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segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Em vez da metafísica, a logística doméstica e mais não sei o quê.




Nunca me aconteceu sentir dúvidas existenciais -- e não sei se isso abona ou desabona a meu favor.

Gostava de ser psiquiatra e não fui para não ter que estudar medicina e não quis estudar medicina para não ter que lidar com mortos ou estropiados porque só de pensar nisso já me apavorava. Depois pensei que podia ser psicóloga mas, na altura, havia dúvidas sobre o reconhecimento oficial dos cursos. Não havia internet e o conhecimento não circulava como hoje. Nem me lembro já de como era. Ia-se aos sítios, perguntava-se, tentava-se cruzar a informação. Hoje sei que gostaria de ter exercido qualquer das duas profissões. Mas também arquitectura. Gostava muito de ter sido arquitecta. Na altura nem me ocorreu. Pensei trabalhar numa empresa, Não sei porque não escolhi uns cursos. Tanto me diziam que devia tirar o curso que tirei, que acabei mesmo por ir por aí. Disseram-me que, com aquele curso, podia fazer tudo. Sem saber bem quais as hipóteses e com os meus amigos todos com vocações muito definidas, deixei-me ir. Ia morrendo com o pesadelo que eram aquelas cadeiras e, pior ainda, com o pesadelo que eram os alunos daquele curso. Para mim, entrar para a universidade era alcançar um atamar de liberdade pelo qual tanto ansiava. Queria ir ao cinema, ao teatro, passear, namorar, descobrir tudo o que houvesse para ser descoberto. E, afinal, só me apareciam pessoas que queriam estudar, exclusivamente estudar. Um horror.

Razões de sobra para ter dúvidas existenciais não me faltaram.

Tinha querido sair de casa para viver em absoluta liberdade, travei uma longa e intensa luta com os meus pais para, com dezassete anos acabados de fazer, me deixarem viver por minha conta, e, afinal, tendo acabado por vencer tão dura batalha, não encontrava parceiros para a minha caminhada.

Não sou solitária e, naquela altura, sentia-me tristemente sozinha. Nada naquele tempo me agradava: nem o curso, nem os colegas, nem o sítio onde estava (mais vigiado do que eu admitia), nem o estar longe do meu namorado que naturalmente continuou a viver em casa dos pais e andava a estudar na outra ponta da cidade.

Poderia ter pensado que mais valia mudar de curso, mudar de sítio, mudar tudo. Não me ocorreu.

No entanto, poucos meses depois, o mundo à minha volta mudou. Tudo mudou. A vida é assim, feita de imprevistos que condicionam as nossas circunstâncias.

A minha vida desenhou-se nestes tempos: acabaria por escolher uma variante do meu curso que viria a ser-me muito útil, arranjei outro namorado, arranjei outros amigos, vi teatro e cinema e passeei como se não houvesse amanhã. 

Nunca fiz um daqueles testes vocacionais. Acho que um dia ainda vou fazer. Gostava de saber o que poderia ter sido a minha vida se tivesse sabido de outras hipóteses. Não sei se ainda vou a tempo de recomeçar. Não agora mas um dia que tenha o tempo por minha conta. Se pensar em abstracto, ocorrem-me várias possibilidades mas, sendo objectiva, tenho que admitir que já não dá. Só coisas pequenas, só minhas. E nem vale a pena pensar nisso porque a vida vai andando sempre cheia de solicitações, constrangimentos e nós vamos sendo puxados para aqui, empurrados para acolá.

Este meu fim de semana foi bom mas, como sempre, muito preenchido. A minha mãe diz-me sempre que tenho que descansar, ir de férias, ir para longe. Mas não consigo. Estive lá. Gosto de estar com eles todas as semanas. O meu pai tão débil, a minha mãe tão incapaz de se afastar dele e eu, também, tão incapaz de me afastar deles.

