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terça-feira, fevereiro 09, 2021

Ele todo na levezinha e ela nas profundidades. E eu aqui.

 



Devo dizer que o dia de hoje foi mais simpático. 

No entanto, acordei cedo demais. O meu marido, que é madrugador, acordou antes de tempo e, desta vez, sem querer (acho eu que foi sem querer...) acordou-me. Tentei adormecer mas comecei a pensar no que tinha que fazer durante o dia. Fui ficando mais desperta. Depois ouvi uma chuvada das valentes. Era de tal ordem que tive dúvidas de que fosse mesmo chuva. Nessa altura já o meu marido tinha saído para a sua caminhada pré-matinal. Quando estava a tentar adormecer, uma mensagem. Não é normal receber mensagens tão cedo. Era uma mensagem de voz no whatsapp. Uma voz simpática, num tom saltitante, dava-me conta de que tinha o trabalho quase feito e que contava enviar-me entre hoje e amanhã. Fiquei estupefacta. Pela cabeça de quem é que passa acordar uma pessoa àquela hora para dizer uma coisa que poderia ser dita uma ou duas horas depois? Voltei-me para o lado a pensar que há gente que parece que vive noutro fuso horário. Mas, pronto, a voz simpática atenuou a contrariedade. Penso que até devo ter sorrido.

Com isto, decidi levantar-me. Mas pensei que ia andar o dia todo cheia de sono. Afinal, por acaso, não. Estive na boa. O tempo levantou um pouco. Quando fomos fazer a nossa caminhada da hora de almoço até o sol espreitava. E ver o sol traz-me ânimo novo. Despi o casaco e subi as mangas da blusa. Gostei, parece que tinha avistado um mundo novo.

Ao fim da tarde, antes que ficasse noite, convenci-o a vir dar uma volta pelo lado de lá, por fora, pela orla das hortas. Não queria, que era tarde, que não tinha grande jeito andar por ali àquela hora, que esta mania minha de me meter pela penumbra adentro.... Claro que não disse assim, penumbra adentro. É muito pão-pão, queijo-queijo, ele. Linguagem a atirar para o poético não é com ele. Mas estava mesmo a apetecer-me apanhar ar, respirar o tempo que está para chegar. 

Como é óbvio, a grande maioria dos vizinhos não tem horta coisa nenhuma. Mas, surpreendentemente, surpreendentemente mesmo, vimos uma capoeira. Galinhas, galos. Parecia que estava no campo. Uma coisa do além... Chamei o meu marido. Não se empolgou. Eu sim. Quase não estava a acreditar no que estava a ver. Parece que ainda nem estou bem em mim. Qualquer dia, ainda acordo com um galo a cantar. Seria a maravilha das maravilhas.

Entretanto, recebi uma chamada. E, enquanto estava concentrada ao telefone, ouvi um sonoro, 'Boa tarde!'. Espantada, olhei. Era uma vizinha na sua varanda, lá ao longe, acenando com o braço. O meu marido retribuiu também sonoramente. Quando acabei a chamada perguntei quem era, se conhecia. Que não, claro, que aqui é isto, se ainda não aprendi que aqui as pessoas cumprimentam-se sempre. E é. Volta e meia, distraída como sou, quando me cruzo com alguém e ouço um bom dia, olho admirada pensando ser alguém conhecido. Mas não, desconhecido. Também há uma coisa: como sou míope, nunca vejo bem as pessoas. Não vejo ou não presto atenção, não sei. No outro dia, ao passarmos por uma casa, o meu marido disse que era ali que morava aquele casal com que às vezes nos cruzamos. Não sei de quem fala. Ele diz que não se admira, que ando sempre noutra. 

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Tenho ainda a dizer que, entretanto, enquanto estava aqui a escrever, recebi um mail de uma pessoa que me dizia que tinha urgência em falar comigo. Obviamente, atendi a urgência. E foi um longo telefonema do qual se pode dizer que de um arco emocional se tratou. Começou por me falar de uma pessoa que morreu, meia idade, saudável, em duas semanas foi-se. O abalo, a tristeza, o espanto. Como foi possível? Estava positivo mas pensava que estava bem, uma febre apenas, nada de mais. Afinal estava sem oxigénio e sem dar por nada. Ou seja, afinal estava quase a morrer. Daí, do desconcerto do que é esta maldita covid, passou para as hostilidades com um colega, a ponto de quase terem andado à pancada. Descreveu as zangas, as deslealdades, a arrogância do outro. Essa a verdadeira razão da urgência. Depois passou para a sua vida, para as suas dúvidas, para as suas convicções. Depois, nem sei como, para a risota. Por fim, acabámos combinando uma estratégia. 

