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domingo, abril 23, 2023

Entre o bafo quente da multidão

 

Na altura das eleições no Brasil disse aqui que obviamente desejava que houvesse um grande não a Bolsonaro. Mas que o meu entusiasmo com o Lula era reservado. Na lógica do mal o menos, ok ao Lula. Mas com muita pena que não haja melhor no Brasil. Um país enorme e complexo como o Brasil para ser bem governado e para ser respeitado interna e externamente tem que ter um presidente bem capacitado, consistente, com uma visão modernista, humanista. Lula está longe disso.

Por exemplo, a posição do Brasil sobre a Rússia a propósito da invasão criminosa da Ucrânia não é apenas dúbia. É também cínica, hipócrita, incoerente. Não sei se estas flutuações de posições, ajeitadas consoante o interlocutor, se devem ao seu caráter pouco consistente ou se Lula é simplesmente uma pessoa pouco informada. Ou se é a lógica interesseira do videirinho que quer fazer negócio e disfarça a coisa com conversa da treta julgando que os outros são mais parvos que ele. Não sei. Seja como for não é uma boa coisa.

E o que sei também é que, por tudo isto, Lula não me merece grande respeito.

Continuo a dizer: entre Bolsonaro e Lula, Lula. Mas que o Lula está aquém, mas muito aquém, do que o Brasil precisa, isso parece-me uma evidência.

E se pensarmos que o Brasil deveria ser um aliado de peso para Portugal, o que me ocorre é esquecer os interesses diplomáticos (que são incontáveis) e mandar bugiar o Lula. Ter um aliado como Lula é pormo-nos a jeito para vários tiros nos pés. Mas porque o Brasil é mais, obviamente muito mais, do que quem o governa, pois que se feche um bocado os olhos ao nonsense em forma de gente que é o Lula. 

(Num aparte, completamente aparte, também devo dizer que não percebo a que propósito é que anda em todo o lado, mesmo nos encontros institucionais, com a mulher a reboque). 

Enfim, uma tristeza.

Mas haja esperança. Por entre o bafo quente da multidão que acarinha gente como Bolsonaro, num quadrante, ou Lula, num outro, pode ser que surja uma consciência, uma voz que se erga. Muda como a exactidão   como a firmeza    como a justiça. Brilhando indefectível.

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Partilho um vídeo Cine Povero que me encanta, um remake de um anterior

Jorge de Sena :: Uma pequenina luz / Por Pedro Lamares


Desejo-vos um bom dia de domingo
Saúde. Ideias claras. Paz.

domingo, janeiro 10, 2021

Tudo é verdade e caminho
pelo que
don't worry, about a thing 'cause every little thing, gonna be all right

 


Tem estado muito frio. Quando fomos caminhar, estava cortante, A temperatura percepcionada era substancialmente inferior à temperatura real. Levei o meu chapéu de feltro, a minha gola polar, o meu casacão fofo e quente que já conheceu muito baixas temperaturas. Não sei quantos anos terá, seguramente mais de uma dúzia de anos. Sempre que há frio a valer, ele sai à cena. 

Não nos cruzámos com quem quer que seja. Por vezes sai da chaminé um odor a lareira. Alguns cães dão sinal à nossa passagem. Tal como nós já o fizemos, já praticamente não há enfeites de natal. No entanto, reparo que aqui, no móvel onde estão fotografias e máquinas fotográficas, ficou esquecido um pequeno pai-natal sentado. A ver se amanhã o arrumo. O natal já passou e, como se sabe, deixou um número absurdo de contágios e os hospitais à beira do estado de catástrofe, com os médicos a terem que decidir quem vai poder ser salvo. Assim é o mundo em que vivemos.

No telejornal da RTP 1, João Gouveia, médico intensivista, exemplar na contenção, falou no que poderão fazer para ampliar a capacidade hospitalar (por exemplo, ocupar os blocos operatórios ou as salas de recobro -- o que obviamente significa que muitas cirurgias não serão feitas durante esse período) mas que, a menos que haja uma quebra acentuada do número diário de novos infectados, o limite pode ser atingido a meio da semana que aí vem, com a necessidade dos médicos terem que escolher quem tem mais probabilidades de sobreviver. 

A seguir houve os debates e, a seguir, meio mundo avançou para os televisivos comentaderos botando douta faladura: se quem ganhou foi este ou aquele, se a Marisa, se o Tino, se a Ana Gomes, se o Ventura. se Marcelo, se João Ferreira, se um ganhou e o outro perdeu ou se perderam os outros, cada um dando seu palpite. Conversas gastas sobre conversas equívocas. Aparentemente grande parte dos candidatos não sabe quais as funções do cargo para o qual estão a candidatar-se. E cada um prepara-se tentando apanhar o outro na curva, apontando-lhe contradições. Tudo tretas. Imagine-se o que são horas de televisão em que pessoas que já andamos a ouvir há mil anos ocupam o espaço para nos enfadarem com comentários escusados, inúteis.

Sobre a situação de dentro de dias os médicos já terem que optar entre quem 'merece' ser auxiliado a viver e qual deve ser deixado à sua sorte é tema que passa ao lado de quem traça a agenda das televisões. Mas quase ninguém já vê televisões: meio mundo se entretém com as netflixes ou com os facebooks, instagrams e tretas desta vida.

Já se sabe que pessoas de Lisboa já estão a ser transportadas para outros hospitais. Também me faz impressão. Bem sei que as pessoas não podem ter visitas mas faz-me muita impressão saber que estão sozinhas e, ainda por cima, longe de casa, longe da família. 

Em menos de um ano de existência deste vírus em Portugal já aqui foram infectados quase meio milhão de pessoas e já morreram 7.700. E os números grandes relativos à óbitos, nas redondezas dos cem por dia, só agora é que começaram a apertar. Dizia João Gouveia: 'Significa que, quando atingirmos o ponto em que temos que fazer gestão de catástrofe, vão morrer mais pessoas'. Percebo: as que, apesar de todos os esforços, não resistem e aquelas que se decidiu que não valem o esforço. E escrevo isto com a mesma contenção com que ele o disse. Admito que os hospitais militares, os privados e tudo a que se pode deitar a mão já esteja mobilizado. À pergunta sobre o que mais falta, ele respondeu que os recursos humanos, em primeiro lugar, enfermeiros. Não se inventam enfermeiros. Qualquer país está dimensionado para uma situação normal, não para uma situação de pandemia. 