E depois o campo. Tão bom. Mas tanto trabalho. O meu marido queixa-se: tanta luta minha para plantar árvores, para fazer com que vingassem, tanta luta, tanta luta contra as pedras, contra os calores e os ventos, e agora tanta luta para as desbastar, tanta luta para domar o crescimento desabalado da natureza. Podamos e serramos e arrancamos e depois transportamos para o local da queima. É um pedaço de terra que tem tanto de nós. Muito de nós vive ali.

E depois à noite, de novo, a casa cheia. Liguei à minha mãe e, às tantas, disse 'estão a chegar, já estou a ouvi-los' e a minha mãe disse: 'mas como é possível, ao domingo à noite, e agora ainda isso? tu descansa, tira férias' Mas eu descanso junto deles, a casa virada do avesso com as brincadeiras das crianças, com a alegria ruidosa de todos eles. A mesa era tão grande, parecia gigante quando éramos só quatro, e agora já mal chega. O meu marido anda a querer resolver isto, quer que se pense numa extensão para a mesa mas, sinceramente, não estou bem a ver. Doze. Seis estão, de dia para dia, mais crescidos, mais volumosos. Quando vêm mais pessoas já eu fico atrapalhada. Agora estamos para combinar um dia no campo para mais nove ou dez ou doze, nem sei bem. Já ando a pensar na logística. No verão, ainda se montam mesas cá fora mas, com tempo frio, não se pode. Vinte e tal pessoas das quais mais metade crianças é coisa que não pode ser de improviso, como geralmente são as coisas comigo.


Bem. Isto para se ver. É que, francamente, só visto. Não sou de dúvidas existenciais. Só questões práticas deste tipo. Começo o post a apontar para a metafísica e acabo preocupada com a logística comensal. Básica todos os dias, é assim que sou (e, na volta, ainda bem). Não me dou problemas.

E de tal forma estou, capaz é de ir dormir, que agora que aqui cheguei, já depois de ter escrito este big lençol é que me lembrei que, quando comecei, vinha com ideia de falar noutra coisa. Mas é como começar uma nova profissão depois de me reformar: a certa altura do campeonato mais vale tirar daí o sentido. Ou seja, se ainda não falei do que aqui me trouxe, também não é agora que vou começar. Paciência.

Digo só que tinha a ver com a noção de 'casa', de ter vontade de estar em casa, com sentir-me bem em casa, de a minha casa ser uma segunda pele para mim, de haver muito dos outros em mim e muito de mim na minha casa, de haver anjos a vigiarem por mim na minha casa, nesta onde estou agora, na outra onde estive até há pouco. E tinha fotografias de casa para vos mostrar mas também não é agora que vou buscar a máquina para as escolher. Fica para outro dia, não é? E agora chove enquanto escrevo e isso é tão bom.

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Uma vez uma pessoa disse-me que o poema If de Rudyard Kipling era um poema de esperança. Fiquei na dúvida. Apeteceu-me ouvi-lo agora e, ouvindo-o, apeteceu-me partilhá-lo convosco.


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Uma boa semana a todos, a começar já por esta segunda-feira.

sexta-feira, agosto 21, 2015

A felicidade é o prazer da existência, a existência como prazer. A felicidade é eminentemente política. José Gil dixit. [NB.: E que não se pense que isto da felicidade agora aqui é para compensar a infelicidade do pénis do post abaixo. Não tem nada a ver.]


Meus Caros, 
Se, no post abaixo, ficaram chocados com a minha história sobre o pénis que pediu aumento, terão agora, aqui, oportunidade de ver que não sou indecente a toda a hora (apenas de vez em quando).
Portanto, desviemo-nos dos pénis reivindicativos e entremos num outro comprimento de onda. Uma onda mais zen. Mas zen à maneira - nas palavras de quem sabe do que fala. Felicidade é o tema. O último reduto.






