Tanto trabalho bem com homens como com mulheres. Mas há diferenças. Os homens são muito de não assumirem dificuldades, de não pedirem ajuda, são muito daquilo a que se chama 'orgulho besta', coisa que não aproveita a ninguém nem a eles. As mulheres assumem mais facilmente as suas fragilidades, esforçam-se mais genuinamente para trabalharem em equipa. Mas, se motivados, todos são bons e eu não faço diferenças. 

De vez em quando sou objecto de comportamentos cavalheirescos por parte dos meus subordinados homens. Armam-se em meus protectores e isso não só me surpreende como me enternece. Contudo sabem todos que, haja o que houver, têm em mim a sua defensora absoluta e que, em qualquer guerra (que, nas empresas, volta e meia há) podem contar com a minha presença na linha da frente.

Na sociedade, em geral, ainda há, contudo, um peso demasiado débil da representação feminina: não apenas nos órgãos de gestão das empresas mas também nos governos ou nas demais instituições as mulheres estão em minoria.

Há muitos homens que ainda não vêem com bons olhos serem liderados por mulheres: geralmente são os mais palermas ou caguinchas que assim pensam.

Mas há também muito, da parte das mulheres, um certo complexo de inferioridade, acham que têm que provar o seu valor. Ora não têm que provar nada, têm apenas que ser como são e, nas respectivas áreas, serem competentes, sérias, genuínas. E, sobretudo, não têm que morder os calcanhares umas das outras. Há nas mulheres, em muitas mulheres, uma raivinha (encapotada ou não) contra as mulheres que não são, nem se armam em coitadinhas. Outras vezes, algumas mulheres, ao quererem mostrar que são donas da sua vida, tal o descontrolo e a ânsia de o fazerem, perdem a subtileza, roçam a vulgaridade, parecem que querem mostrar que são mais carroceiras do que o mais carroceiro dos machos-alfas.

Qualquer destas atitudes é contraproducente. As mulheres, tal como os homens, se querem ser respeitadas, têm que saber dar-se ao respeito.

Mas, enfim, é um caminho - acho eu e escuso de dizer que o caminho se faz caminhando.
Energúmenos, machistas, parvalhões (de ambos os sexos) e, até, verdadeiramente misóginos sempre os houve e sempre os haverá. É preciso é que sejam cada vez em menor número e cada vez mais alvo de rejeição social. 
Um caminho, pois. Um caminho que, apesar de vir sendo percorrido há tantos anos, parece que ainda agora começa a ser trilhado, tão incipientes são, em algumas áreas, os resultados alcançados.

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"Ought women not to be abolished all together?


[Louise Brealey lê Clementine Churchill que escreve ao editor do The Times (28 Março 1912)]


On March 28th of 1912, an eminent bacteriologist named Almroth Wright wrote a lengthy, pompous letter to The Times in which he argued that women should not be allowed to vote, and in fact should be kept away from politics altogether, due to their supposed psychological and physiological deficiencies. Unsurprisingly his opinion generated many responses, the best of which was the following witty letter from "One of the Doomed," printed in the paper two days later. Unbeknownst to all, its sender, "C.S.C.," was 26-year-old Clementine Churchill


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Lá em cima Suggia, com Reginald Paul no piano, interpretam Fauré: Sicilienne Op. 78 for Cello & Piano

As fotografias da parte do texto em que falo de mim são da autoria de Helmut Newton.

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E queiram, por favor, descer até ao post seguinte no qual faço uma decisiva confissão.

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quinta-feira, novembro 28, 2013

Paulo Portas diz: "Ouça! Uns dedicam-se às exportações e outros a manifestarem-se". E eu pergunto ao irrevogável Portas: 'Ouça! Quando V. deixar de ser vice e quiçá, até, chefe do CDS, vai exportar? Sim...? O quê...? Conte lá. Make my day...!'. Ou, perguntando de outra maneira: 'Ouça! Os funcionários públicos administrativos ou os professores contratados, em vez de protestarem, deveriam estar a exportar?. Sim? O quê?'. Ai minha mãezinha... Perante tanta nulidade, onde pára a oposição...?! Razão tem Mário Soares quando diz que, se o PS fosse mais activo, em vez dos actuais 30%, teria era 90%...! É que é mesmo...


No post a seguir a este mostro-vos as fotografias inéditas feitas por Helmut Newton que vão aparecer no Calendário Pirelli 2014 e, de bónus, deixo-vos um vídeo com a evolução deste calendário de culto desde o seu nascimento até aos dias de hoje.

Para os mais acalorados deixo, no final, uma fotografia com umas bombeiras que deixarão qualquer homem de cabeça perdida. A bombeira do meio, que se antecipa que seja a comandante, então, deve ter um efeito imediato sobre os cavalheiros mais sensíveis.