Entretanto, ainda não estou completamente bem. Parei com a medicação, já estava no limite do que é possível. Junto ao pescoço e às omoplatas tenho os músculos doridos. E continuo com muito sono. No entanto, durante a tarde não adormeci, estive a ler, a espreitar a televisão, a ver se conseguia dormir. A preguiçar. São dias muito frágeis, sem história.

Ontem ao fim do dia fomos a um sítio onde vendem vasos. Queria uma floreira rectangular, de pedra. Havia lá mas era tão pesada que os dois mal a conseguíamos mexer. Disseram-nos que a transportariam até ao carro. Mas e tirá-la do carro e levá-la até ao sítio...? Vi, então, um vaso de terracota escura, com um aspecto artesanal. Pensei que, se calhar, era caro. A funcionária andou de volta dele e não descobriu o preço. Colocou-o numa plataforma com rodas e levou-a à patroa. Veio de lá a dizer-me que custava vinte e cinco mas que a patroa fazia 50% de desconto. Claro que trouxe. 

E hoje estivemos a transplantar a bromelia. Está sob um telheiro. Terá muita luz mas não luz directa e, estando junto a outra, ficará relativamente abrigada. A ver se se dá bem. Fotografei-a depois da operação, antes de varrer, com o chão ainda sujo de terra mas depois de regar, como se vê pela mancha no vaso..

Andei também a pôr umas pinguinhas de água em vasos que estão debaixo do outro telheiro, não apanhando chuva. Se calhar apanham a humidade da noite e talvez isso seja suficiente mas não sei e não quero que fiquem sequiosas. Também andei a apanhar tangerinas, laranjas, um limão para pôr no bacalhau cozido do almoço e uma lima para amanhã fazer um chá. E andei a fotografar. Estas fotografias.

E apenas isto. Só mais os telefonemas. A minha mãe, aborrecida porque esta porcaria da covid a impede de circular por onde queria, aborrecida com o frio. Os meus filhos que passeiam o que podem, até às treze, com os miúdos. A minha filha mandou fotografias no parque onde andava dizendo que era muito giro e que haveríamos de lá ir todos e acrescentou: 'sabe-se lá quando'. Mas não há alternativa senão os que podem hibernar, hibernarem, trabalhando a partir de casa, tentando aguentar o máximo da máquina económica em movimento.

Acredito que com as vacinas e com as temperaturas a subir e, portanto, com mais vida ao ar livre, lá mais para Maio, Junho, as coisas possam retomar alguma normalidade. A menos que surja mais alguma má novidade, penso que é isto, mais uns quatro meses e estaremos de volta a alguma normalidade. A ver é como resistiremos até lá, nós enquanto pessoas e nós enquanto sociedades. 

No outro dia ligou-me um amigo. Estivemos à conversa e, às tantas, perguntei-lhe pela mãe. 'Morreu nos últimos dias do ano'. E ficou em silêncio. Eu também. Que coisa. A quantidade de pessoas que conheço a quem, nestes últimos tempos, morreu o pai ou a mãe... 

Quero ser optimista, é da minha natureza. Mas tudo isto e o frio e este afastamento é coisa que pesa. O meu filho hoje dizia que poderíamos ir passear para a praia. Pois podíamos, e se nós gostamos de praia. Mas junta-se este meu estado físico, ainda longe da minha forma física habitual. E tanto frio. Imagino o frio que deve estar na praia. Capaz de ainda vir de lá pior, sei lá, parece que não tenho vontade, receio piorar. Estivemos lá na antevéspera do ano novo, os miúdos até andaram em tronco nu, a brincar na água. Estava-se bem. Agora não se deve conseguir estar.

Enfim. Estou para aqui nesta conversa. Não se aproveita nada. Vou andando.


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Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza

Cine Povero


Desejo-vos um belo dia de domingo

segunda-feira, janeiro 04, 2021

Essas palavras rolam humildemente pelo chão

 


Acabou-se este período de descanso. Noutros tempos teria sido bem aproveitado. E, noutros tempos, para mim, aproveitar bem era ir passear ou, pelo menos, ir para o campo. Desta vez, covid, recolher obrigatório e, sobretudo, estado de empenanço agudo, foram dias de desconforto. Hoje estava um pouco melhor das costas, quase sem dor da nuca mas com um torcicolo dos bons. É assim comigo: quando tenho destas, a coisa gosta de brincar comigo. Muda de sítio. Se falo nisto a quem quer que seja, ninguém leva muito a sério. São crises inflamatórias que parece que vão percorrendo os sítios mais frágeis a nível muscular. Ontem a minha filha também se lembrou: 'E tens feito tiro ao arco...'. Exacto. Gosto e gosto de atirar de longe, forço o arco ao máximo para a flecha sair com uma força danada para que, se acertar no alvo, faça aquele som compensador. Se vai à mouche, então, é um prazer. Mas também badminton. Não tanto como o arco mas também. E isto já para não falar em saltar à corda. A minha filha falou que tinha saltado à corda e já não tinha aquela elevação que antes lhe era tão espontânea. E foi exemplificar. A minha nora também foi saltar. E eu, que quando era miúda, passava horas a saltar, para a frente, para trás, cruzado, sozinha, a pares, sei lá..., fui também saltar. Por acaso, à posteriori, ao querer atribuir culpas a alguma coisa em concreto, lembro-me que, na altura, pensei: 'A ver se tanto exercício não dá cabo de mim'. Mas isto é complicado porque gosto imenso de fazer estas coisas e porque o faço sem esforço. Portanto, na altura não me sinto limitada nem me dói nada. Mas o que, pelos vistos, acontece é que, quando tudo se conjuga, alguns músculos estarem mais frágeis porque sujeitos a um esforço adicional, e alguma coisa no meu organismo, talvez o sangue, transportar alguma substância que faz com que seja como veneno sobre os músculos mais frágeis, dá buraco. Portanto, diria eu que o segredo está em descobrir o que é que, de vez em quando, aparece no meu sangue.

E aqui entra o que a minha mãe diz: cortisol (do stress?), ácido úrico por comer queijo a mais? comi carne demais? Não faço ideia.

Das vezes anteriores em que estive assim, se calhou fazer análises a seguir, aparece evidente que o indicador das inflamações ainda está muito acima do valor mas, para além disso, nada de mais. Até o cortisol me aparece normal. Mas isto quando faço análises que, em geral, nunca é nos dias em que estou mal pois é preciso preparação e mais não sei o quê e, além disso, quando estou com dores não tenho qualquer disposição para ir para o médico. Ele diz-me: se não passasse era pior, como passa, menos mal. Pronto. Arruma o assunto. É um prático, o meu médico, não tem qualquer veia de investigador.

