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sábado, março 06, 2021

Cenas, descasos, cansaços. Mitos. Deuses.

 



Estou aqui com o computador à minha frente há uma porção de tempo e cansada demais para puxar assunto. Vários problemas para resolver ao longo do dia. Por vezes cansa ter uma profissão que, em grande parte, consiste em resolver problemas: ou se vende menos do que se devia, ou há mais gastos do que se devia, ou há alguém a querer abandonar o barco e não queremos que isso aconteça, ou há alguém que queremos contratar e que não se decide a vir, ou há alguém que queríamos ver pelas costas mas que, em vez de sair pelo seu próprio pé, insiste em ficar a arranjar complicações. Claro que, pelo meio, há coisas boas. Mal fora. Mas, por vezes, tanta animação também cansa.

De vez em quando, saturada, aborreço-me. Não sei disfarçar. Sou áspera, dura, mostro escancaradamente a minha irritação. Acontece, por vezes, ao fim do dia, pensar que, se calhar, magoei alguém com as minhas reacções. Ou, quando me aparecem a falar no desagrado de alguém perante algumas decisões, acontece já não conseguir aturar mais chatice. Fico impaciente, digo que já chega, quem não estiver bem que se mude. Não estavam habituados. Durante muito tempo fizeram o que quiseram com os resultados que se viram; e agora, perante medidas duras, a ver se se consegue endireitar as coisas, sentem-se incomodados, não querem aceitar. Quantas vezes me ocorre: que se lixe, que vão ao fundo com o barco, se é isso que querem. Mas dura uma fracção de segundo -- logo reajo e vou à luta.

Hoje falaram-me numa pessoa que anda a ter problemas há vários anos, burnouts, depressões, baixas. Não reconhece que tem problemas, pensa que os outros é que a tratam mal e que não valorizam as suas qualidades. Na verdade, face a isto, ninguém a quer nas suas equipas pois não se pode contar com ela para nada. Tivemos agora a maior atenção tentando descobrir uma função em que pudesse sentir-se valorizada, função de pouca pressão, função que sentisse como um desafio. Aceitou, aparentemente sem problemas. Pois bem. Para meu espanto, agora apareceu a dizer que não aguenta mais, que nunca esperou que lhe fizessem isto, quer ir-se embora, acha que andou de cavalo para burro, que é demais, que não pode aceitar. E vieram contar-me isto como se fosse um caso perdido, que cenas destas já ela fez mais de cem vezes, sempre num desespero absoluto. E que pouco há mais a fazer se ela não reconhece que tem que se tratar. Mas aí fiquei a pensar: mas uma pessoa neste estado, vai para casa? Sem se tratar? Outro emprego dificilmente vai arranjar. A minha primeira reacção foi mandar tudo à fava, mandá-la a ela ir dar banho ao cão e deixar-nos em paz, que lhe fizessem as contas, se quer ir, já vai é tarde. A minha segunda reacção foi ficar passada com os que lhe dão ouvidos, os que alimentam tamanha pancada. Se lhe dissessem a verdade, as coisas como elas são em vez de andarem a dar troco... Mas a minha terceira reacção foi ficar preocupada, ligar a pedir que a convençam a aceitar apoio, a empresa suportará os custos. E agora estou aqui a pensar nisto. Não deve haver pior doença do que esta das pancadas depressivas. 

E isto tem-me ocupado a mente. Ocupado e cansado. Como se lida como uma pessoa assim? Não sei. Notoriamente, deveria tratar-se a sério, tratar-se até estar boa. Como é possível que uma pessoa assim não perceba que tem que procurar apoio? Como se faz para convencer uma pessoa assim a tratar-se?

Chegou, entretanto, o espelho que encomendei para colocar na salinha-biblioteca que está virada a norte e precisa de luz. Depois de ter estado mais de um mês à procura de um espelho bonito, simples, de bom tamanho e que merecesse o consenso entre ambos, eis que, semanas depois de o ter encomendado e dois dias antes da data de entrega, me ligam a dizer que está esgotado sem indicação de se volta a ser produzido. Portanto, depois de tanta escolha, veio outro qualquer, já não tive paciência para voltar a passar por novo processo de escolha. 

