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segunda-feira, setembro 13, 2021

Um dia normal da minha vidinha, um dia triste para o País

 


Saímos muito tarde do campo. Só vi as imagens da cerimónia de adeus a Jorge Sampaio à meia noite ou quase, nem sei. Momentos muito dignos e muito emotivos. Do que vi, em especial nas palavras dos filhos, pareceu-me que houve uma autenticidade e uma clareza que honraram a memória de Jorge Sampaio não apenas enquanto figura pública mas também enquanto pai, certamente um pai muito querido.

Vi ali uma dimensão superior que não é muito habitual. Parece que, de repente, se sentiu uma convergência no sentido de uma escala de altos valores morais, éticos, cívicos, bem acima das pequenas irrelevâncias que parecem corroer o quotidiano da vida social e política em Portugal.

A organização do espaço, um certo distanciamento a que a covid obriga, a contenção e, ao mesmo tempo, a emoção que perpassava por todos parecem ter contribuído para que a despedida a Jorge Sampaio tivesse sido um momento ímpar.

Perante estes momentos e perante a saudade que ele nos deixa, pouca vontade tenho de falar das minhas coisinhas. 

Mas a vida da gente é também a vida de todos os dias, a vidinha, a nossa vidinha. E este blog é apenas o despretensioso canto para onde venho ao fim do dia para descansar a cabeça. 

Por isso, apesar de sentir o peso emocional da partida de um homem bom que era uma referência da defesa da democracia, da liberdade, da inclusão, do respeito pela dignidade e do direito ao futuro, vou escrever algumas palavras sobre o meu pequeno dia.

Arranjámos duas pequenas plataformas com rodinhas e porque devo ser casada com um hércules de verdade, ele conseguiu levantar o bisonte em peso enquanto colocávamos as ditas plataformas por baixo. E assim, com o bisonte montado num carrinho, levámo-lo caminho afora até à casinha das ferramentas. 

Só que cometi um tremendo erro. Estava incumbida de medir o animal e a porta da casinha por onde deveria entrar. Concluí que passaria à justa. Contudo, lá chegados, percebemos que qualquer coisa não estava bem. Medi o corpo do animal e porque à vista desarmada se via que a base e o tejadilho eram mais largos, medi o que estava mais à mão: a base. Só que, hélas, o tejadilho tem mais dois centímetros que a base. Portanto, missão abortada.

Uma vez mais o meu marido tinha uma solução: desfazermo-nos do pouco-amado guarda-fatos. Mas eu não desisto assim tão facilmente. 

Pensei, então, em colocá-lo no quarto do estúdio. Para isso, ter-se-ia que retirar o pequeno roupeiro que lá estava, o que era do quarto da minha filha quando era miúda, que iria, esse sim, para a casa das ferramentas. 

E foi o que fizemos. Foi uma empreitada pesada, a la Ilha de Páscoa. O meu marido, sempre com medo que me dê algum fanico, está o tempo todo a mandar-me não empurrar, não levantar, não puxar, não fazer força. Por isso, para além de empurrar, levantar, puxar, carregar, estou sempre a ser impedida de fazer o que me apetece ou, pior, a ser admoestada.

Mas fez-se.

A arca, a famosa arca, está a esta hora na mala do carro. Tivemos que rebater os bancos. Agora era tarde e estávamos exaustos e cheios de fome, já não deu para tirá-la do carro.

De lá, da arca dos mil tesouros, saiu um grande e quentinho cobertor, vários naperons de renda e lá continuam lençóis e toalhas e renda e bordados, parte dos quais, provavelmente, do enxoval de tias há muito falecidas.

Entretanto o 'tasker' que ia montar o roupeiro no nosso quarto e outas insignificâncias e que estava escalado para as dez da manhã, apareceu às cinco da tarde. E, em vez de trazer um ajudante, apareceu sozinho. Portanto, em desespero de causa, o meu marido acabou a montar sozinho duas das peças cuja montagem pagámos ao tasker e, ainda assim, acabámos por sair de lá à hora a que deveríamos estar aqui, banhos tomados, jantares despachados. Um desespero.


Antes de sairmos ainda lavei o chão das divisões por onde o artista andou e arrumámos parte das roupas no novo e alvo roupeiro. Mas a casa ficou longe de ficar bem arrumada. Não gosto nada de sair e deixar a casa sem ser como gosto de vê-la ao regressar: tudo limpinho e arrumadinho. Mas estávamos cansados, com fome, com a viagem pela frente. Coração ao largo.

