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quarta-feira, novembro 15, 2017

Where the wild roses grow

-- O FIM --





E, então, Benedita deixou-se levar por aquela estranha intuição que parecia tomar conta dela, como se se visse como a lente de Filipe a iria ver. Sabia escolher o ângulo de luz, sabia elevar o queixo e deixar descair o ombro para que os seios tombassem de forma mais evidente, sabia encostar os lábios para que a inocência fosse mais sentida, sabia deixar esvair o olhar para que a tentação fosse mais subtil, sabia mostrar a curva do torso, a elevação da anca, a melancolia que pede protecção, o apenas adivinhado meio sorriso, o movimento casual do cabelo. 

A música tocava e Benedita nem a ouvia, entregue ao prazer de se deixar capturar. E toda ela se entregava. E se o sabia fazer. Sabia deixar que o corpo se esgueirasse, que a camisa se entreabrisse, que a saia se levantasse num assomo de pecado, que os olhos se toldassem e não por arrependimento, que o coração lançasse um silencioso grito, um apelo sem palavras, só a luz pousada na pele, só o olhar de Filipe pousado nela.


Ao movimentar-se sabia exactamente a forma como a câmara a captaria. Filipe mal se mexia. Se com algumas modelos tinha que circular em volta delas para descobrir a melhor perspectiva, com Benedita não era preciso. Ela transfigurava-se mal sentia a objectiva apontada na sua direcção. 

Era, então, um perigoso felino, uma leoa vagarosa, uma gata dengosa, um cavalo sem rédeas, um pássaro em pleno voo, uma boneca dócil e profana, uma deusa espiritual. Uma wild, wild, oh so wild, rose. Umas vezes, não mais que uma criança vaporosa ou talvez uma mulher com mil histórias; outras, uma alma vadia, uma selvagem tentação, uma perdição consentida.

Não falava. Apenas olhava. 


Ela própria vestia e despia roupas, descobria-se e logo se cobria com véus invisíveis. Sem hesitações ou pudor, o seu corpo aparecia ou encobria-se como se estivesse sozinha. Filipe, como sempre, ficava em êxtase olhando aquele corpo disponível mas inacessível, aquele corpo desejado e sempre negado. Um corpo como um instrumento usado com mestria. Um corpo sem alma, sem rédeas, livre, livre.


Meninha assistia, encantada mas com traços de tristeza no rosto. De todas as vezes que via Benedita a ser fotografada sentia aquele desgosto antigo que feria como uma lâmina já familiar. Gostava de ter um corpo assim. Não tanto o rosto mas o corpo. Gostava de ter uns seios que enchessem as mãos que os segurassem. Gostava de ter umas ancas que ondulassem para que, quando estivesse deitada, se elevassem como uma montanha suave.

Zezinho diz-lhe que é linda assim mesmo, com seu corpo quase liso, que não pense mexer nele. Mas Meninha não quer saber. Anda a juntar dinheiro. Faz maquilhagem, faz limpeza, passeia cão, toma conta de menino, canta em bar, faz o que aparecer. Já andou a informar-se, já foi a médicos. É muito caro mas um dia ela vai ser capaz de pagar para esculpirem seu corpo.

Então, enquanto Beny se perde em seus delíquios, rebolando e se mostrando, insinuando e escondendo, Meninha vai comparando para avaliar o que teria que fazer: enxertar aqui, retirar dali, preencher no cantinho, disfarçar ou acentuar na curvinha.

Nem ouviu quando Filipe lhe disse: 'Vá Meninha, agora tu.'.

Benedita reforçou: 'Acorda, Meninha. Vem. Deixa o Filipe fazer de ti uma diva'.

Meninha despertou. Sem nada dizer, limpou as lágrimas que tinham voltado.


Depois, 'Não. Não, Filipe. Esquece. Não sou lindeza que nem Beny. Continua deixando que Beny dê conta de teu juízo... Eu fico só vendo.' e tentou rir.

Mas Filipe não ligou: 'És linda, sim. Deves pôr a cabeça de muito homem à roda'.