E, a seguir a esse, porque este blogue não apenas é para o menino como para o menina, mostro o calendário 2014 dos bombeiros do aeroporto de Barajas. Coisa para deixar qualquer mulher on fire, diga-se.

Mas agora aqui, para apagar bem o fogo, tenho um baldinho de água fria.

Paulo Portas e as suas tiradas ridículas capazes de levar qualquer um às lágrimas ou o enxovalho pelo qual o Tozé Seguro passa todos os dias ao constatar como ninguém o leva a sério como alternativa - era disso que eu deveria falar.

Mas, pensando melhor, com a falta de tempo que tenho e a quantidade de coisas que quero fazer, por que raio de carga de água hei-de gastar o meu precioso tempo com tão absolutas nulidades?

Ora abóbora! Não vou mesmo!

Vou mas é continuar a minha história da Leonor (antes que adormeça).

quarta-feira, novembro 27, 2013

Calendário Pirelli 2014 com fotografias inéditas de Helmut Newton e, para o baú das memórias, o vídeo com a evolução de 1964 até 2013. Fotografia, sedução, feminilidade: arte. (E, no fim, caso haja por aí alguns cavalheiros on fire, tenho também uma fotografia de bombeiras, cada uma mais sexy que a outra)


Depois de abaixo vos ter mostrado o calendário com os bombeiros do aeroporto de Madrid - Barajas que certamente deixará muita girl in fire (girl seja de que sexo for), é chegada a vez do reverso mas em ponto fino. 

Falo do Calendário Pirelli, esse verdadeiro objecto de culto.






A sensualidade das garotas do Calendário Pirelli atravessa os tempos na sua edição 2014. Para comemorar os 50 anos da publicação, a folhinha terá fotos retiradas do trabalho de Helmut Newton feito em 1986 mas até então guardadas no arquivo histórico da empresa, nunca reveladas. O trabalho foi apresentado nesta quinta-feira (21) em Milão.


Newton abandonou o projeto por problemas familiares, e o calendário lançado em 1986 foi o realizado pelo americano Bert Stern, que havia clicado celebridades como Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor e Audrey Hepburn.

No entanto, o trabalho de Newton foi preservado, e agora a Fundação Pirelli resolveu restaurá-lo, aproveitando o aniversário da publicação e a coincidência de os dias da semana coincidirem nos dois anos, em 1986 e em 2014.


O Calendário 2014 respeita o projeto original também do ponto de vista do layout, e é composto de 12 fotos autorais em branco e preto, acompanhadas de 29 imagens de backstage.

A edição comemorativa traz ainda uma sessão especial de fotos com Alessandra Ambrosio e Isabeli Fontana, que foram clicadas em Nova York no último mês de junho. O ensaio, assinado pelos fotógrafos Peter Lindbergh e Patrick Demarchelier, conta também com Helena Christensen, Miranda Kerr, Karolina Kurkova e Alek Wek.


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Bom, está na hora de chamar as bombeiras. Que toquem as sirenes.




Sorry, gentlemen, queriam o quê?

sexta-feira, setembro 27, 2013

Se eu gosto que pessoas que não conheço ou que mal conheço me tratem por tu...? Eu respondo. E, de caminho, conto algumas coisas a meu respeito. E, para o texto não ficar chato para além da conta, intercalo umas fotografias de Helmut Newton. E acompanho com 'You've got a friend'. Talvez percebam onde é que eu quero chegar com o cocktail que aqui vos deixo.


You've got a friend
(a sério)




Num dos posts anteriores desencadeou-se uma polémica entre Leitores a propósito de me tratarem ou não por tu.

Vou falar disso mas começo por dizer que não vale a pena zangarem-se uns com os outros, muito menos por um motivo destes. Muito gostaria de saber que por aqui, no Um Jeito Manso, toda a gente está numa boa.

Se um dia me saísse o euromilhões gostaria de ter um espaço amplo, luminoso (tendo contudo algumas zonas de sombra para momentos de cumplicidade), quiçá pudesse ser no Ginjal para ter uma maravilhosa vista sobre Lisboa, sobre o Tejo, talvez de onde se vissem também árvores, espaço esse onde se expusessem obras de arte, onde houvesse gente a tocar, a cantar, a dizer poesia, a dançar, onde as pessoas se juntassem para falar de livros, de política, do que lhes apetecesse. Também para provarem iguarias raras, petiscos, simples sandochas. Um espaço de tertúlia e descontracção, onde a beleza e a serenidade habitassem.


Não é exactamente assim que imagino o meu espaço de tertúlia e artes e bem-comer mas, enfim, assim também não seria mau de todo.

As pessoas poderiam exaltar-se, os temas interessantes ou a arte por vezes levam à exaltação. Mas a exaltação não é o mesmo que zanga. Muito gostaria que por lá as pessoas respeitassem sempre as diferenças, que fossem generosas, que soubessem demonstrar estima umas pelas outras.