Mas o quarto está outro. Parece que cresceu. E é agora um lugar de serenidade e leveza. A diferença que faz ter as divisões com móveis escuros ou com móveis claros. A nossa disposição, queira-se ou não, ilumina-se. Acho que o guarda-fatos, que agora navega noutras paragens, não vai escapar a, um dia destes, ser pintado de verde claro ou de cor-de-rosa suave, pó de giz (quiçá até às cores).

Sobre duas das pequenas outras peças que vieram para além do roupeiro falarei noutro dia: cada uma tem um uso atípico e, diria, algo arriscado. Mas não digo nada. Talvez mostre fotografias daqui por uns dias.

Esta segunda-feira retomo a rotina pré-férias e talvez consiga ter uns dias mais descansados. Não sei se posso dizer que tive férias mas, nestas coisas, é mesmo assim: cada um tem aquilo que merece.

E, por ora, é isto. 

Ah, só mais uma coisa: ao telefone com a minha mãe, disse-me ela com voz embargada, certamente com os olhos cheios de lágrimas: 'Se o teu pai ainda fosse vivo, fazíamos hoje...' Interrompi-a para ver se não rompia mesmo em pranto: 'Eu sei, faziam anos de casados'. Sinto muita pena por ela, por saber que fica triste por não tê-lo cá para festejar com ela.


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Pinturas de Lucien Freud e uma fotografia dele, em plena acção. Jack Johnson interpreta Gone com Ben Harper

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Uma semana feliz a começar já por esta segunda-feira

sábado, setembro 11, 2021

Jorge Sampaio

 

Logicamente sempre votei no Jorge Sampaio. E não me refiro apenas às suas candidaturas a Presidente da República. A sua visão civilizada, humanista e moderna do mundo sempre me interessou e cativou. 

[Não gosto de obituários ou de palavras de circunstância, em especial em momentos em que há uma quase cacafonia e uma disputa entre os que querem ter a melhor memória, o mais picante episódio, o mais emotivo pensamento. 

Mas também não quero deixar passar a sua partida sem uma palavra de reconhecimento pelo tanto que acho que lhe devo. Por isso, falo. Mas sei que o que disser estará sempre aquém do que haveria a dizer.]

Sempre vi em Jorge Sampaio alguém que olhava a sociedade em geral, quer a nível nacional quer a nível internacional, segundo uma perspectiva ampla, culta, bem informada, inclusiva, disponível para acolher o desconhecido. Jorge Sampaio era um homem com mundo.

Não lhe vi, em toda a sua vida política, um gesto populista, uma palavra que revelasse tacanhez, um olhar sectário, um pensamento menos nobre. A todos ele tratava com respeito. Dava-se ao respeito. Toda a gente lhe tinha respeito. 

Jorge Sampaio dignificava o País. Ao contrário dos que lhe sucederam, muito em especial o que imediatamente lhe sucedeu, Jorge Sampaio nunca nos envergonhou. Sendo uma pessoa afável e próxima, era fácil reconhecer nele a indesmentível superioridade que as pessoas que fazem da elevação moral o fio condutor da sua vida nunca veem negada.

Fotografia proveniente do Expresso

E nas suas funções públicas, quando se fazia acompanhar pela mulher --  e era fácil perceber a estimulante e carinhosa relação que os unia -- algo o tornava ainda mais moderno a meus olhos. A inteligência e independência de espírito de Maria José Ritta dizem muito não apenas do que ela é mas também do que era Jorge Sampaio. Diz-me com quem antes, dir-te-ei quem és. O amor entre eles era uma relação virtuosa e um exemplo de independência e, uma vez mais, de modernidade. 

Havia um conjunto de políticos de grande envergadura intelectual, ética, moral e cultural que eram, em Portual, um garante da defesa dos mais profundos valores democráticos. Um a um têm estado a partir e, para meu desgosto e preocupação, não vejo que estejam a ser substituídos em igual número e, sobretudo, por quem tenha mérito e qualidades equivalentes. 

A cedência ao facilitismo mina os pilares da democracia e ajuda a propagar a mediocridade e, perante maus exemplos, são necessárias vozes que se elevem e denunciem o que for de denunciar. Jorge Sampaio era uma dessas vozes e a sua autenticidade e autoridade moral elevavam-se de forma soberana. 

Tenho pena que essa sua voz se tenha calado. Saibamos honrar a sua memória.


(... e a vida continua...)