Mas, resumindo: ao levantar-me percebi que isto não ia lá só com ben-u-rons e repouso. Portanto, comecei com brufen e hoje já tomei ao almoço e ao jantar e, assim sendo, espero que agora comece a melhorar. 

Espera-me uma nova semana das valentes. Não sei o que me passou pela cabeça achar que devia pegar o ano novo pelos cornos, reservando a primeira manhã de trabalho do ano com as três reuniões que mais preferia não fazer, de tal maneira que nem consigo pensar nelas. Não preparei nem vou preparar, vai ser na base do que me ocorrer. E não faço ideia do que vou ter pela frente. Se fosse nos tempos em que saíamos à rua para trabalhar, admito que talvez me passassem com o carro por cima. De tarde, não vai ser tão violento mas vai ser complexo e exigente. E, pior, de seguida. Três de seguida. Reuniões, bem entendido. Estes agendamentos foram quando não me doía nada e na base de o que tem que ser feito, deve ser feito o mais rapidamente possível. Mas, estar a começar o ano com tal programa de festas e o corpo a pedir tréguas, não é das melhores combinações. A ver como chego ao fim do dia.

E é isto, cá estou outra vez a falar das minhas maleitas. Só espero amanhã já nem me lembrar de tal coisa e já ter outro assunto.

Bem. Tinha dito que a ver se hoje, pelo menos, agarrava num livro. E agarrei. E estive a ler. Deitei-me no sofá. Durante o dia nunca consigo deitar-me na cama. No sofá, reclinada entre almofadas, com uma manta de veludo, tigresa, por cima, pus-me a ler 'Acidentes' de Hélia Correia. Na vez anterior que lhe tinha pegado não me convenceu especialmente. Desta vez, encontrei outro sentido, outra toada. Os livros também somos nós, leitores, que os acrescentamos (ou anulamos). Depois adormeci, um daqueles sonos que me tiram do sério. Não percebo de onde vem tanto sono. Em suma: terei que voltar ao livro com idêntica predisposição, passando adiante quando me parece que falta a toada ou quando encontrar alguma palavra que me parece indevida. Penso que este é o segredo quando não gostamos de alguma coisa (ou de alguma pessoa): em vez de persistirmos a tentar compreender e aceitar, não, é de fazer é o oposto: saltar por cima, deixar para trás. A gente às vezes parece que gosta de complicar. Perdemos tempo a tentar salvar o que não tem salvação possível. Mais vale isto: seguir em frente e ignorar o que não nos agrada.

Fiz isso hoje e só me detive naquilo que me soou bem. E, portanto, fiquei mais contente com o que li.

Por exemplo, gostei deste bocado de poema:

Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema


Fala de palavras, ela. E eu, que tanto gosto de palavras, esses misteriosos acasos que se acasalam, gosto de pensar que tudo o que fale de palavras encerra em si parte do mistério e, portanto, leio com atenção a ver se percebo porque gosto tanto delas. Mas não. Aquilo de que a gente gosta mesmo está acima da nossa capacidade de compreensão. Gosta-se por mil motivos, porque é aquilo mesmo de que se gosta mas, sobretudo, gosta-se porque se gosta. 


Por exemplo, gosto de ler isto:
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo fome.

mas seria incapaz de explicar porque gosto tal como me parece fútil e inútil querer encontrar explicação para o próprio poema. Não sei como é que se dá aulas de Poesia. Penso que a única maneira razoável é ler. Ler, ouvir ler, deixar que a toada nos invada o corpo. Atribuir significados ou querer enquadrar burocraticamente na gramática normal é abafar a poesia quando o que a poesia precisa é de oxigénio, ar puro. Mas isto, claro, sou eu, leiga, leiga, a falar. 


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E, por falar em palavras e em poesia, uma vez mais o Faz uma chave de Eugénio de Andrade, num vídeo muito bonito do Cine Povero

Faz uma chave, mesmo pequena,
entra na casa.
Consente na doçura, tem dó
da matéria dos sonhos e das aves.
 
Invoca o fogo, a claridade, a música
dos flancos.
Não digas pedra, diz janela.
Não sejas como a sombra.
 
Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
 
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.


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Pinturas de Laurits Andersen Ring na companhia de Jessye Norman - A Portrait - When I Am Laid In Earth (Purcell).
O título do post provém de um poema de Hélia Correia neste seu último livro, Acidentes

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Desejo-vos uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

segunda-feira, novembro 30, 2020

Tudo é verdade e caminho

 


Estava de pé, no terraço, e olhava a chuva que caía copiosamente. Um silêncio só quebrado pelo som da chuva. Fui seguindo o seu cair, os regatos de água que se foram formando. Um pássaro grande saiu de dentro da copa de uma árvore e, numa corrida, foi abrigar-se numa outra. Caíram duas laranjas. A laranjeira está muito pesada. Apanhei uma das laranjas do chão e comi-a logo ali. Estava fria, sumarenta, quase doce. Emocionei-me. Esta é agora a minha casa e já tem frutos para me oferecer. 

Mais à frente, quase aparentando um pedaço de raiz à vista, um grande cogumelo, solto, tombado -- certamente pelo peso da chuva. Virei-o com o pé. Desfez-se. Rendilhado, delicado. Os cogumelos intrigam-me.

Reparei que um dos vasos que tinha uma qualquer verdura junto à terra, tem agora essa verdura toda florida. Mas são umas florzinhas que nunca antes tinha visto. Persicaria capitata. Surpreendo-me e encanto-me. Uma dádiva. Presentes que recebo quando menos espero.

Fui a casa buscar a máquina fotográfica e, quando parou de chover, fui fotografar os pingos de água escorrendo das flores. Debruço-me para cheirá-las. A água leva o seu perfume. Lava o seu perfume. Encanto-me, encanto-me. Depois fui buscar o telemóvel e fotografei flores e árvores para enviar as fotografias à minha mãe. Respondeu que é uma maravilha.

Entretanto, chegaram dois cães à casa do lado. De tarde vi o que deve ser o meu novo vizinho, sentado na varanda a fazer festas a um dos cães. Quando morava num andar não via os vizinhos. No campo também não. Para mim isto é uma novidade, parece que estou a voltar a quando era pequena, na rua todos a conhecerem-se uns aos outros.