Quando acabei, escrevi um mail como tínhamos combinado pois o desenrolar da estratégia requer mais um a bordo.

Agora cá estou, de novo. 

E só para verem como eu sou, uma maria desmiolada, ouçam agora esta. Tinha visto dois vídeos e tinha pensado partilhá-los convosco. Gosto de entrevistas, ao vivo, em vídeo ou por escrito. Desta vez, duas pessoas tão diferentes uma da outra. Tom Jobim, boa onda, leve, leveza, alegria e suavidade. E Clarice Lispector, toda coisa de dentro, insondável, espanto, intensidade contida, uma vida para além do compreensível. Estou em crer que o da Clarice Lispector já aqui o partilhei uma vez. Mas acho-o tão fantástico que me apetece aqui tê-lo de novo. É bom escutar o que pessoas assim têm para dizer mesmo que não seja nada de mais, mesmo que seja apenas o que, naquele instante, lhes ocorreu ou apeteceu dizer.

E a minha ideia era falar sobre o que eles dizem e ir intercalando com as fotografias que fiz enquanto olhava a lareira que me aqueceu a tarde. Mas agora já não faz sentido. Fico-me por aqui mas vocês podem ficar com eles. Está bem?


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Fotografias de Paolo Roversi da série Birds na companhia de Yo-Yo Ma e James Taylor

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E tenham, V.Exas, um dia feliz

quinta-feira, outubro 20, 2016

A voz (debochada) da sabedoria


Eu conto. 
Mas, antes, vou pôr aqui uma musiquinha boa e umas fotografias maneiras.



Vamos lá, então.

Podia falar do sexo oral que Madonna promete a quem votar em Hillary Clinton. Mas, como acho que é capaz de ser uma falsa promessa e não quero denunciar publicidades enganosas por parte de opositores a Trump, não falo.


Também podia falar da descarada da Maria Luís, ex-Miss Swaps, actual Miss Arrows, que é do mais desavergonhado que há. Mas, como não quero gastar o meu requintado latim com tão desqualificada criatura, não falo.

Claro que podia falar do Secretário de Estado Rocha Andrade que tem uma atracção fatal para armar fuzué e, no meio da confusão, dar tiros nos pés. Mas não falo pois até me dizem que é um bom fiscalista e gente séria -- e que uma pessoa possa ter algumas incompatibilidades declaradas não me choca nada. Agora uma coisa é certa: se ele é bom e o quer manter, António Costa devia mantê-lo na casota. Já se viu que, quando sai e abre a boca, arranja sarilho.


Há ainda também o assunto do ordenado do presidente da CGD que é um valor que, muito sinceramente, me parece um bocado estúpido num banco público e, sobretudo, me parece um bocado deslocado face à média de ordenados de quadros qualificados do País. Mas não sei se não arranjaram quem aceitasse ir para lá por menos e, por isso, para não alimentar populismos, não falo.

Podia falar do Pedro João Dias, a quem tratam por 'Piloto', esse desconhecido que anda perdido pelos montes, talvez ferido, talvez esfaimado, talvez acossado pelos lobos selváticos que o habitam. Mas não falo. Nada sei da vida dos lobos.


Enfim. Podia falar de muitas coisas. Mas hoje estou cansada. O dia não foi pêra doce e todos os dias desta semana começaram cedo demais. Já aqui estive a dormir. Há ali em baixo uns comentários de primeiríssima água e eu queria mesmo falar sobre eles. Mas acreditem. Isto hoje não está fácil. Talvez amanhã o faça. Hoje é impossível.

Por isso, se me permitem, vou pela via mais fácil.