Meninha confirmou: 'Muito homem me quer pegar, sim. Dou desejo nos homens e nem eu sei porquê, que me vejo no espelho e não vejo aquele abismo que puxa os homens. Mas puxa, sim.' E ficou calada. Até que logo depois: 'E muito homem já me pegou, sim. Deixei. Me pagava as conta. Me habituei a não ligar. Deste que deixei de meninar, já eu me entregava. Nem sei. Dez, doze anos. Nem sei. Um corpinho ainda por fazer. A fome faz isso, o abandono, a vontade de uma cama, de um bolo na pastelaria, de um sapato novo.'

Filipe, já aflito: 'Deixa, Meninha, não pensa nisso. Deixa. Não quer fotografar, não fotografo'.


E então Benedita, abraçando Meninha: 'Deixa isso para trás, não penses. Filipe tem razão. Deixa só que ele fotografe teu rosto para veres como és tão linda. E alegra-te, menininha. Não deixes que o passado te deixe triste. Já passou. Olha, sorri. Vai, Filipe, apanha este olhar tão bonito.'

Filipe fotografou. Mas o ambiente estava ensombrado. Meninha ajeitava a juba de Meninha e chamava: 'Vá, Filipe, agora, vá, olha o jeito doce dela'. Depois puxou-lhe a blusa para baixo, de um lado, deixou o ombro à mostra. 'Vá, Filipe, vê como é bonito o ombro dela'.

E, então, como que ganhando coragem, Meninha se pôs de pé. Limpou os lábios, com a costa da mão tirou a pintura dos olhos, quis que seu rosto ficasse nu. 'Vá, Filipe, fotografa.' E começou a despir. Benedita sentou-se, o coração descompassado. O pudor de Meninha não deixava nunca que o corpo se descobrisse. E agora...

'Vá, Filipe, vá disparando', desafiava Meninha, a voz rouca, como se em sofrimento. 'Olha bem, olha pr'a mim, vai, vê o corpo que tanto homem já pegou'.

Filipe obedeceu. Meninha puxando a sua roupa. 'Vá, Filipe, dispare. Apanhe uma wild rose como nunca viu'. O traje caindo devagar. Nem Filipe nem Benedita falavam. Mal respiravam.


Meninha já não falava. O rosto triste, triste. Estava revelando o seu corpo. O seu corpo de menino à vista. Seu segredo exposto. Seu silêncio desnudado.


Encobrindo sua vergonha, de frente, o seu corpo ainda em bruto, ainda por esculpir. Incapaz de uma palavra. Nem Meninha, nem Beny nem Filipe.

Depois, achou a última coragem que faltava e descobriu o que faltava mostrar.

Nenhum falava. Nem uma lágrima ousava correr. Apenas o silêncio ocupando o vazio que, de súbito, tinha ocupado todo o espaço.


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The end

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Meninha
(Filomeno de seu verdadeiro nome; aka Jaye Davidson fazendo de Dil)
interpreta The Crying Game



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O episódio que acabaram de ler, o nono e último do folhetim 'Where the wild roses grow', vem na sequência de:
Oitavo episódio: Memórias com lágrimas
Sétimo episódio: Noite de histórias
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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segunda-feira, novembro 13, 2017

Memórias com lágrimas


Filipe disse o poema. Benedita ouviu-o de olhos fechados. Pensou que poderia ficar a vida inteira assim, tranquila, de olhos fechados, ouvindo Filipe a contar histórias, a desfiar memórias, a dizer poesia.

Quando acabou, foi como se acordasse, como se tivesse que encarar o mundo de novo.




E pediu: Mais, Filipe. Não pares. Parece que a tua voz cura a minha ansiedade, faz-me esquecer os meus medos. Talvez vocês não saibam. Tenho sempre medo. Medo pelo que a minha mãe possa fazer. Tanto medo. Ela pode voltar a fazer o que já fez. Ela nunca mais se cura. Tenho tanto medo. E medo pelo que a minha irmã possa fazer. Posso nunca mais saber dela. Medo pelo que o meu pai possa fazer. E nem sei dele. Se calhar já nem é vivo, se calhar nem se lembra de mim. Medo por mim. Medo que um dia acorde e o meu rosto esteja deformado, medo de não conseguir sorrir, medo de não conseguir enfrentar a luz do dia ou a luz dos flashes, medo de acordar sem me lembrar do meu nome, medo de não ter vontade de viver. 

Ou outros ficaram em silêncio. 