Reparei, de novo, na iluminação de natal que puseram na varanda no primeiro dia em que para cá vieram. Nós ainda não fizemos nada. Não sou muito dada a enfeites, só tenho vontade de ter a casa com luzinhas quando vêm os meninos. Tenho umas árvores pequeninas com luzinhas amarelas que piscam-piscam e que dão uma luz acolhedora. A ver se amanhã as vou buscar à cave, pode ser que faça sentido. De qualquer forma são bonitas. Temos no sótão um baú com grandes bolas de Natal. Não sei se deveremos tentar pô-las nas árvores ou arbustos do jardim, na cameleira, por exemplo. Ou na cerejeira do japão. 

Não faço ideia de como será o natal. Por vezes tenho vontade de pensar: que se lixe o corona, quero é estar com o meu pessoalzinho, com todos, abraçá-los, ouvi-los, rir com eles. Mas depois contenho-me: não sou só eu, não é coisa apenas minha, não podemos dar-nos ao luxo de nos arriscarmos a ser mais um ou fomentarmos o contágio. Qualquer um de nós, se precisar de ser hospitalizado, pode ocupar uma cama que faça falta a outra pessoa. Há uma consciência cívica que não podemos deixar que abrande.

Também me faz impressão a minha mãe, sozinha. Agora faz todos os dias uma caminhada com uma amiga. Há dias em que tem aulas da universidade sénior. E está a fazer um casaco de tricot para a minha filha. Está entretida. E diz-me que evita sair e que não se importa de estar sozinha em casa, diz que receia expor-se ao contágio. Não quero forçá-la a nada até porque uma coisa é o verão em que podemos estar na rua e outra é agora, em que estando em casa, os riscos são maiores, especialmente estando sem máscara; e, em casa, quem é que vai estar de máscara durante todo o santo dia?

De vez em quando sinto saudades sem saber dizer, ao certo, de que é que tenho saudades. Talvez tenha saudades de algumas pessoas. Sim, tenho. Sei bem de quem. Talvez também de uma liberdade que agora não tenho. Ou dos hábitos que tinha e que abandonei. Há hábitos que não precisava de ter abandonado mas que abandonei. Por exemplo, passear à noite junto à praia. Íamos jantar e passeávamos antes ou depois. Como agora não vamos a restaurantes, deixámos de ir, à noite, passear mas isso é por comodismo, por não termos ainda conseguido crivar os hábitos possíveis dos que deixámos para trás. 

Tenho vontade de continuar a fazer reset na minha vida. Adquirir novos hábitos, retomar antigos, ir descobrir mais coisas mas não tenho disponibilidade. O trabalho prende-me e condiciona-me, Dantes, não sei como, o tempo dava-me para tudo e agora parece que não. 

Agora que falo nisto, vi no outro dia uma coisa de crochet que não me sai da cabeça, um trabalho em linha fina. Gosto de fazer crochet. Teria que ver onde aplicar mas acho que ficaria muito bonito. Mas quando terei eu tempo para fazer trabalhos de crochet em linha fina? Mas, de qualquer maneira, quando falava em adquirir novos hábitos nem era nisto que estava a pensar, era em mudança mais radical. 

Estive a ler um artigo sobre como será a vida pós pandemia. Há coisas óbvias. O coisinho-19 revirou o sistema. Por exemplo, ser piloto de avião era uma grande profissão, tinham grande poder reivindicativo, não chegavam para as encomendas. Agora é a reviravolta total: a TAP anunciou que vai despedir quinhentos. Todas as companhias aéreas enfrentam a mesma hecatombe. Aviões e aviões em terra. Não vai voltar a ser o que era. Os pilotos, assistentes de bordo, etc, são apenas algumas das profissões que estão em acentuado declínio. Há aquele exemplo das máquinas kodak, das máquinas de película. Não perceberam a tempo que a fotografia estava a tornar-se digital. Com o corona, parte do mundo parou e repensou-se, só que parece que ainda não fomos capazes de perceber como se vai sair desta. Quando houver vacina e tratamento, dificilmente se retomarão todos os hábitos do passado pois, entretanto, teremos adquirido outros. Sofrem os que dificilmente se vêem a fazer outra coisa mas a sociedade, no seu todo, irá reorganizar-se e reequilibrar-se. Surgirão novas profissões ou haverá escassez de outras. Sairão melhor deste pesadelo as pessoas que saibam fazer a leitura correcta dos factos e das necessidades que se criarão.

Mas, enfim, é tarde, nem digo que horas são da manhã. Portanto, melhor fora que dissesse que é cedo. 

Se há seres de outros planetas ou outras formas de vida que desconhecemos e que nos andam a estudar, se me localizarem, talvez fiquem sem perceber que ser é este que, no meio de um casario adormecido, se mantém acordado, sozinho, apenas uma pequena luz sobre as suas mãos, dando mostras de gostar de estar aqui, noite adentro, noite após noite, escrevendo como se não houvesse amanhã. 

E será que há amanhã? Quem o sabe?

(E que interessa isso, se há ou se não há amanhã? Que diferença faz isso para quem parte, depois de ter partido? E para quê perder tempo a tentar adivinhar sobre que face cai o dado que um qualquer deus atira só por desfastio? É viver e fazer o que nos faz feliz enquanto se pode. Convém é, já agora, saber o que nos faz feliz para não andar a deixar passar a felicidade ao lado, só porque não a soubemos identificar) 

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Fernando Pessoa :: A morte é a curva da estrada / Por Natália Luiza

(de onde extraí o título deste post)

[De novo, pela mão do Cine Povero]

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Fotografias cá de casa na companhia de Agnes Obel com "Mary"

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E queiram continuar a descer caso vos apeteça ler cartas de Agustina à mãe

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Desejo-vos uma boa segunda-feira com saúde, amor e beleza nas vossas vidas.

domingo, novembro 29, 2020

Acidentes, regressos e manuscritos de Felipa
[Ah...se eu pudesse trincar a terra toda]

 



Não há muito a dizer. O jardim está verde e florido e a chuva torna-o ainda mais viçoso. Mas a partir do princípio da tarde começou a chover, choveu, choveu, e escureceu de tal maneira que, para ler, só de luz acesa. 

Tenho um hábito: quando me levanto, dou a volta à casa, levanto os estores e vou pondo as janelas na posição basculante. Gosto que entre ar fresco. E, geralmente, gosto que fiquem assim todo o dia. O meu marido agora não concorda, diz que está frio demais para tanto ar fresco, diz que arrefece a casa. Por isso, geralmente, quando me apanha distraída, vai fechar as janelas. Se acordo a meio da noite vou, sorrateiramente, abrir a janela do quarto, gosto de sentir o ar fresco da noite. Se ele dá por isso, passa-se, diz que sou maluca. Mas gosto tanto.