Enfim, é um sonho que tenho. Mas, enquanto não me sai o euromilhões, espero que este espaço, o Um Jeito Manso, embora virtual, seja um bom sucedâneo.

Mas agora o tema é o do tratamento por tu.

Começo por dizer: ao contrário do que por aqui, ao escrever tanto, poderá até parecer não sou daquelas pessoas tagarelas que falam pelos cotovelos, que metem conversa com toda a gente e, que, ao falar, põem a mão no braços das outras pessoas, coisas assim.


Pelo contrário. Aliás não gosto nem um bocadinho de pessoas dadas a familiaridades, a proximidade física imediata.

As pessoas que me conhecem mal acham que guardo distâncias, dizem depois que se sentiam intimidadas por mim.

De facto, não sou de dar confiança à toa. Trabalho num grupo empresarial onde trabalha muita gente, sempre trabalhei em ambientes assim. E, no entanto, em todo este tempo, apenas tratei por tu duas pessoas. São dois colegas folgazões que tratam por tu toda a gente e de tal forma descontraídos que se marimbaram para as minhas distâncias e começaram a tratar-me por tu, sem me darem hipótese a armar-me em esquisita.

De resto, a toda, toda a gente, mesmo a grandes amigos, trato por você. Aliás no meio em que me movimento habitualmente toda a gente se trata por você.

No entanto, trato os meus filhos por tu e eles também a mim, porque foi assim que começou e assim ficou.

Também há outro aspecto: se começo a tratar uma pessoa de uma determinada maneira dificilmente altero. Não me sai. Não é por nada, é apenas porque parece que essa forma de tratamento fixou fixa na minha cabeça. Por exemplo, se comecei a tratar alguém por Dr. Não-sei-quantos dificilmente deixarei cair o Dr. Tenho imensos casos desses: ao principio havia alguma reverência e o título precedia o nome e depois, apesar de a reverência caído, o título não caíu nem por mais uma.


Geralmente também, no trabalho, quase toda a gente, ao dirigir-se-me, precede o meu nome pelo título. Não sou nada de galões, nada, nada, mas acho que aquele prefixo me dá a segurança de uma barreira. Não sei. O certo é que tenho que reconhecer que se me aparece algum daqueles putos consultores ou auditores que gostam de se armar em íntimos de toda a gente e me tratam só pelo nome, fico incomodada, tão incomodada como se me estivessem a pôr a mão na perna. Não me perguntem porquê porque sei que é ridículo. Mas é a pura verdade.

Recebo, no trabalho, com frequência mails de pessoas que obtiveram o meu contacto e me escrevem mails a apresentar-se e, geralmente, a pedir alguma reunião. Se têm a pouca sorte de se me dirigirem num registo que me parece informal, tratando-me directamente pelo meu nome próprio sem mais nada, fico logo de pé atrás e dificilmente respondo favoravelmente (até para não ter, depois, a experiência desagradável de os ouvir depois tratarem-me como se me conhecessem de há longa data).

Antiquada, elitista, sei lá o quê? Talvez, não discuto. Mas é assim. Involuntariamente, mas é.

Já uma vez aqui o contei: quando os meus filhos eram miúdos fomos uma vez com eles a uma Festa do Avante. Tenho ideia que foi no último ano em que foi na Ajuda. Tinha ouvido falar em artesanato, ar livre, etc, e achei por bem que devia ser uma coisa engraçada para passarmos um bocado do dia. Pensámos em ir por volta da hora do almoço e ficar para a tarde.


A experiência não podia ter sido pior. Estava um calor abrasador. Os miúdos queriam cá saber de artesanato, não achavam graça nenhuma àquilo, o tempo todo a querem ir-se embora, que era uma seca, nada para fazer, e todos encarnados, transpirados, aborrecidos. A nível de artesanato aquilo também era fraquito pelo que eu própria também não estava entusiasmada.

Mas o pior foi para almoçar. Na minha inexperiência eu ia a imaginar uma coisa de tipo restaurantes da Feira Popular, tipo esplanadas com mesas, pratos a sério, copos de vidro, onde a gente se sentasse e fosse servida, podendo comer com algum conforto. Mas não: eram pequenas tasquinhas em que serviam em prato de plástico e íamos com a comida na mão à procura de mesa.

Desconfortável especialmente quando se vai com miúdos cheios de calor e contrariados. O meu marido, por seu lado, abomina confusões, lojinhas de artesanato (coisas que ele acha que são uma treta, que não servem para nada, só para andar por cima dos móveis a atrapalhar), detesta tasquinhas em que há barafundas e comida em prato de plástico, odeia andar devagarinho de poiso em poiso a ver coisas que, segundo ele não têm nada para ver. De modo que era eu pouco convencida, ele enfastiado, os miúdos furiosos e cansados, e todos cheios de calor.