Depois Meninha reagiu. Abraçou-a, fez-lhe festas no cabelo: Que é isso, menina, nem diz bobagem, não. Menina tão linda, tão boazinha... Pr'a quê essa tristeza, esse mal de viver...? Deixa isso pr'a lá. Fico até assustada por você. Porquê isso, Beny? Não tem razão pr'a isso, não. Qu'é isso, menina? Deixa isso pr'a lá, menina, deixa mesmo, ouviu? Me escute: cê não sabe o que é medo, não sabe o que é ter razão pr'a ter medo, menina.... Se eu fosse te contar meus troços, cê nem ia acreditar.'

E parou.

Benedita, surpreendida, disse: Sempre tão alegre, Meninha. Sempre te vi tão alegre. Que medos são esses...? Conta...

Filipe, baixo: Se não quer, não fala, Meninha. Deixa. Eu continuo a contar histórias...


Então, repararam que Meninha deixava correr uma lágrima enquanto começava dizer em voz baixa e trémula: Tanta pobreza na minha meninice, viu, Beny? As crianças eram criadas na rua, comiam o que os vizinhos davam, o que achavam, o que pegavam. Levava tareia de toda a gente. Não era igual aos outros menino, não queria aquela pobreza pr'a mim, não aguentava mau-trato. Fugia da rua, ia pr'a avenida, pedia dinheiro a quem passava. E vinha o policial e me levava. Ia pr'a casa de correcção. E fugia. Não aguentava. Queria outra coisa pr'a mim. Minha mãe teve pr'a cima de dez filhos, nem sei, a gente nem contava os que vinham chegando, ninguém ligava pr'a nenhum, nem ela ligava. Acho que dava alguns. Os mais bonitos, sempre havia alguém que queria pegar. Dos outros, nem isso ela queria saber, nem dava nem queria saber. Pai não conheci. Ninguém queria saber de uma criança suja e esfomeada que andava fossando pelas rua. Não sei como me criei. Ia na escola uns dias e fugia nos outros. Fui aprendendo. Mas fiquei bruta, sabendo coisa nenhuma. Um desgosto ser assim, uma ignorante. Não tenho raízes, não. Quando andei na rua passei muito e nem posso dizer quanto. Quero esquecer. Criança pobre, sem dono, aceita tudo pr'a poder ter alguma coisa pr'a comer. Até que um dia um senhor que era director numa televisão quis saber de mim. Era importante, ele, gente fina. Me ajudou muito. O que eu fiz pr'a ele não conto, tenho é dívida. Deu comer, deu tecto. Aí já eu tinha treze ou catorze anos, espigada. Levava-me com ele nos estúdios, fazia limpezas, fazia tudo, ninguém dizia que eu era tão novinha assim. Aprendi a tratar cabelos, a fazer maquilhagens. Foi lá que arranjei maneira de vir pr'a cá. Não aguentava mais.

Benedita, a medo perguntou: Mas ele não te tratava bem, Meninha?

Tratava, sim. Mas não do jeito que eu queria. Sofria muito, mas tudo escondido. Tinha medo que ele me pusesse na rua, não me levasse mais com ele. Fui fazendo o que ele queria. Mas era uma menina, sabe? Tinha meus sonho, minha liberdade pr'a conquistar. Não queria ser serva. E a voz de Meninha muito presa, agarrada às más memórias, era uma voz cheia de infelicidade.

Benedita, temendo o pior: Mas ele não tinha família?

Meninha, quase rouca: Tinha. Mas não dava muita bola pr'a ela, não. Visitava eles às vezes mas nunca conheci. Mas tinha muitos amigos. Políticos. Gente da moda. Gente do cinema. Jornalistas. Vivia sozinho. Mas tinha muita visita. Uma cobertura de luxo. Muitas festas, muita comida, muita bebida. Todos cheiravam. Queriam que eu também. Não ia acreditar se eu contasse. Muita coisa. Muita meninagem, às vezes, também. Coisa que não quero nem lembrar.

Filipe abraçou-a. Deixa, Meninha, não conta. Deixa. Há coisas que o melhor é deixar enterradas no passado. Para quê remexer? Não conta.


Depois, tentando sorrir: Olhem, meninas, a conversa está triste. Vamos parar com isto. Vamos ouvir música. Posso fotografar... Querem? Ou preferem dançar...?

Benedita abraçou Meninha. Não disse nada. Apenas abraçou.