De manhã não choveu. Fomos fazer uma caminhada. Mais de uma hora a bom passo. Uma caminhada bem mais longa do que o costume. Vamos conversando. Às tantas disse ao meu marido que ele sobretudo ouve e responde ao que pergunto. Ele respondeu: 'e não é preciso mais'. Ri-me. Sempre assim foi. Raramente é ele que puxa assunto. Ou tem assuntos de trabalho que o preocupam ou ouviu alguma notícia que achou relevante ou, então, alinha na minha conversa. E assim, nesta conversa solta, nem se dá pelo tempo a passar. 

Este domingo, que parece que vai chover todo o dia, não sei como vamos fazer. Já andámos muitas vezes com chapéu de chuva mas é uma maçada, em especial quando a chuva é forte ou faz vento. Mas ficar sem caminhar é que não.

Tinha ideia de ir fazer umas arrumações mas deu-me uma total preguiça. Estive a ler. Fui fazer a monda aos livros que trouxe no outro dia a ver os que tinham vindo para mim. E estive a ler parte de cada um. Enquanto lia, ia tentando descortinar quais as partículas elementares que ali se encontravam e que não encontro noutros autores. 

Mas não foi pacífico, devo confessar. Pensei que ia ficar rendida mas estou vacilante. Por exemplo, estranhei a linguagem deste Acidentes. Parece que lhe falta ali o sopro de deus. 

E, lá está, quem sou eu para falar em deus? A última pessoa a poder fazê-lo. Mas é o que penso: nos poemas que me parece conterem verdadeira poesia eu acredito que há ali mais do que apenas a inspiração ou a técnica do poeta, há uma qualquer transcendência, a mesma que encontro numa flor perfeita, numa música improvavelmente bela, numa pintura que sobrepõe sentimentos e luzes e sombras e inexistências. Penso: é um sopro divino. Um deus que reina sobre os acasos e se diverte a deixar que uns afoguem algumas coisas e outros elevem as coisas a um patamar tal que quem se apercebe deles tem vontade de se ajoelhar. Mais do que um patamar, um altar. 

O da Mónica Baldaque já cá estava em casa e o do Harari não é dos meus

Mas é isso: ainda não li tudo e talvez não com a devida concentração. Mas, do que li, sinto que há ali palavras destituídas de música ou de luz ou de não sei o quê. Tenho ideia que há palavras que não têm cabimento no reino dos céus que é o reino onde habita a poesia.

Da Adélia Prado parece que também não estou a encontrar nestas páginas a dose habitual de desalinho e a irreverência que nela tanto me cativam. Mas, de qualquer maneira, estou a gostar. Há sempre ali uma graça, um drible, um sorriso escondido por detrás da palavra. Para gostar de um livro tenho que sentir a inteligência mas sem exibicionismo, tenho que sentir o conhecimento profundo da natureza humana mas um conhecimento sem pergaminhos. Não sei explicar.

Do primo, ainda apenas espreitei. E ali encontrei a elegância do costume, a fluidez, o espírito. Lerei depois. Por enquanto, contento-me em folhear, apanhar fragmentos, deixar-me ir pela mão. Depois saltar, ler outro bocado. Há ali aquele saber escrever antigo, aquela prosa bem costurada, aquele saber contar. Não há futilidade, superficialismo. Há o prazer de escrever e partilhar ideias ou conhecimentos.

Ao início da noite fiz encomendas online e falei ao telefone. Antes fui para debaixo do telheiro ver a chuva e fotografar. Também fotografei os livros e algumas coisas em volta. E respondi aos comentários atrasados e descansei. Não é fácil ocupar o tempo quando se está habituado a não o ter. Inconscientemente parece que me sinto ociosa. Dou por mim a pensar se tenho alguma coisa atrasada para fazer, como se não me fosse concedido o direito a estar sem nada que fazer. Geralmente, ou tínhamos a família cá em casa ou íamos visitar a família, ou íamos encontrar-nos com alguém a algum lado ou íamos para o campo onde há sempre mil coisas para fazer ou íamos às compras ou qualquer outra coisa. Agora aqui em casa, num dia de chuva, sem se poder sair, parece que fica aquela sensação estranha de não saber bem o que fazer com o tempo. Mas foi bom, então não...?



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E, de repente, ocorreu-me que há muito tempo aqui não tinha o Cine Povero, bateu a saudade. 

E cá está: vem com Alberto Caeiro na voz de Pedro Lamares


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E desejo-lhe, a si muito em especial, um bom domingo.
Descubra o que lhe traria felicidade e procure-o. 
Geralmente não é nada de transcendente, está certamente ao seu alcance.
Be happy

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Seria eu um outro bicho se a minha casa fosse outra?







Os dois manos agora têm uma brincadeira nova, mais maluca ainda do que as anteriores. Chama-se Espasmo. A todo o instante levantam o braço, batem no outro ou alçam da perna e dão uma sapatada e, acto contínuo, dizem: Espasmo. Como é óbvio não percebi que brincadeira era aquela. Afinal era mesmo óbvio: faz de conta que temos um espasmo. A minha filha confirmou: é isso mesmo que parece: uma estupidez. A verdade é que com isto estão sempre às brigas. Tudo amistoso mas sapatada pede sapatada de volta e, às tantas, os espasmos estão acesos. Mas tudo na base da risota.


Estava era muito frio, escuro, a querer piorar. Apesar de tudo, linda a beira do rio, as gaivotas a rasarem a pala do Maat, a rasarem as águas, a elevarem-se em contrluz, a deslizarem sobre o vento. E a luz a passar pelas nuvens. 

Mas mesmo muito frio. Tivemos, pois, que nos abrigar e foi bom irmos lanchar um lanchinho bom, conversando em família. 


Antes de almoço tínhamos estado, só os dois, junto ao mar. Tínhamos pensado caminhar na praia mas, uma vez lá chegados, desatou a chover e levantou-se uma ventania. Saímos do carro mas não por muito tempo. O mar estava francamente revolto e o frio e o vento tornavam a tarefa quase impossível. Tinha levado o meu chapéu de feltro e estava a saber-me tão bem ter a cabeça protegida mas, para não correr o risco de ficar sem ele, tive mesmo que abrir mão do conforto. E o que aconteceu é que, com alguma pena minha, nem chegámos a descer até ao areal.