Mas o pior era outra coisa: é que, para agravar ao clima, toda a gente em todo o lado me tratava por tu, senão mesmo por camarada. A comichão que aquilo me fazia... 'O que é que vai ser, camarada?', 'quantos copos é que queres?' - tudo nesta base. Até me encolhia toda por dentro.

E é que nem é tanto que me tratem por tu.

O pior é que eu não consigo tratar por tu pessoas que não conheço, de quem não sou íntima, a quem não me habituei a tratar por tu desde o primeiro minuto em que os conheci. Não consigo. Não é uma questão de vontade, é mesmo uma impossibilidade.

Mas então ficaria uma situação desconfortável, os outros a tratarem-me na maior familiaridade e eu a tratá-los por você, com uma certa distância. Iria parecer chazada da minha parte e também não é. Só que ficaria estranho. Prefiro evitar.

Fiquei traumatizada. Nunca mais lá pus os pés. Apenas há um ano ou dois voltei a ir e mais para ver se estava melhor e para fotografar.

E voltei a não ficar convencida. Tem um certo lado pictórico mas, tirando isso, não acho piada.

Claro que talvez, se fosse para os espectáculos, já gostaria mais, mas nunca calhou. Depois, claro, não me identifico com palavras de ordem de punho no ar, com palavras de ordem contra o patronato e outras mistificações que talvez tenham feito sentido noutra era, noutras circunstâncias, não agora.

(Punho no ar sim mas no momento certo, onde faça sentido, não no meio de uma festa, à soalheira, onde não há inimigos nenhuns por perto)

Mas voltando ao tu para aqui, tu para ali. 

Aqui, quando algum leitor me trata por tu, alguém que não conheço pessoalmente, não fico incomodada. Percebo que é um registo normal para quem usa essa forma de tratamento – e quem o faz, pode continuar a fazê-lo. Na boa. Fico é desconfortável a responder, faço uma ginástica do caraças para usar uma forma indefinida, de modo a fugir ao tu mas de modo a que o Leitor não o perceba.


Nestas coisas bem mais fácil é a língua inglesa. Tenho que falar frequentemente em inglês, quer com ingleses quer com pessoas de outras nacionalidades. Ainda recentemente tenho tido reuniões com alemães e, como não pesco nada de alemão, nem eu nem os outros participantes portugueses, falamos em inglês. Pois bem, sejam quem forem, presidentes de empresas ou jovens assessores, são todos you, nada cá de etiquetas ou pruridos.

Já com os espanhóis é o oposto: é tu com toda a gente, mas tão generalizadamente o é, que com eles não há outro remédio senão tratá-los também por tu.

O drama na nossa língua, o português de Portugal, é que tem este lado de cheio de nove horas que se presta a esta segregação.

De qualquer maneira, que não vos fique a ideia de que, lá por isso, sou uma nariz empinado, arrogante, armada ao pingarelho. Não, nada.

E, depois, há uma coisa surpreendente. Apesar de eu ser assim, nada de familiaridades, confidências, intimidades, as pessoas vêm ter comigo e desatam a contar-me a vida toda. Não sei porquê. Se comento isto em casa, perguntam-me ‘Mas a que propósito te contam isso tudo?’. Respondo que não sou eu que pergunto. Geralmente não faço perguntas. ‘Então começam a contar-te assim, do nada?’. É, geralmente é mesmo assim: do nada.

Ainda não há muito tempo estava à espera de vez para comprar peixe no supermercado.  O meu marido tinha ido dar uma volta por outro lado, talvez comprar pão ou vinho ou azeite que são coisas que ele gosta de escolher. Fiquei ali na minha. Ao meu lado estava uma senhora um pouco mais velha que eu, muito bom ar, o marido um bocado afastado, ali ao pé das bancadas do bacalhau. Então a senhora disse-me que ia comprar peixe espada, que lhe parecia bom. Devo ter esboçado um sorriso e dito que sim. Depois disse-me que o filho ia a casa dela e que sempre tinha gostado muito de peixe espada, que ela, quando ele lá ia, tentava sempre fazer qualquer coisa de que ele gostava. Daí, nem sei como, começou a falar-me dos problemas do filho, da separação, da guarda dos filhos, a ex-mulher uma mulher complicada, e ele, por causa de tudo, já com problemas de não conseguir dormir, e preocupações também no trabalho e que ela sempre ajudaria o filho e já me contava situações concretas, já de lágrima ao canto do olho.

Quando chegou a minha vez de ser atendida e depois me despedi, a senhora pôs-me o mão no braço e desculpou-se e depois agradeceu-me. O meu marido, entretanto, tinha-se despachado da sua ronda e observava ao largo. Quando cheguei ao pé dele, perguntou-me 'Mas o que era aquilo? Quem é?'. Disse-lhe que não fazia ideia. E contei-lhe. Só não se admirou mais porque isto é frequente.