Depois disse: Boa. Vamos fazer uma sessão. Vamos divertir-nos. Chega mesmo de tristezas, de más recordações, de medos. Já chega. Vamos fazer uma sessão das boas. Filipe, mostre o que vale. Apague a tristeza do nosso rosto. Vem Meninha, vamos escolher uma roupa bonita.

Mas Meninha ficou jururu mesmo. Sentou-se num canto do sofá. Tentou sorrir, fazer piada. Vai você, Beny. Fico a ver. Prefiro, acredita. Faz tua cara mais hot. Arrasa. Faz Filipe salivar, vai. Ele que é tão abusado... deixa ele pr'a morrer, vai.

E, então, Beny começou a despir-se, procurando com o olhar a objectiva de Filipe. Toda a sua vontade de viver naquele olhar, como se do que ele soubesse conquistar dependesse a sua vida. Vai Filipe, mostra do que és capaz. Faz parecer que sou a sua wild rose. Ou não. Faz parecer que sou uma leoa sem medo. Faz parecer que estou aqui para te conquistar. Faz parecer que estou aqui para te comer, Filipe, faz...




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O episódio que acabaram de ler e que acabei de escrever, o oitavo, vem na sequência de:
Sétimo episódio: Noite de histórias
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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quarta-feira, novembro 08, 2017

Noite de juízo





E, então, quando estavam a começar a jantar, tocou o telemóvel. Benedita atendeu. Mal se ouvia do outro lado. O coração de Benedita disparou. 'Mãe....! O que foi...? Fala!'. Silêncio. Depois uns gemidos. 'Mãe! O que foi? Fala!'. Depois conseguiu perceber. A mãe dizia: 'Caí... Não consigo levantar-me...'. Benedita calçou-se, pegou na carteira e na chave do carro e disse: 'A minha mãe. Não sei se é grave. Depois ligo. Fica à vontade, janta, não esperes por mim.' Meninha ainda quis acompanhá-la mas não deu tempo.


Foi numa correria. Quando lá chegou, a casa às escuras. Foi acendendo luzes enquanto chamava pela mãe. Nada. 'Mãe!' Nada. Foi de encontro a um móvel, magoou-se, uma dor no ombro mas nem deu por isso. O coração disparado, uma aflição. 'Mãe!'. Até que, junto à cama, a viu caída. O coração quase parou de medo. 'Mãe!' Nada. O corpo numa posição estranha, torcida. Gelada de medo, Meninha encostou a mão à boca da mãe. Sentiu que respirava. Abanou-a. Bateu-lhe na cara. Nada. Quando, a tremer, tentava marcar o 112, ouviu a mãe a dizer: 'Caí...' De olhos abertos mas desfocados, olhando à toa, Iolanda gemia. Benedita tentou levantá-la. Não conseguiu. A mãe estava transformada num corpo morto. Tremendo, conseguiu a ligação. Passado um bocado chegou o INEM. Observaram a mãe, fizeram perguntas à filha. Depois pegaram nela, puseram-na cama. Tinha-se urinado. Estava molhada, o chão molhado. Benedita ficou envergonhada pela mãe. No fim disseram que ela estava estável, não lhe encontravam nada. Estava sedada, provavelmente tinha abusado na dose. Dormindo, passava-lhe. Devia ter querido ir à casa de banho e, meio a dormir, ter-se-ia desequilibrado. Mas estava em cima do tapete, nem devia ter dado um único passo. Respirava tranquilamente. Os técnicos do INEM sorriram: 'A senhora sua mãe vai dormir o sono dos justos'

Quando saíram, Benedita desatou a chorar. Mais um susto. Quantos já? Quantos mais? Estava cansada. Odiou a mãe por tudo o que a fazia passar. Não era justo. Instantes depois, já mais calma, pensou lá ficar, velar pela mãe, coitada da mãe, tão sozinha, tão triste. Mas depois pensou que a mãe nem dava por ela, estar ou não estar era a mesma coisa. Saiu. Mas antes aconchegou-lhe a roupa da cama, beijou-a na testa.