Quando vinha no carro, debaixo daquele mau tempo, a ouvir uma bela música, lembrei-me que debaixo daqueles grandes pinheiros mansos que nascem do areal fizemos, em tempos, vários picnics. Éramos cinco casais e, na altura, uns sete ou oito miúdos. Depois vieram mais, um por adopção e outros por nascimentos imprevistos, quando as respectivas mães pensavam que já tinham fechado a loja. Uma andou a tratar-se do estômago até a criança já ir para aí nos seis meses de gestação. Depois ficou em pânico com medo que os medicamentos lhe tivessem feito mal, isto já para não falar de ser mãe tardia e nem ter vigiado o início da gravidez. Felizmente, veio sem problemas de maior.

Mas, na altura, aquele primeiro lote de crianças tinha idades muito afins. E era uma paródia pegada.


Depois acabámos por perder aquela ligação próxima. Os miúdos ganharam vida própria e um tinha testes, outro tinha uma festa de anos, outro tinha um jogo. Eram muitos e conseguir agenda livre em simultâneo era um totoloto. Entretanto, quando vieram os bebés, os outros já adolescentes e com amigos e programas autónomos, estavam as mães a ter que 'guardar' em casa os bebés com viroses, com dentes a nascer. E isto, quando passa um mês e não se consegue e outro e não se consegue, o hábito vai-se perdendo. E depois, pelo meio, aconteceu uma coisa fracturante. Um dos casais que era central, até pela animação que proporcionava (animação, frequentemente, no mau sentido) separou-se. Foi muito complicado. Não era fácil estar com um e deixar o outro de fora das combinações. Resolvemos 'ficar' com ele porque ele existiu antes dela, já que, anos antes, ela apareceu no grupo como a namorada dele. Só que ele nos desnorteava pois, de cada vez que nos aparecia, vinha com uma namorada nova. Uma coisa louca. Para nossa surpresa, constatávamos que a ele, low profile, fisicamente até nada de mais, lhe caíam namoradas no colo como se fosse um galã. E não avisava. Combinávamos ir jantar e, por exemplo, encontrar-nos em casa dele e, pelo caminho, já íamos a pensar se seria a mesma. E nunca era. E ele, sempre o mesmo tímido, irónico, falinhas baixas e elas derretidas, olhando-o como se estivessem frente a um Brad Pitt desta vida. Embora, pensando bem, ele faz é lembrar o Al Pacino. Quando era casado, a mulher mais alta que ele, giríssima, interessantíssima, roía-se de ciúmes embora dissesse que o tinha escolhido por ele ser feio (e dizia-o à frente dele) e, assim, não ter que ter medo que as mulheres se perdessem de amores por ele. Enfim, umas cenas que nos divertiam e ajudavam a tornar o grupo ainda mais coeso em torno daquele casal meio disfuncional, sempre na corda bamba. E o que se passou foi, portanto, que aquele divórcio ainda mais ajudou a separar o grupo. 

Ao passar por ali, pensei que há tanto tempo que não íamos para aqueles lados, como se os lugares estivessem associados às pessoas que os frequentam.


Tive vontade de lá voltar para, com melhor tempo, ver melhor. Já deu para ver que o que antes eram umas aldeias esparsas são hoje condomínios e condomínios, vivendas e moradias e, pareceu-me, uma certa confusão. Mas talvez andando a pé fique com uma ideia mais benevolente. 

Ao passarmos de carro, vimos um casal que vinha da praia, a pé, à chuva. Vinham a conversar. Provavelmente tinham uma casa ali perto. Pensei na Isabel e no seu gosto em vir a ter uma casa ao pé da praia. Como a compreendo. Também eu, em tempos, o desejei. Desejava ter uma casa como a que que havia encavalitada nas rochas, salvo erro entre a Figueirinha e Galapos. Tinha uma escada que descia directamente para a areia. Talvez hoje não autorizassem a construção de uma casa assim. De resto, não faço ideia se tinha sido autorizada. Era uma boa casa e era uma casa de sonho, mesmo sobre o mar. Tinha um passadiço da estrada para a casa. Imagino como deve ser bom estar numa casa assim, ouvindo-se as vagas, a dança das ondas, o rugido das marés em dias de tempestade. Ou descer para a praia, a meio da noite, em dias de calor e lua cheia. E o cheiro da maresia, tão bom.

Quando andávamos à procura de uma casa no campo, isto há mil anos, chegámos a equacionar ser também perto da praia. Ouro sobre azul. Mas eram muito caras.


Depois de muito procurarmos e de vermos inúmeras, encantámo-nos por aquela ali, triste e escura, ainda com os móveis dos proprietários (também divorciados) que diziam que lá deixavam tudo, no meio de pedras e mato e rasteiro. Qualquer coisa ali nos atraíu irresistivelmente. Os miúdos puseram-se a correr pela casa, num entusiasmo, e a minha filha disse este é o meu quarto e o meu filho disse e este é o meu. E eu pensei tiro este móvel escuro e triste daqui e mudo o sítio dos móveis e tudo vai ficar diferente e o meu marido disse também de sua justiça. E eu pensei e vou plantar árvores porque aqui vai haver um bosque. Quando se riam, eu doseava a expectativa: um petit bois. O pior foi quando o meu cunhado lá chegou a olhando para aquilo de que nós já começávamos a gostar tanto e, naquele gesto tão típico dele, deslizou a mão pelo ar a meia altura, como que varrendo o espaço, e disse: 'deitam abaixo esta merda toda para conseguirem uma leitura diferente do espaço'. Bem conhecedora daquelas suas soluções que passavam sempre por deitar abaixo, fui taxativa: nem pensar, não vai nada abaixo, era o que faltava. Nem era só pelo acto em si, era também o dinheiro que aquilo que ele estava a idealizar ia custar. Mas aí o meu marido teve outra ideia, fez outros desenhos, unir aquilo com aquilo, rasgar uma grande janela, dali nascer um telheiro virado à serra. O irmão desaprovou: solução mediana quando poderia ser uma coisa fantástica. Paciência.


Ficou assim e acabou por reconhecer que foi uma boa solução.

E aos poucos foram nascendo os caminhos, os murinhos, as árvores foram crescendo, os pássaros foram chegando, as flores aparecendo, as borboletas, os cogumelos, a terra ficando atapetada de carumas, de musgos, de orvalhos. E eu tornei-me o bicho que tão bem conhecem.


Por isso, penso que, se calhar, as casas também nos fazem a nós. Talvez se, em vez daquela casa, nós tivéssemos descoberto uma outra que não nos permitisse mudá-la e, com ela, mudar a paisagem, talvez não fossemos o que hoje somos. 