Chegou também, um dia depois, o conjunto de dois cadeirões e mesa para o terraço de onde tirei o vaso gigante. Pensei que iam chegar em má hora, logo debaixo de chuva. Mas eis que tocam à campainha e, quando vou ao portão, entra um brasileiro alto, espadaúdo e belo, com umas jardineiras em que uma das alças estava caída e que, por baixo, tinha uma tshirt de manga curta e com uma abertura, desabotoada à frente, e me pergunta onde deixa a caixa. E eu, hesitante, sem saber o que pensar de tudo aquilo, pergunto: 'A caixa...? Mas qual caixa...?' E ele, apontando a caixa que tinha pousado a seus pés: 'Esta'. Eu, lenta de raciocínio, 'Mas eu estou à espera é de uns cadeirões e de uma mesa'. Ele apontou o desenho que estava na caixa: 'Não é isto?'. E eu, duplamente estupefacta, tentando olhar para a caixa e não para ele: 'Mas vem desmontado?'. E ele, certamente pensando que há clientes burras demais: 'Deve vir'. Pois. 

Não é do ikea, se fosse eu esperaria que viesse tudo decomposto em partículas elementares. Mas, pelos vistos, virou moda. Claro que o meu marido, quando viu a caixa, antevendo que a coisa ia sobrar para ele, perguntou com ar de quem não queria acreditar: 'Isto são os cadeirões e a mesa que encomendaste...?' E vi que fez um ar quase ostensivamente contrariado.

E é isto. A ver se este sábado se pendura o espelho e se montam os cadeirões e a mesa. A ver se também venço o tédio e pego num livro. Talvez consiga disposição para ir arranjar a horta ou varrer o jardim. 

Tantas, tantas, tantas vezes desejei ter tempo, poder descansar, não ter afazeres, ter tempo para mim. E agora que o tenho fico sem saber o que fazer dele. Não estou mais descansada do que estava quando não tinha tempo para descansar. É estranho isto. Por vezes penso: será que as pessoas, quando deixam de trabalhar, ficam assim, desasadas, sem energia, sem saber o que fazer?

Enfim. 

E é isto. Nada mais a dizer.

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Ponho-me a ouvir. Agora é Eduardo Galeano. Gosto de ouvi-lo.

Eduardo Galeano: Mitos, Dios


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As jarras provêm da Vogue e para o acompanhamento musical Mari & Hakon Samuelsen trazem Einaudi Divenire

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Desejo-vos um sábado feliz.
Saúde. Ânimo.

sexta-feira, março 05, 2021

Homens & Mulheres

 



Grande parte da minha vida profissional tem sido passada maioritariamente entre homens. Conheço bem a sua maneira de agir, em geral. Em lugares de gestão ou de poder, a larga maioria, a esmagadora maioria, é de homens. Durante muitos anos eu era a única mulher numa equipa de gestão totalmente masculina. Aliás, toda a sociedade foi, até há não muito, uma sociedade maioritariamente dominada por homens. Se calhar até deveria dizer: até aos dias de hoje. Basta ver a percentagem de mulheres que, por cá, já ocuparam os primeiros lugares da hierarquia de Estado. Se arredondar às unidades, zero. Na Igreja, então, o atraso de vida é ainda maior. Nas Forças Armadas, idem.

No entanto, tenho que reconhecer que, apesar de tudo, tem havido consideráveis avanços. Custa até pensar como, até não há muito, as mulheres não podiam votar ou careciam de autorização do marido para exercer direitos que hoje parecem básicos.

Mesmo se me situar no domínio das artes, ao longo dos tempos, quantas mulheres artistas ocultaram a sua identidade pois também não era aceitável que as mulheres pudessem ombrear com os homens na criação artística?

Como foi possível que os homens exercessem tão absurdo domínio durante séculos é enigma dificilmente explicável.

Com o pretexto da sua maior força física e com notável espírito de corpo, os homens blindaram todo o espaço que tinham ocupado recusando a entrada das mulheres. No fundo, os homens sentem-se intimidados perante as mulheres. Sentem-nas imprevisíveis, destemidas, versáteis, ousadas, persistentes, determinadas e sabem que, perante uma mulher desinibida e focada num objectivo, pouco podem. Temem-nas, não o duvido. Sabem que, além disso, as mulheres encerram mistérios, sabem de manhas ancestrais e sabem fazer uso de forças que lhes nascem das entranhas. Os homens temem as mulheres por tudo o que elas são.

Podem os homens, nos bastidores, fazer grupo, uns com os outros, fingir que desdenham delas, ensaiar ares de superioridade, gozar com o que dizem ser os seus humores ou hormonas. Mas é tudo disfarce. No fundo, sabem que jamais terão pior adversário do que uma mulher que lhes faça frente.