Uma vez estava eu a estacionar o carro num jardinzito relativamente perto da minha casa. Reparei numa senhora vestida de preto, talvez de uns setenta anos, que estava sentada num muro um pouco mais à frente. Qual o meu espanto quando vejo a senhora levantar-se e vir na minha direcção. Sem mais nem ontem, disse-me ‘Morreu o meu filho. Tinha sido internado e foi piorando mas nunca pensei que fosse morrer. Eles começaram a preparar-me mas eu nunca acreditei. Agora vou todos os dias ao cemitério, estou lá muito tempo. Mas depois não consigo estar em casa. Venho para a rua, ando por aí, mas também não consigo andar o dia todo pela rua. Agora sentei-me aqui e fico à espera que se faça de noite’. E chorava. Devo ter estado ali a ouvi-la bem mais de meia hora. Eu estava impressionadíssima, a dor daquela mulher era imensa, uma coisa irreparável. A custo consegui despedir-me. Não me parecia justo ou humano interrompê-la. Quando contei ao meu marido o que se tinha passado ficou um bocado admirado, ‘Mas veio ter contigo e desatou a contar-te isso, sem mais nem menos?’. Justamente.

Por isso, há qualquer coisa de contraditório em mim. Embora eu seja um bocado reservada no convívio, embora as pessoas percebam que não sou de tu cá, tu lá, sou, apesar disso acho que percebem que sou de confiança. E sou mesmo.

Sei a vida pessoal, íntima até, da maior parte dos meus colegas. Não lhes pergunto. Vêm ter comigo e contam-me. Aconselho-os, dou a minha opinião. E nunca divulgo, nunca comento com mais ninguém. É a vida das pessoas e eu respeito-a em absoluto.

Aqui na net é a mesma coisa. Vocês, aqueles que não me escrevem, não imaginam a quantidade de mails que recebo. As pessoas contam-me os seus problemas, conversam comigo. E eu ouço-as, aqui como em todo o lado. Ouço com compreensão, estima, solidariedade. Os meus amigos que têm tido oportunidade de me escrever, sabem que estou a falar verdade. Posso não ter muito tempo e, por isso, não consigo ser tão assídua quanto gostaria. Se tivesse tempo não deixaria passar tanto tempo sem saber dos amigos de quem deixo de ter notícias durante um espaço de tempo - o que tantas vezes me deixa intranquila.

Sou assim, próxima. Mas... não me peçam que vos trate por tu.

Mas, quem assim me trata, continue, por favor. A sério. Numa nice.

*

As fotografias são todas de Helmut Newton. 

sábado, dezembro 15, 2012

Como é bom o amor em Paris (e como pode ser triste o regresso a Lisboa)






Lembro-me de um dia, lembro-me tão bem como se fosse hoje, em que aquele que o meu coração mais amou tinha uma reunião numa segunda feira. Arranjou maneira de ir logo ao fim da tarde de sexta feira e levou-me com ele. Nunca eu tinha estado em Paris. Que emoção. No aeroporto fingimos que não nos conhecíamos não fosse o diabo tecê-las. Mas depois, ah que deslumbramento, namorados clandestinos, só nós dois contra o resto do mundo, um amor tão doce.




Protegidos da rotina, protegidos do lado aborrecido da vida - a mulher teria o lado oficial, o papel passado, mas eu e ele tínhamos o namoro, a paixão nunca totalmente concretizada, a que clamava sempre por uma próxima vez - vivemos Paris, a cidade do amor, como se vivêssemos um sonho. Passeámos, fizemos compras, foi lá que ele me ofereceu aquele caso de pele, eu não queria, tão caro, tão caro, uma fortuna, não, não, mas ele fez questão, foi lá também que ele me ofereceu este relógio, mas tanto dinheiro, levo-te à ruína, não quero, mas para que é tanto luxo? Mas ele dizia que eu merecia isso e muito mais, andámos de mão dada, andámos de braço dado como um casal, e isso foi, talvez, o melhor, tanto que eu desejava isso, andar na rua como se fossemos um casal, que felicidade. Fomos à ópera, conheci a biblioteca, fomos a museus. Tanta coisa em tão pouco tempo.

E, de noite, eu era a sua modelo, a sua boneca, a sua dócil criatura.

Tinha-me também oferecido uma lingerie, uma loja que só visto ali para os lados da Pigalle, e quis que eu a experimentasse. Experimentei. Quis que eu deixasse que me fotografasse. Deixei. Podia lá eu negar-lhe algum pedido?




Mas não vou agora fingir que o fiz contrariada. Fiz porque quis. Acedi sempre a tudo porque quis. 

