Nunca me aconteceu sentir dúvidas existenciais -- e não sei se isso abona ou desabona a meu favor.
Gostava de ser psiquiatra e não fui para não ter que estudar medicina e não quis estudar medicina para não ter que lidar com mortos ou estropiados porque só de pensar nisso já me apavorava. Depois pensei que podia ser psicóloga mas, na altura, havia dúvidas sobre o reconhecimento oficial dos cursos. Não havia internet e o conhecimento não circulava como hoje. Nem me lembro já de como era. Ia-se aos sítios, perguntava-se, tentava-se cruzar a informação. Hoje sei que gostaria de ter exercido qualquer das duas profissões. Mas também arquitectura. Gostava muito de ter sido arquitecta. Na altura nem me ocorreu. Pensei trabalhar numa empresa, Não sei porque não escolhi uns cursos. Tanto me diziam que devia tirar o curso que tirei, que acabei mesmo por ir por aí. Disseram-me que, com aquele curso, podia fazer tudo. Sem saber bem quais as hipóteses e com os meus amigos todos com vocações muito definidas, deixei-me ir. Ia morrendo com o pesadelo que eram aquelas cadeiras e, pior ainda, com o pesadelo que eram os alunos daquele curso. Para mim, entrar para a universidade era alcançar um atamar de liberdade pelo qual tanto ansiava. Queria ir ao cinema, ao teatro, passear, namorar, descobrir tudo o que houvesse para ser descoberto. E, afinal, só me apareciam pessoas que queriam estudar, exclusivamente estudar. Um horror.
Tinha querido sair de casa para viver em absoluta liberdade, travei uma longa e intensa luta com os meus pais para, com dezassete anos acabados de fazer, me deixarem viver por minha conta, e, afinal, tendo acabado por vencer tão dura batalha, não encontrava parceiros para a minha caminhada.
Não sou solitária e, naquela altura, sentia-me tristemente sozinha. Nada naquele tempo me agradava: nem o curso, nem os colegas, nem o sítio onde estava (mais vigiado do que eu admitia), nem o estar longe do meu namorado que naturalmente continuou a viver em casa dos pais e andava a estudar na outra ponta da cidade.
Poderia ter pensado que mais valia mudar de curso, mudar de sítio, mudar tudo. Não me ocorreu.
No entanto, poucos meses depois, o mundo à minha volta mudou. Tudo mudou. A vida é assim, feita de imprevistos que condicionam as nossas circunstâncias.
A minha vida desenhou-se nestes tempos: acabaria por escolher uma variante do meu curso que viria a ser-me muito útil, arranjei outro namorado, arranjei outros amigos, vi teatro e cinema e passeei como se não houvesse amanhã.
Nunca fiz um daqueles testes vocacionais. Acho que um dia ainda vou fazer. Gostava de saber o que poderia ter sido a minha vida se tivesse sabido de outras hipóteses. Não sei se ainda vou a tempo de recomeçar. Não agora mas um dia que tenha o tempo por minha conta. Se pensar em abstracto, ocorrem-me várias possibilidades mas, sendo objectiva, tenho que admitir que já não dá. Só coisas pequenas, só minhas. E nem vale a pena pensar nisso porque a vida vai andando sempre cheia de solicitações, constrangimentos e nós vamos sendo puxados para aqui, empurrados para acolá.

E depois o campo. Tão bom. Mas tanto trabalho. O meu marido queixa-se: tanta luta minha para plantar árvores, para fazer com que vingassem, tanta luta, tanta luta contra as pedras, contra os calores e os ventos, e agora tanta luta para as desbastar, tanta luta para domar o crescimento desabalado da natureza. Podamos e serramos e arrancamos e depois transportamos para o local da queima. É um pedaço de terra que tem tanto de nós. Muito de nós vive ali.
E depois à noite, de novo, a casa cheia. Liguei à minha mãe e, às tantas, disse 'estão a chegar, já estou a ouvi-los' e a minha mãe disse: 'mas como é possível, ao domingo à noite, e agora ainda isso? tu descansa, tira férias' Mas eu descanso junto deles, a casa virada do avesso com as brincadeiras das crianças, com a alegria ruidosa de todos eles. A mesa era tão grande, parecia gigante quando éramos só quatro, e agora já mal chega. O meu marido anda a querer resolver isto, quer que se pense numa extensão para a mesa mas, sinceramente, não estou bem a ver. Doze. Seis estão, de dia para dia, mais crescidos, mais volumosos. Quando vêm mais pessoas já eu fico atrapalhada. Agora estamos para combinar um dia no campo para mais nove ou dez ou doze, nem sei bem. Já ando a pensar na logística. No verão, ainda se montam mesas cá fora mas, com tempo frio, não se pode. Vinte e tal pessoas das quais mais metade crianças é coisa que não pode ser de improviso, como geralmente são as coisas comigo.
Bem. Isto para se ver. É que, francamente, só visto. Não sou de dúvidas existenciais. Só questões práticas deste tipo. Começo o post a apontar para a metafísica e acabo preocupada com a logística comensal. Básica todos os dias, é assim que sou (e, na volta, ainda bem). Não me dou problemas.
E de tal forma estou, capaz é de ir dormir, que agora que aqui cheguei, já depois de ter escrito este big lençol é que me lembrei que, quando comecei, vinha com ideia de falar noutra coisa. Mas é como começar uma nova profissão depois de me reformar: a certa altura do campeonato mais vale tirar daí o sentido. Ou seja, se ainda não falei do que aqui me trouxe, também não é agora que vou começar. Paciência.
Digo só que tinha a ver com a noção de 'casa', de ter vontade de estar em casa, com sentir-me bem em casa, de a minha casa ser uma segunda pele para mim, de haver muito dos outros em mim e muito de mim na minha casa, de haver anjos a vigiarem por mim na minha casa, nesta onde estou agora, na outra onde estive até há pouco. E tinha fotografias de casa para vos mostrar mas também não é agora que vou buscar a máquina para as escolher. Fica para outro dia, não é? E agora chove enquanto escrevo e isso é tão bom.
E de tal forma estou, capaz é de ir dormir, que agora que aqui cheguei, já depois de ter escrito este big lençol é que me lembrei que, quando comecei, vinha com ideia de falar noutra coisa. Mas é como começar uma nova profissão depois de me reformar: a certa altura do campeonato mais vale tirar daí o sentido. Ou seja, se ainda não falei do que aqui me trouxe, também não é agora que vou começar. Paciência.
Digo só que tinha a ver com a noção de 'casa', de ter vontade de estar em casa, com sentir-me bem em casa, de a minha casa ser uma segunda pele para mim, de haver muito dos outros em mim e muito de mim na minha casa, de haver anjos a vigiarem por mim na minha casa, nesta onde estou agora, na outra onde estive até há pouco. E tinha fotografias de casa para vos mostrar mas também não é agora que vou buscar a máquina para as escolher. Fica para outro dia, não é? E agora chove enquanto escrevo e isso é tão bom.
.............................................
Uma vez uma pessoa disse-me que o poema If de Rudyard Kipling era um poema de esperança. Fiquei na dúvida. Apeteceu-me ouvi-lo agora e, ouvindo-o, apeteceu-me partilhá-lo convosco.
----------------------------------------------------------------------------
Uma boa semana a todos, a começar já por esta segunda-feira.