Pretextos, enredos, intrigas, tudo tem servido para manter as mulheres a bom recato, inofensivas à força. Quando penso que tempos houve em que o sangue menstrual era pensado como impuro, motivo de repulsa, motivo para o afastamento das mulheres... Como é possível? Impuro o sangue que sai do ventre de uma mulher? Como pode ser impuro? Quando penso que talvez ainda hoje se preterem mulheres para algumas funções por poderem ter filhos, afectando a sua produtividade... Como é possível...? Há lá mérito maior do que poder gerar uma vida? Como falar de improdutividade a propósito de alguém que produz uma vida? 

Só por ignorância, obscurantismo ou muito medo alguém pode pensar assim. 

Gostava de ainda poder ver, no meu País, uma mulher como Primeira-Ministra ou como Presidente da República. Ou, no mundo, uma mulher como Papisa, talvez não entre os luxos do Vaticano mas num lugar modesto.

O mundo seria um lugar tão mais de paz, tão melhor, haveria tanta mais criatividade e generosidade se houvesse mais mulheres em lugares de poder. 

Eu sei que a própria palavra 'poder' tem más conotações, como se fosse sinónimo de ganância, prepotência, nepotismo, coisas que tais. No masculino, de facto, muitas vezes é bem assim, Mas 'poder', no sentido que aqui refiro, significa apenas influir ou determinar o rumo das coisas. 

Por isso, foi com particular prazer que ouvi as palavras de Eduardo Galeano no vídeo abaixo. E a música que acompanha as palavras também é de se lhe prestar atenção.


La vida según Galeano



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Fotografias de Alba Yruela ao som de O viridissima virga, Hildegard Of Bingen

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Uma boa sexta-feira.

sábado, janeiro 16, 2021

Um montão de gente, um mar de fogueirinhas

 




¿Qué poemas nuevos fuiste a buscar?
Una voz antigua de viento y de sal
Te requiebra el alma y la está llevando
Y te vas hacia allá como en sueños

As calças são quentinhas, pretas. Umas meias pretas bem quentes a ver se mantenho os pés quentes. Não tenho pantufas. O meu marido diz: tens tantas porcarias... mas depois não tens as coisas mais vulgares. Nunca quis usar pantufas. Agora, nestes dias frios, sentada durante grande parte do dia, se calhar umas pantufas davam jeito. No outro dia, quando fui a decathlon andei a ver se descobria alguma coisa que pudesse servir de pantufas. Debalde. O meu marido sugeriu umas botas para a neve. Nem dei troco. O mais adequado que encontrei aqui em casa foi uma espécie de chinelos ou tamancas, nem sei classificar, em que a parte de cima é de feltro. Mão sei como vieram cá parar -- ou melhor: como foram parar à outra casa. Se calhar, alguém achou que era coisa de que eu precisava e me ofereceu, talvez há cinquenta mil anos. Guardei. Vieram, pois, da outra casa. Novas. Então é isso que tenho calçado. 

Mas isso é da cintura para baixo. Da cintura para cima é outra loiça. Cuido do que se vê na videoconferência. Faço um smoky nas pálpebras superiores, ponho um gloss nos lábios. Uma blusa quentinha, com gola larga, descaída. Toda branquinha. Por cima, uma espécie de túnica em jersey de lã, também branca mas com umas e outras flores em rosa e verde. E uns brincos brancos. 

A meio da tarde, estava sem reuniões e vi que estava sol lá fora. Então, peguei no computador e fui. Estava um calorzinho bom. Comecei por tirar a túnica. Calor ao sol. Tirei a blusinha de baixo. Fiquei só com o top de licra de alcinhas, branquinho, claro. E ali estive bem um quarto de hora. Soube-me que nem ginjas. E foi vitaminha d, directinha. Dizem que combate o corona. Pode ser.

E ainda fui a correr a casa buscar a máquina: as rosinhas em volta do pinheiro estavam radiantes, doidas de luz e alegria. De todas as cores. Um milagre ou uma coisa mágica, nem sei como definir. Perfumadas, perfumadas. 

E ainda há flores na buganvília, vibrantes de lindas.

Quando entrei em casa, tive que vestir tudo rapidamente, estava bem mais frio que na rua, ao sol. Fiquei rapidamente apresentável.