Quando ele apontava a máquina fotográfica na minha direcção parece que eu ficava outra, parece que me desinibia, que me inspirava. De lingerie preta, a fumar, exalando sensualmente o fumo, sentindo-me apetecível, uma irresistível sedutora, oferecendo-me sobre a cama, sobre o sofá, eu tinha um enorme prazer em vê-lo excitado enquanto me fotografava.




Quanto mais ele se descontrolava, doido de excitação, mais eu provocava, oferecendo-me languidamente à objectiva.

Foram noites de grande prazer, não o escondo - porque haveria de esconder?

Enquanto me fotografava costumava pedir-me, ensina-me a arte de amar, ensina-me como só tu sabes.

E eu, de olhos semicerrados - enquanto fazia deslizar vagarosamente a alça do corpete, enquanto deixava antever, devagar, devagar, o seio, aos poucos, aos poucos até ao mamilo - com voz baixa, quase rouca, ia ciciando,


Antes de mais, tem confiança no teu coração de que todas
    podem ser conquistadas; e vais conquistá-las; basta que estendas as redes
Tal como Vénus furtiva é grata ao homem, assim o é também à mulher;
    o homem disfarça mal; ela é com mais recato que alimenta o desejo.
Se aos homens der mais jeito não serem os primeiros a pedir,
    logo a mulher, vencida, há-de assumir o papel de quem pede.
Na mansidão do prado, é a fêmea que solta mugidos ao touro,
    é a fêmea sempre que relincha ao cavalo de rijos cascos.


E ele, o meu amado, o meu devoto fotógrafo, disparava, disparava, quase sem ver, enlouquecido pela minha voz, pelo meu corpo, pela minha sensualidade.

Pelo menos uma vez por dia, geralmente de manhã e antes de sairmos para jantar, ele colocava-se junto à janela, de pé, e falava com a mulher. Relatava reuniões intermináveis, negociações complicadas, falava das saudades que tinha, pedia para falar com os miúdos, prometia presentes, enviava beijinhos. Eu ouvia com indiferença, e pensava é um filme, mente à mulher para poder estar comigo, prefere estar aqui comigo do que a aturar a vaidosa, a fútil, a palerma da mulher, e sorria, superior, agradecida por ele ser o amante querido que eu tanto amava.




O relógio é este, uso-o sempre, é lindo. Olho as fotografias, estava bonita eu, sentia-me tão irresistível, achava que ia ser tão feliz. Achava que ia voltar muitas vezes para ser feliz outras tantas. Paris. Paris. Que saudades.

Não voltei.

Regressámos a Lisboa na terça feira. Antes de abandonarmos o hotel, quando íamos a sair do quarto, ele puxou-me por um braço. Abraçou-me, beijou-me. Temos que fazer as despedidas agora porque no aeroporto ou no avião não dá, não vá alguém que me conheça ver-me. Aceitei. Beijos apaixonados e abraços apertados e quentes não se podem rejeitar. E feliz como estava, porque haveria eu de rejeitar?

Quando o avião aterrou ele disse-me que a mulher e os filhos o iam buscar e que era melhor não sairmos juntos. Foi uma decepção que tive, porque é que não me avisaste antes?, mas ele encolheu os ombros como se fosse coisa sem importância. Aceitei, estava habituada a aceitar, estava já tão habituada a viver na sombra. 

Penso agora nisto e vejo que toda a minha vida arrastei as sombras como se fossem pesados mantos que me cobrissem.

Ele saíu, não tinha que esperar pela bagagem, levava apenas uma mala que cabia nos compartimentos da bagagem de mão. Eu não, eu tinha uma mala maior, carregada.

Quando me vi no aeroporto sozinha, arrastando uma mala pesada senti-me insignificante, senti uma tristeza. Mas mais triste fiquei quando, indo eu a arrastar a mala, sem ninguém que me ajudasse, o vi abraçado à mulher, de mão dada com um dos filhos, sorridentes, felizes, uma família feliz. Iam a sair do edifício, não me viram e eu fiquei ali parada, sentindo-me um nada.

Fui para a fila dos táxis, já era de noite, e eu ali sozinha. A bela mulher que eu era, tão desejada, tão amada, de repente ali sozinha. Que pena tive, então, de mim.




Cheguei a casa e tão desfeita me sentia que, nesse dia,  nem tive coragem de desfazer a mala. Tinha-me chocado o ar de família feliz, tinha-me chocado a forma como ele se tinha livrado da minha presença, como se eu não tivesse sentimentos. Eu era a outra, a que tinha que se sujeitar a tudo, a que recebia presentes, beijos, noites de amor num hotel e ponto final. Claro que eu sabia que era a outra mas a outra é tão mulher, tão humana, tão frágil, como qualquer outra pessoa, como a mulher legítima. 

Mas nunca lhe falei nisto. Prosseguimos a nossa relação como antes. Sempre consegui disfarçar muito bem o que sinto, sempre calei as minhas mágoas, sempre me contentei com o que me davam, sempre esperançada em que um dia teria tudo aquilo que desejava. Nunca tive.