Vou ouvir gente sábia. Isso descansa-me o espírito. Transcrevo excertos e de forma não sequencial:


Aos 66 anos de idade, morando em um apartamento em Copacabana, de frente à avenida Atlântica, o velho Nelson [Rodrigues] apresenta-se com o mesmo tom debochado e exagerado de sempre. Impondo a sua presença e aquele seu jeito peculiar e característico de se expressar e de se fazer entender: olhar insondável e apático; voz grossa e embolada; gestos vagarosos e ornamentais como os de um peixe colorido num aquário. Sem deixar, portanto, de esboçar certo entusiasmo e de exibir uma imagem de opulência física de causar inveja a qualquer um. Apesar de estar com a saúde um tanto quanto abalada, uma vez que ainda se recupera de uma colite ulcerática, doença essa que por pouco não o matou. As palavras tiradas da boca do entrevistado são as mesmas utilizadas em suas crônicas, contos, romances, peças teatrais, e difundidas por outros meios de comunicação (televisão, rádio e periódicos).


J. J. R. — Na sua opinião, o que é a beleza?
Nelson Rodrigues — “A beleza interessa nos primeiros quinze dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual”.
J. J. R. — E o que dizer acerca das mulheres?
Nelson Rodrigues — “Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”.
J. J. R. — Sobre a adúltera?
Nelson Rodrigues — “Não existe família sem adúltera” — responde com ironia. E continua com as suas divagações: — “Nenhuma mulher trai por amor ou desamor. O que há é o apelo milenar, a nostalgia da prostituta que existe na mais pura”. — Olhando atentamente para o repórter: — “A prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira”. — E mostrando o dedo indicador: — “Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém”.
J. J. R. — Algum recado para as mulheres?
Nelson Rodrigues — “Era preciso que alguém fosse de mulher em mulher anunciando: ser bonita não interessa, seja interessante”.
J. J. R. — E para os homens?
Nelson Rodrigues — “Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela”.
J. J. R. — E para os casais, alguma dica?
Nelson Rodrigues — “A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: — o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão”.
J. J. R. — E no que diz respeito à sexualidade humana?
Nelson Rodrigues — “Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.


J. J. R. — Falemos agora da virtude e daqueles que o praticam?
Nelson Rodrigues — “Perfeição é coisa de menininha tocadora de piano” — expondo-se, exultante. — “O puro é capaz das abjeções inesperadas e totais e o obsceno, de incoerências deslumbrantes”. — Reflete por alguns segundos e despeja: — “Não acredito em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera”. — Toma fôlego e dá prosseguimento ao raciocínio: — “O ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu”. — E numa alegação afirmativa: — “Falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida variedade do vigarista”.
J. J. R. — E a Europa? E o europeu?
Nelson Rodrigues — “O europeu ou é um Paul Valéry ou uma besta!”. — Continuando a frase após breve distração, com coisas e objetos do seu entorno: — “… a Europa é uma burrice aparelhada de museus. (…) Ao passo que o Brasil é o analfabetismo genial!”.
J. J. R. — E com relação às feministas?
Nelson Rodrigues — “As feministas querem reduzir a mulher a um macho mal-acabado”.
J. J. R. — Qual foi, no seu entendimento, o grande acontecimento do século 20?
Nelson Rodrigues — “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”. — Silêncio profundo e grandiloquente. — “Em nosso século, o ‘grande homem’ pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta”. — Outro intervalo, para mais um gole d’água e acender o quarto e, talvez, o último cigarro a ser desbragadamente consumido nesta entrevista. — “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: — ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”.


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Nelson Rodrigues



Dá gosto ver gente inteligente, com sabedoria e graça.

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Portanto, perceberão que mil vezes ler as palavras e ver imagens de Nelson Rodrigues do que perder tempo com a mediocridade (ou, vá, mediania) de tanta gente que por aí anda.

É que, enfim, vocês sabem, eu também poderia agora aqui falar do 3º debate entre os dois candidatos finalistas nas eleições americanas. Mas é tão estranho que um palhaço ordinário seja um deles que também não vou por aí. Não diz se aceita o resultado das eleições se Hillary ganhar...? Pois, nem espanta que seja parvo a esse ponto. É mau demais.


Por vezes -- ou visto de alguns ângulos -- o mundo civilizado parece ter entrado num processo autofágico. Coisa feia de se ver, portanto. Portanto, com vossa licença, mas ficamos assim.

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As fotografias são da autoria do ucraniano Vadim Stein.

Se todos fossem iguais a você é interpretado por Tom Jobim

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira.

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