À hora de almoço veio cá a anterior proprietária. Ao ver a laranjeira, disse: São doces, não são? E contou-me que fazia laranjas às rodelas caramelizadas. Com açúcar mascavado, disse ela. Eu, que adoro tudo o que tenha a ver com laranjas, incluindo as próprias laranjas, fiquei logo com vontade de fazer. Mas não tenho açúcar mascavado. Nem pau de canela. Ela não disse mas imagino que fique melhor com pau de canela. E talvez com um cheirinho de ginja de óbidos. Não sei como dar a volta ao texto mas a laranja caramelizada não me sai da cabeça, em especial a casca. Casca de laranja caramelizada deve ser uma maravilha. E comer um pouco de chocolate preto ao mesmo tempo...? Caraças, deve ser insuportável de bom.

Estava sem saber o que fazer para o jantar. No outro dia, no supermercado, resolvemos trazer uma piza congelada. Ao escolher, vimos uma caixa que tinha duas. Vegans. Pensei que era bem pensado. Como deitámos fora a caixa, não vi que ingredientes tinha. De certeza uma base de espinafres e também cogumelos. Mas tinha outras miudezas. Então fiz assim. Aqueci bem o forno. Entretanto, sobre folha de papel de alumínio, parte brilhante em contacto com o alimento, coloquei a piza sobre. E mandei o vegan às malvas. Sobre o que estava, coloquei uma farturinha de mozarela ralada. Depois cortei a ponta de uma alheira e espremia-a colocando o recheio, aos bocados, sobre o queijo. Depois, tinha tomatinhos cherry e coloquei-os às metades. Polvilhei com orégãos, reguei com fio de azeite e fio de mel. Foi ao forno, na posição calor em cima e em baixo a 170º. Quando vi que já estava com ar quase cozidinho, mudei para a posição grill e dei-lhe o toque final. 

Digo-vos. Estava mesmo boa. Acompanhámos com salada de alface. No fim um diospiro. E, por cima, um quadrado de chocolate negro com caramelo. 

Quando acabar esta brincadeira da covid devo estar uma bolinha. 

O que me vale é que, quando cometo destes deslizes, intercalo com um jantar só à base de chá e fruta. Uma maçada isto de uma pessoa estar naquela idade em que tudo o que come de bom se transforma em peso a mais. Não sei quanto peso mas, cá para mim, já devo estar, outra vez, nos sessenta. Anos e anos a fio com cinquenta e um. Depois, mais tarde, cinquenta e cinco. Depois, upa, upa, cinquenta e sete. Cinquenta e oito, estaria bem. Mais do que isso, já há pneu no pedaço. Nem me peso para não ter dissabor.

Quanto ao resto, campanha presidencial, números covid, confinamento, nada a dizer: mais do mesmo. Tudo muito pouco entusiasmante. 

Pouco entusiasmante é também o estado em que estão os hibiscos e a trepadeira que no verão dá copos bonitos: tudo com as folhas murchas, cozidas, queimadas. Frios excessivos pela madrugada. Disse-me a anterior proprietária que, quando vinham frios assim, cobria arbustos e vasos com uma tela que deixa passar a luz mas protege do frio. São sensíveis estas belas flores. Claro. A beleza é sempre dada a sensibilidades. Tenho que tentar descobrir onde se arranjam essas telas. Ela arranjou-as no Jardim Botânico da Ajuda. Mas agora, confinados, duvido que esteja aberto. Será que no Leroy...? Tenho que explorar. Quando desconfinar.

A perspectiva de mais um fim de semana sem família, sem nada que fazer, é uma coisa muito estranha. A ver se consigo aproveitar o tempo livre. De tudo o que tenho dificuldade em aprender, isto é onde me estampo mais ao comprido. Não aprendo nem por mais uma. Pelo menos, a ver se consigo pegar num livro. Que coisa mais absurda.

Parece que não sei fazer a coisa mais básica: aproveitar o tempo. No fundo, aproveitar a vida por mim própria. Simplesmente isso.

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Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.

Eduardo Galeano - O mundo


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E que o sábado vos seja bom
Saúde. Alegria,

sábado, setembro 23, 2017

O cavaleiro da luz








Em 1895, quando abandonava a infância, Albert Einstein teve uma visão que lhe abriu portas desconhecidas: sonhou, ou imaginou que cavalgava pelos céus montado num raio de luz.

Alguns anos depois, estas portas conduziram-no à teoria da relatividade e a outras iluminações.




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O texto é de Eduardo Galeano em 'O caçador de histórias'

Béatrice, 1897 e The Birth of Venus, 1912 — Odilon Redon
The Cosmos -- Hee Choung Yi

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