*

Este texto é a continuação do penúltimo e do antepenúltimo textos. Ainda não dei um nome a esta história nem a esta mulher porque ainda não sei se vai ter continuação. Se vier a ser uma história talvez lhe fique bem o nome Casta Diva e talvez a mulher possa vir a chamar-se Maria Beatriz.

A música é, justamente, Casta Diva de Bellini, aqui interpretada por Cecilia Bartoli.

Catherine Deneuve aqui é retratada por Helmut Newton. Contudo, desconheço a autoria da última fotografia.

Continuo a não identificar o texto em itálico e isso é deliberado.

*

Hoje no Ginjal encerro o ciclo que dediquei a Ernesto Lecuona com dança. O Grupo Corpo dança Te he visto pasar e a música, a voz e os corpos são uma maravilha. Não quererão ir até lá, deitar uma espreitadela?


*

Chove que é uma maravilha. Os campos e as barragens agradecem a chuva que cai com vigor. Vejo-a lá em baixo, contra um fundo escuro, iluminada sob a luz do candeeiro. 

Aproveitem, meus caros leitores, o encanto de um fim de semana chuvoso e frio. 
Desejo-vos um belo sábado!

quinta-feira, dezembro 13, 2012

De que serve a beleza? De que serve a juventude? De que serve a inocência perante o fingimento e a lisonja? (E deixo uma adivinha, a ver se alguém descobre)







E, no entanto, fui, ah se fui, tão requisitada, tão admirada. A minha pele, os meus olhos, a minha boca. Toda eu. O meu corpo.

Deixa-me ver as tuas pernas e eu ria, fazia de conta que me envergonhava e, depois, como se estivesse distraída, mostrava-as. Mas havia em mim sempre um pudor que, de tão bonita que eu era, quase parecia artificial.

Deixa-me fotografar-te. E eu deixava. Não sorrias. E eu não sorria. Sorri apenas com os olhos e eu sorria só com os olhos. Ah que bonita que és. E, tantas vezes o ouvi, que imaginei que assim o seria para sempre.




Senta-te nessa cadeira, ao contrário, apoia os braços nas costas, espreita. Espreita como se me quisesses seduzir. E eu espreitava, sedutora.

Veste agora outra blusa que essa é muito fechada. E eu vestia. Deixa ver os ombros, deixa ver as pernas, deixa antever os seios. E eu, submissa, deslumbrada, a vida inteira pela frente e ainda tantos elogios por vir, tão bons, tanta ternura para receber, tão boa a ternura. 

Cada sorriso que recebia, cada pequena palavra, cada sugestão de prazer era sempre uma promessa de amor eterno, tão ingénua eu. Era uma dádiva, um presente que recebia agradecida.

Ficava triste, desiludida quando percebia que, afinal, era um plano secundário o que me estava reservado mas acreditava que, um dia, iria passar para primeiro plano. Queria tanto, tanto, tanto. Merecia tanto, esforçava-me tanto, fazia tudo o que me pediam.

Vamos ao cinema, e eu toda feliz. Depois do cinema podíamos ir jantar fora e eu agradecida, sim, sim, vamos, mas e se nos vêem? sempre eu com medo. Não vêem porque vamos para um sítio onde ninguém nos vê. E eu ria, sempre agradecida, sempre crédula, sempre submissa.

És a mulher mais bonita que já conheci, apetecia-me ficar a vida toda a olhar para ti, tão linda, tão linda, e eu lisonjeada, inocente, a alma acariciada. E essas palavras valiam por mil alianças, por mil papéis passados. As outras têm o resto, eu tenho o amor verdadeiro, a paixão, pensava eu.  Elas não são exigentes, contentam-se com tudo. Eu não, eu tenho a melhor parte. E iludia-me, iludia-me sempre.




Eu tinha, então, vinte anos e a minha pele era luminosa, os meus olhos sorriam, o meu corpo resplandecia.




Depois, eu tinha trinta anos um corpo firme, um ventre liso, uns seios firmes, uns lábios sorridentes, um cabelo brilhante. E tantos sonhos. Um grande amor, uma casa, uma família, sonhava eu. Mãe, vais ver, vou ter tudo, viagens, um jardim, uma laranjeira. E filhos também, mãe. Tantos sonhos.




Depois, eu tinha quarenta, uma pele mais espessa mas ainda macia, uns seios cheios, umas curvas mais pronunciadas, o cabelo ainda sedoso, com um suave ondulado, uns olhos que às vezes já se assustavam. Tão bonita que és, as mulheres mais maduras são melhores. E eu acrescentava, e tolerantes, e pacientes e o telefone tantas vezes sem tocar e o sofá tão frio e o espelho a começar a revelar as marcas do tempo. Vamos passar o fim de semana fora, tenho que ir em serviço. Clandestinos sempre, mas tão excitante isso, e tenho o melhor, tenho a vitalidade, o arrojo, o grão de loucura e um dia terá coragem e um dia será meu. E depois que já não podia ser, que aquilo não estava certo, que a mulher e os filhos e a família e tudo. E outra despedida. Tantas despedidas, tantas desilusões.