Mas acordar de manhã e ir caminhar à beira do mar também deve ser uma coisa boa, talvez eu aprendesse a descobrir conchas, algas, pássaros e outros bichos que moldassem também a minha maneira de ser. Sabe-se lá.

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Já aqui partilhei este vídeo pelo menos mais duas vezes mas gosto tanto que me arrisco a partilhar uma vez mais.


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E só para vocês verem como é a minha fraca cabeça: quando comecei o post a minha ideia era olhar para os livros que aqui tenho quase ao colo e dizer qual ofereceria a cada um dos bloggers aqui do lado ou Leitores que conheço por comentarem ou me enviarem mails. Mas, se isto dá para perceber..., distrai-me e segui pelo caminho que viram. Se isto fosse na estrada, a esta hora estava a caminho do Porto.  (E estava muito bem que já estou é com saudades de lá ir dar uma volta.)

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Desejo-vos uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
E muito obrigada pela vossa companhia aí desse lado.

segunda-feira, maio 06, 2019

Balanço de um sarau em que alguns dos ginastas primaram pelas cambalhotas trapalhonas.
Fails, fails e mais fails
[E um breve apontamento sobre sindicalismo]


Estive no campo mas vim cedo para a cidade para preparar a janta já que a casa se ia encher e viriam cedo. Não tem a ver com ser da Dia da Mãe. Há coisas que não são de uns dias, são de uma vida. E vieram e a mesa esteve cheia e, como sempre, rimo-nos e houve jogos e cantoria. E, portanto, foi mais do que bom -- e a desarrumação foi também a condizer com a animação. E é mesmo assim, impossível controlar a energia de cinco crianças juntas (e de uns quantos adultos bem dispostos e a alinharem na brincadeira).

Estava eu a na cozinha, atarefada, quando o Rio apareceu a espadeirar à esquerda e à direita, à frente e retroactivamente, matando tudo o que era mosca e mosquito que lhe aparecesse no raio de meio metro. E foi isto que eu vi. E se ali não havia moscas e mosquitos, então não se passou nada, só mesmo o acto de espadeirar em seco. Só se for a cambalhota final da qual caíu fatalmente mal.

Além disso, no meio da afobação, mostrou o desatino que lhe vai na cabeça -- ele, tal como a madame Cristas, zanzando em volta do próprio rabo, dizendo que só pagam aos professores quando houver dinheiro --
- e toureando as outras classes profissionais, os pensionistas e contribuintes também vítimas da crise mais os que ficaram desempregados ou emigraram (que, pelos vistos, por eles, ficariam a chuchar no dedo) e sem explicarem que, se um dia, no tempo de São Nunca, houver dinheiro para isto tudo e pagarem e, no ano seguinte, perceberem que isso arruína as contas públicas... tiram outra vez tudo... 
E, aos saltinhos sobre a sua própria auto-importância, gabando-se não se sabe bem de quê e, de seguida, dando o dito por não dito, acabou a faena na maior deselegância e despropósito, mostrando o seu amargo mau perder, trazendo à liça as pessoas que morreram nos incêndios e os que morreram na estrada desprotegida, no maior desrespeito por quem morreu, ficou ferido ou por quem perdeu os seus entes queridos. Uma vergonha desagradável de presenciar.

Os portugueses ficaram, portanto, a saber que Rui Rio não apenas não sabe liderar o partido, não sabe ser coerente, não sabe conjugar o curto com o médio e o longo prazo, não é inteligente nem simpático, como nem sequer sabe ser bem educado e respeitador. 

Terminou dizendo que vai incluir no programa eleitoral do PSD isto de devolver tudo aos professores. Mais uma piadinha. Como se não estivesse careca de saber que não tarda já está com um par de patins e que, na próxima legislatura, não apenas não estará no governo como não estará no PSD. A dúvida, entre as hostes laranjas, é saber quando. Quando lhe põem o par de patins. 

Quanto à Cristas, mostrou que não apenas é uma peixeirona, uma troca-tintas, uma criatura que faz tudo e o seu contrário e, se necessário for, vende a alma ao diabo, juntando-se à direira mais extremada e mais populista e agora, também, à CGTP, ao BE e ao PCP, na ânsia de conseguir agradar não se sabe bem a quem como, depois, nem sabe disfarçar que é uma maria-tonta. É que, como se viu, quando a coisa sai furada, volta atrás, dá o dito por não dito, dá uma cambalhota trapalhona, estatela-se ao comprido e, a seguir, levanta-se a culpar os outros, aponta o dedo a quem vai no outro lado da rua, ao passarinho que canta em cima da árvore, ao que calhar. E assim, para desconsolo e enfurecimento dos centristas, vai desgraçando o CDS.

E nem vou falar de quão patético me soou o apelo de Catarina Martins a pedir a Costas que não se zangue, que continue a dar-lhe a mão, que a deixe continuar a brincar às geringonças. Claro que Costa vai continuar a ter paciência para as atitudes irreflectidas dela e do BE em geral, algumas a raiar a deslealdade. Mas há coisas que deixam algumas marcas. Mesmo pessoas com a pele dura e optimistas a toda a prova, como é o Costa, sentem quando um espinho se espeta no pé. Contudo, acredito que o Costa ache que é bom que haja um partido que acomode a esquerda sonhadora, romântica, saudosa de causas minoritárias e nobres. E, portanto, o Louçã há-de continuar a orientar a Catarina e a Catarina há-de continuar a andar por aí, bem intencionada, narizinho arrebitado, a agitar o punho e bandeiras coloridas. E tudo bem. 

Apesar de tudo, o PCP é mais reliable. Podem ser muito datados, muito agarrados a um proletariado e funcionalismo público que já é apenas uma pálida ideia do que é a classe trabalhadora da actualidade, podem ser um bocado casmurros, gente casca dura com um discurso muito já-era. Mas são gente de palavra, gente séria. Lá isso é verdade. Como parceiros de caminhada, antes gente assim, a atirar para o bota-de-elástico, do que gente que volta e meia tem fricotes, que vem com causas pseudo-fracturantes no meio de assunto sério e depois sobe ao palco a desfraldar bandeiras que nem se percebe bem a que propósito aquilo vem. Além disso, não há partido com homens mais giraços do que o PCP. Cada um mais sexy que o outro. E esta malta nova tem um discuro bem articulado, é gente serena para quem dá gosto olhar. O João Ferreira, então, faz favor: é mesmo um caso sério. 