Paul Klee: " A imagem artística não possui nenhuma utilidade especial. O único objectivo que deve cumprir é o de nos tornar felizes"

A criança que entra no mar, sem ondas e com pé, atira com água, chapinha, grita e ri, ri ao sol -- é feliz. A felicidade não é um estado, psicológico ou outro, nem um sentimento ou uma emoção particular. É uma abertura total do corpo ao espaço, aos outros, ao cosmos. Não é um afecto mas uma disposição para viver todos os afectos da maneira mais intensa. Ela mesma tem a intensidade = 0. Por isso acolhe em si qualquer afecto com as intensidades mais variadas.

Há, no entanto, uma afinidade entre o plano da felicidade e o jorrar da alegria: a felicidade (= 0) favorece o máximo de alegria no tempo mais longo (= ∞, a eternidade). A alegria infiltra-se pela alma dentro e torna as emoções fortes e alegres. Mesmo as mais tristes doem sobre um fundo firme e consistente que a alegria forjou.

(...) Na felicidade não há lugar para a inveja, o rancor, o ressentimento ou a maldade. Estes afectos encolhem o corpo e a felicidade dilata-o. São paixões do 'eu' e na felicidade não há 'eu', apenas o acontecer da existência das coisas. A inveja, o ressentimento cobrem o mundo com um véu único e opaco e enfiam-no no eu, enquanto o jogo das cores, os saltos imprevisíveis da alegria tornam impossível o aprisionamento da vida, expandindo-a.

Porque a felicidade permite a maior intensificação dos afectos, o ser feliz é afectado por todo o tipo de emoções com a máxima vibração. A crueldade do mundo, o horror, o mal mais devastador são vividos com lucidez e compaixão extremas. Mas não o destroem, antes lhe dão forças para os combater: a felicidade, como que esquecida de si, torna-a mais densa, não é exactamente porque ela existe e está ameaçada que a barbárie nos afecta a todos?

A felicidade não resulta do somatório sábio de prazeres. Pelo contrário, ela dá valor aos prazeres, acrescentando ao sentir empírico e não empírico um prazer subtil, o prazer de existir. A felicidade transforma assim todo o prazer em prazer de existir: quando se é feliz, o mínimo prazer dos sentidos adquire a consistência aérea que emana do facto de simplesmente existir. A felicidade é o prazer da existência, a existência como prazer. Assim se funda estético-ontologicamente a felicidade.

Como abertura total do corpo ao espaço, às coisas e aos seres, a felicidade não define um estado de espírito fechado que isola o indivíduo na complacência de um prazer que é só dele. A felicidade abre o indivíduo aos outros, torna-o uma singularidade ligada a outras. É uma promessa de felicidade comum. Por isso a felicidade é eminentemente política.

(...) A alegria do devir.


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O texto é da autoria do filósofo José Gil e faz parte de 'Poderes da Pintura' da Relógio D'Água

As pinturas são, como é bom de ver, de Paul Klee.

A música é Once Upon A Time in The West   (Ennio Morricone) com Yo-Yo Ma

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Isto de uma coisa vir catalogada como inspiracional já me faz recuar à força toda mas, enfim, Kipling é Kipling chamem o que chamarem ao seu poema If, aqui lido por Tom O'Bedlam e, portanto, aqui o deixo porque senti muita vontade de o partilhar convosco.



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Leitor, em comentário, deixou-me referência da versão portuguesa dita por Villaret. Deixo-a aqui, com os meus agradecimentos

Se


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Relembro que abaixo há um post muito impróprio para donas de casa bem comportadas, avôzinhos beatinhos, betinhos de fatinho e gravata ou virgens por ideologia: o post abaixo é mesmo para gente que não se importa de passar por indecente (e estou com estes avisos todos apesar de ser uma brincadeirinha de crianças, mas, enfim, pelo sim, pelo não, acho melhor avisar).
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela sexta-feira, com boas notícias, alegrias, presentes, afectos, bolinhos bons, abracinhos fofos e tudo o que de bom vos apetecer. Be happy.

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