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terça-feira, outubro 21, 2014

Milan Kundera, Caliban e a Portuguesa


No post abaixo já desvendei um segredo a propósito dos burros que vivem à babugem do poder. Foi a Lovely Lídia que me contou. Regressou e veio com tudo. Já fazia cá falta e é com alegria que lhe dou as boas vindas.

Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, a conversa é outra. Livros, livros, livros.






Podia dizer o que já tantas vezes aqui o contei, que, desde pequena, era vidrada em livros, que lia os que tinha em casa, os que os amigos dos meus pais tinham em casa, os que havia na biblioteca do liceu, os que encontrava. Lia até altas horas da noite. Acendia a luz da mesa de cabeceira e lia até não aguentar mais ou até a minha mãe desconfiar e vir, pé ante pé, dar comigo a ler e me obrigar a apagar a luz. Pelos anos e pelo natal queria livros (a complementar outras coisas... que também não era propriamente rata de biblioteca) e, mal me apanhei com mesada, preferia comer menos ou comprar menos roupa e embrenhar-me nos alfarrabistas, nos saldos da Bertrand e onde calhasse.

Portanto não é de agora. Mas agora tenho um motivo suplementar: tenho medo de que um dia me aconteça um desaire, que fique desempregada ou assim, ou que aumentem o imposto sobre livros de tal forma que fiquem mais caros que trufas raras, caviar exótico, chanel nº 5, sei lá. E, então, dou por mim quase que a querer açambarcar não vá esgotarem-se e já não poder comprar novas edições, ou que a partir de certa altura, impossibilitada de comprar novos, tenha que me cingir aos que tenha em casa e que já não tenha nada de novo para ler.

Sei que não é razoável ou lógico pensar assim mas há aspectos da minha vida que se regem em contra natura, em contramão, como queiram.

Afogo-me em livros, não consigo dar vazão, mas não consigo deter-me. Parece-me que só o facto de os ter, de os folhear, de ler parte deles já me consola. Depois, aos poucos, aleatoriamente, vou voltando a eles e a muitos deles parece-me que já me são familiares e a esses eu dou saída, avanço por eles dentro. Em relação aos que não me dizem nada, aos que não me agarram o olhar ou o coração, aí dou folga, fica para a próxima.

Hoje o meu marido quis O Capital no Século XXI do Piketty e, por isso, fui com ele mas pensando que ia numa de chaperone. Mas então, fazer o quê? 

Claro que acabei por trazer outros, tentações tão fortes.


Vamos, por favor, com Manuela Azevedo - Carinhoso




[José Peixoto - guitarra clássica; Fernando Júdice - baixo acústico; música de Pixinguinha]




Chegaram ao apartamento de D'Ardelo duas horas antes do início do cocktail. 'É o meu assistente, minha senhora. É paquistanês. Peço desculpa, ele não sabe uma única palavra de francês.', disse Charles, e Caliban inclinou-se cerimoniosamente diante da senhora D'Ardelo, pronunciando algumas frases incompreensíveis. A indiferença delicadamente superior da senhora D'Ardelo, que não lhe prestou nenhuma atenção, confirmou a Caliban o sentimento de inutilidade da sua língua laboriosamente inventada e a melancolia começou a invadi-lo.

Felizmente, logo após esta decepção, um pequeno prazer veio consolá-lo: a criada a quem a senhora D'Ardelo ordenou que se mantivesse ao serviço dos dois senhores não conseguia descolar os olhos de um ser tão exótico. Dirigiu-se-lhe por várias vezes e quando percebeu que ele só conhecia a sua própria língua começou por ficar confusa, depois estranhamente descontraída. Porque ela era portuguesa. Já que Caliban lhe falava em paquistanês, tinha uma rara oportunidade para abandonar o francês, língua de que não gostava, e utilizar apenas, também ela, a sua língua natal. A comunicação em duas línguas que não compreendiam tornou-os próximos um do outro.

(...)

Em seguida Charles afastou-se até ao salão, deixando Caliban preparar as últimas bandejas. Uma rapariga muito jovem, segura de si, entrou na cozinha e virou-se para a criada:

- Não podes mostrar-te por um segundo que seja no salão! Se os nossos convidados te vissem, fugiriam! - Então, olhando para os lábios da Portuguesa, desatou a rir: - Onde é que foste desencantar essa cor? Pareces um pássaro de África! Um papagaio de Bourenbouboubou! - e saiu da cozinha a rir.

Com os olhos húmidos, a Portuguesa disse a Caliban (em português):

- A senhora é simpática! Mas a filha! Que malvada! Disse aquilo porque você lhe agrada! Na presença dos homens, é sempre má para mim! Dá-lhe prazer humilhar-me em frente dos homens!

Nada podendo responder-lhe, Caliban acariciou-lhe os cabelos. 

Ela ergueu os olhos para ele e disse-lhe (em francês):

- Veja, o meu batom é assim tão feio?

Rodava a cabeça para a esquerda e para a direita, para que ele pudesse ver bem a largura dos seus lábios.

- Não - disse-lhe ele (em paquistanês) -, a cor do seu batom é muito bem escolhida...

No seu casaco branco, Caliban parecia à criada ainda mais sublime, ainda mais inverosímil, e ela disse-lhe (em português):

- Estou tão feliz que esteja aqui.

E ele, arrebatado pela sua própria eloquência (sempre em paquistanês):

- E não apenas os seus lábios, mas também o seu rosto, o seu corpo, toda você, tal como a vejo diante de mim, é bela, muito bela...

- Oh, como estou feliz que esteja aqui - respondeu a criada (em português).




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O texto em itálico é um excerto da Quarta parte: Estão todos em busca do bom humor, na sub-parte intitulada 'Os casacos brancos e a jovem Portuguesa' do mais recente livro de Milan Kundera intitulado A Festa da Insignificância numa tradução de Inês Pedrosa.



Sétima parte: A Festa da Insignificância - um outro excerto




As imagens que escolhi para ilustrar o texto são de Sara Sampaio, a bela Portuguesa, e David Gandy que não é paquistanês mas que não seja por isso, está perdoado, é como se fosse.


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Um brevíssimo parêntesis

O que está a acontecer à PT deixa-me quase de rastos. Deixar os mercados à solta e nada fazer, assistir aos abutres a devorarem um corpo vivo é uma coisa que me parece inconcebível. O governelho português lavou as mãos, a CMVM está a ver o sangue a jorrar por todos os poros e nada faz (parece que agora vai proibir as vendas a descoberto, mas de que vale isso agora, quando já quase que só resta a carcaça e um coração latejante?) Uma situação ultrajante e dolorosa, uma humilhação e um rombo tremendo na economia e, a prazo, no emprego, no PIB, sei lá. Custa-me tanto isto que nem me apetece falar.


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Relembro: se quiserem saber a explicação para haver tanto burro à volta do Poder, desçam, por favor, até ao post seguinte.


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Incapaz de reler o que escrevi e, portanto, pedindo a vossa indulgência para as gralhas, fico-me por aqui e desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

(Agora que já começaram os descontos de outono/inverno, eis que entrámos no Verão. Não faz mal. Voltei aos braços ao léu e isso sabe-me bem)


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