E assim sendo, agora que a crise acabou e que já está mais claro com quem é que se pode contar, resta saber o seguinte:

1º - Quando é que os professores vão arranjar um representante sindical que lhes permita aparecer de cara lavada, que lhes permita limpar a má imagem que este Nogueira tem andado a espalhar junto da população. Os professores merecem mais e melhor -- e que seja rápido, se faz favor. 

2º - Quando é que o nosso Prof. Marcelo, por quem tanta gente anseia que se pronuncie, virá louvar a democracia portuguesa, madura de dar gosto, feita de gente que sabe dar cambalhotas e flic-flacs, andar de gatas, fazer o pino num só dedo, e tudo a bem do povo português. E que todos temos razão para festejar. Hip-hip-urra, efe-erre-á. Á. 

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E, portanto, agora que a crise está morta e quase enterrada, passo ao ponto do Sindicalismo. 

Começo, contudo, por um ponto prévio. Acho que devo andar com dificuldades de expressão pois ao criticar o que considero ser um mau sindicalismo há quem perceba que sou contra o sindicalismo. Isto deixa-me preocupada pois esforço-me por ser clara e, pelos vistos, não o sou.

Vou, então, tentar que não subsistam dúvidas: sou totalmente a favor de movimentos que representem os trabalhadores. Podem ser sindicatos, podem ser comissões de trabalhadores. Totalmente a favor.

Mas não me revejo nem nas causas nem na forma de agir destes sindicatos que conheço. São movimentos que, nuns casos, são correias de transmissão da linha mais ortodoxa e antiquada dos partidos aos quais estão ligados e, noutros, são movimentos corporativistas.

Os sindicatos que conheço pouco acrescentam. De vez em quando armam um banzé para convencerem os filiados que, se não fossem eles, os dirigentes sindicais, estariam perdidos. E vão para as negociações, focados em aspectos marginais, em relação aos quais pedem o dobro daquilo que acham razoável. E quem, do outro lado, vai negociar com eles, oferece metade do que está disposto a dar pois sabem que isso é importante para os dirigentes sindicais, para que possam exibir a vitória que conseguiram. Conheço bem tudo isto. Uma coreografia que não passa disto. Uma indigência.


Eu sei que que há quem, trabalhando todo o dia, chegue ao fim do mês com uma miséria. Sei tudo isso e muito mais.

Sei também da multidão que trabalha para empresas de trabalho temporário onde os ordenados são uma vergonha e as condições miseráveis. Sem ninguém que os represente.

Sei da multidão que trabalha em falsas empresas de prestação de serviço que mais não são do que empresas de mão de obra encapotada. Sem ninguém que os represente.

Sei de empresas de call center onde os empregados são em grande parte jovens licenciados que fazem um trabalho desgastante, com ordenados e horários do pior que há. Sem ninguém que os represente.

Sei de jovens investigadores sem segurança quanto ao seu futuro e sem condições que os motivem e segurem. Sem ninguém que os represente.

Sei de trabalhadores que trabalham sob uma pressão permanente, em turnos, muitas vezes integrados em equipas variáveis  com quem têm pouco em comum excepto o medo de perder o emprego. Sem ninguém que os represente.

Etc.

E sei dos problemas dos trabalhadores (problemas esses que vão muito além do que os 1% ou 2% de aumento de ordenado, no qual os sindicatos se focam):

  • o tempo que gastam em transportes, em especial nas grandes cidades; 
  • o dinheiro que gastam com creches ou ATL's para os filhos e as dificuldades que enfrentam para chegarem a horas; 
  • a angústia quando têm filhos doentes que precisam de ajuda, ou pais velhos e dependentes, e não podem ficar em casa a menos que metam férias ou tenham faltas que cortarão os ordenados no fim do mês; 
  • como, por mil razões, andam cansados para acomodarem a vida profissional e a vida familiar. 
  • A desmotivação por fazem trabalhos aquém da sua formação e das suas capacidades. 
  • A incerteza e precariedade que os impede de serem independentes e formar família. 
  • A dificuldade para os mais velhos em manterem-se em empresas que os olham como velhos apesar de não terem idade para se reformarem. 
  • A dificuldade dos que não suportam sentirem-se desmotivados ou indesejados e arriscam o desemprego ou uma reforma antecipada com cortes muito penalizantes. 

Etc.

E sei como estão prestes a mudar grande parte dos postos de trabalho. A transformação digital, as comunicações 5G e tudo o que já aí está a rebentar vão mudar drasticamente o mundo do trabalho. E sei que grande parte das pessoas vai ter que se reconverter profissionalmente e sei que grande parte das empresas não está a preparar-se convenientemente para isso.


E falo em empresas, que é a realidade que conheço melhor, mas a mesma coisa presumo que se diga em relação à administração pública.

E sei também como as empresas e os organismos de estado e outras instituições têm tantas vezes nas suas equipas de gestão pessoas completamente insensíveis em relação a tudo isto -- e não têm ninguém que represente os trabalhadores.

Gasta-se, por vezes, tanto dinheiro em projectos inúteis quando há tanto que fazer para aumentar a produtividade, conseguindo, em simultâneo, satisfazer as necessidades prementes dos trabalhadores e aumentar a sua qualidade de vida.

Portanto, acredito plenamente na necessidade de haver quem represente convenientemente os trabalhadores -- sob pena de a coisa se descontrolar. Sejam sindicatos, sejam comissões de trabalho. São vitais e deveriam ter uma representação forte junto das comissões directivas, representando com inteligência os trabalhadores (não partidos políticos, não causas escusas).

Os movimentos inorgânicos como o dos coletes amarelos ou os pseudo-sindicatos, que mais parecem agências -- onde dá ideia que os sindicatos ganham à comissão -- e onde em vez de beneficiarem os trabalhadores, apenas os desgraçam ao mesmo tempo que minam a democracia, aparecerão cada vez se o enorme vazio que referi assim se mantiver: vazio.

A não ser capaz de se reinventar, o sindicalismo definhará e poderão avizinhar-se tempos sombrios para os trabalhadores.


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E um pouco de poesia para cortar a aridez da conversa


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Lamento não conseguir responder aos comentários -- e tantos e tão interessantes que são e que bela conversa se poderia ter. Mas passa das duas da manhã e daqui a nada tenho que estar a pé. Alonguei-me demais na escrita. So sorry.

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Desejo-vos uma bela semana a começar já por esta segunda-feira. 
Saúde, alegria, sorte e tudo o mais que vos venha de feição.