E depois eu já tinha cinquenta e quase já não conseguia sonhar e o cabelo tão sem vida e o olhar tão sem brilho e os lábios tão já sem sorrisos e os seios já tão inúteis e as pernas tão já sem graça. Tens um charme especial, não há outra como tu, e eu ainda a tentar acreditar, e, depois, nova desilusão, e tanto cansaço já, tanta descrença. E a casa tão vazia, sempre tão vazia, e os meus ombros tão abandonados, e eu tão já afastada de tudo, de todos. 

Passaram os anos. E o tempo, como um mar forte e desatento, foi deixando as suas terríveis marcas. Onde está aquela que fui, tão bela, tão desejada? Onde estão os que me cortejaram, agraciaram, amaram, os que percorreram o meu corpo? Onde estão? Onde estão que me deixaram aqui sozinha?

Desloco-me até à janela, escondo-me atrás da cortina, espreito a rua. Protegida da luz fria, coberta pela penumbra que me acolhe, digo em voz baixa as palavras que, antes, a brincar, dizia como se ensinasse aqueles que diziam amar-me:


Tens de fazer o papel de quem ama e aparentar, por palavras, que estás ferido;
    procura ser convincente, seja de que modo for;
não é custoso acreditar em ti; qualquer uma se julga merecedora de amor;
    por má que seja, não há nenhuma a quem não agrade a sua beleza.
Muitas vezes começa, porém, o fingidor a amar de verdade;
     muitas vezes, aquilo que no começo, simulara ser, veio a sê-lo mesmo.
Mais ainda por isso, ó mulheres, tornai-vos fáceis àqueles que fingem!
    Há-de transformar-se em amor autêntico o que era, ainda agora, simulação.
É, então, hora de cativar o coração, sorrateiramente, com palavras meigas,
    tal como galga a água corrente a ladeira da margem;
não hesites em louvar-lhe o rosto, os cabelos
    e os dedos esguios e o pé delicado;
dá deleite, mesmo às mais castas, o pregão da sua beleza;
    as donzelas cuidam da figura e ela dá-lhes prazer.


Sei bem de cor estas palavras, sei bem, tantas vezes as disse. Ensinava a arte de amar, eu, eu que julgava saber a arte de amar, eu tão ingénua, tão afinal sem nada saber, sem nada ter. De que vale a beleza do corpo quando ela é tanta que ofusca tudo o resto? De que vale a juventude quando é tão efémera? De que vale a esperança quando é tão perecível?

Quase sem querer, como um autómato demente, continuo em surdina,


Se me perguntas quanto tempo deve ela queixar-se, magoada, pois que seja curto,
    não vá a raiva reunir forças, à custa da demora excessiva;
que os teus braços lhe envolvam, de pronto, a alvura do colo,
    e acolhe o seu pranto no teu regaço;
dá-lhe beijos enquanto chora, dá-lhe a experimentar os prazeres...


Mas interrompo-me, ninguém me ouve, nenhuns braços virão para me envolver, nenhuns beijos virão afastar os meus prantos. Tanta a demora, tão excessiva a demora.

Já não tenho a quem ensinar, eu que nada sei. Vazia. Vazia eu numa casa vazia, tão fria, tão escura. Vazia. 

Olho-me no espelho enevoado. Procuro uma companhia nem que seja a companhia daquela que me olha no espelho. 




Choro. E a mulher que me olha chora também. Tem vinte, trinta, quarenta anos, não sei, mas chora como eu. Trazia já a solidão no olhar. A minha vida perdeu-se algures por aí e eu não dei por nada.


*

Este texto é a continuação do que escrevi ontem (e, aos que me preferem num registo mais animado, não sei o que dizer, talvez apenas que isto tem dias...). 

A música é Baby, I'm a fool e é, uma vez mais no Um Jeito Manso, Melody Gardot.

Catherine Deneuve aqui é fotografada por Jeanloup Sieff, Richard Avedon (a antepenúltima) e Helmut Newton (a penúltima). Não conheço a autoria da última.

Não identifico o texto transcrito, a itálico. Deixo para que adivinhem.

*

Como escrevi nos comentários de ontem não me foi possível hoje nem responder aos comentários - e tanto que o queria fazer, tão interessantes e generosos eles são - nem escrever no Ginjal, facto pelo qual me penitencio. Aceitem, por favor, as minhas desculpas. Tentarei fazê-lo amanhã.

E, por hoje, nada mais. Apenas, ainda, desejar-vos um dia muito feliz.