Mal tinha entrado no carro, o telemóvel. Filipe. Hesitou. Estava sem forças, desfeita. Não tinha disposição para conversas. Mas atendeu. Filipe percebeu pela voz. 'Então? O que é isso? Estás a chorar?'. Benedita voltou a chorar, uma pena crescente de si própria. Não conseguiu falar. Filipe perguntou: 'Onde estás?' Benedita, a custo, disse que ia para casa. Filipe disse: 'Vou lá ter. Conduz com cuidado, vai devagar'

Quando Benedita estava a entrar em casa, estava a campainha lá de baixo a tocar.

Meninha surpreendida: 'Oi! Que animação, esta. Está esperando alguém, Beny?'. Mas Benedita não respondeu. Meninha, já aflita: 'Que foi Beny? Que cara é essa, menina? Que foi que aconteceu? Tá chorando?'. Benedita sentou-se, encolhida, o rosto tapado. Chorava, sim. 'O mesmo de sempre. Mas assusto-me. Tenho medo que um dia nem consiga ligar-me. Não consigo assistir à auto-destruição da minha mãe... não consigo...'.

Chegou, então, Filipe. 'O que é que aconteceu?'. Meninha encolheu os ombros e falou baixinho: 'Qualquer coisa com a mãe. Mas não deve ter sido nada de grave porque Beny foi lá e voltou'.


Filipe sentou-se ao lado de Beny, um braço sobre os seus ombros. Do outro lado, Meninha, fazendo-lhe festas no rosto e nas mãos. Filipe, apreensivo e solidário, aconchegava Beny e, sem saber o que se passava, dizia: 'Então? Toda a gente tem problemas, acontece, não há famílias perfeitas. Ou ela está doente...? Ou houve briga...?'. Benedita apenas chorava. E Meninha dizia: 'Lembra que é uma wild rose. Não chora, não, Beny. Logo, logo tudo fica bom...'

E ali ficaram um bocado.

Depois Meninha disse: 'Seu sushi está esperando por você, Beny. E dá para Filipe.' Depois de uma pausa, completou: 'Fiz uma coisa. Tenho que me desculpar. Não queria lhe dizer. Não quis fazer feio, criar desfeita. Mas não gosto de peixe cru, não. Estava me enchendo de coragem e, por dentro, toda numa ânsia. Ia fechar o nariz por dentro e tragar a coisa. Mas como você não estava, aliviei minha vergonha e deixei de lado. Olha, abusei de sua confiança, Beny, fui no frigo. Tirei um ovo. Melhor: dois. Mexi dois ovos. Me desculpa, Beny'. Benedita sorriu: 'Podia ter dito, que eu tinha pedido chinês, Meninha...'

E então foram os três para a mesa que ainda estava posta. Mas logo Filipe se levantou e perguntou se podia escolher uma música. Beny encolheu os ombros e com o queixo apontou na direcção dos CD's. Filipe escolheu. Nina Simone. Mr. Bojangles. Depois, quando ia sentar-se, disse com aquele seu sorriso feito pedaço de mau bocado: 'E depois da janta, alguma das meninas vai dar-me a honra da uma dança...?' e piscou o olho a Benedita. Mas Beny estava jururu. Disse: 'Estou preocupada. Não sei se não devia ir dormir a casa da minha mãe'. Depois, uma lágrima querendo escorrer no rosto: 'Dança com a Meninha'

E, dizendo isto, espreitou a surpresa dele e, de imediato, o seu olhar incendiou o coração de Filipe. Beny, mesmo estando assim, triste e derrotada, sentia que a wild rose vibrava dentro de si. Mesmo não o sabendo, queria festa, ela. E em segredo, indecente, pensou: a ver se Filipe está à altura.

Depois, o olhar ainda pior, pecaminoso de tão inocente, desafiou: 'Ou dança para mim; Filipe'. Filipe fez um esforço para não se afundar, logo ali, no tentador abismo do olhar de Beny. Mas se susteve. Ainda era cedo.


He looked to me to be the eyes of age
As he spoke right out
He talked of life

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O episódio que acabaram de ler, o sexto, vem na sequência de:
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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terça-feira, novembro 07, 2017

A solidão das mulheres bonitas





Ao fim do dia, Benedita telefonou à mãe a perguntar se podia lá ir jantar. Sentia falta de conversa de mãe. Não que alguma vez tivesse tido grandes conversas com a mãe mas gostava de pensar que sim.  Inventava memórias com essas inexistentes conversas.

Naquele dia em particular, gostava de poder estar à mesa com a mãe e gostava que ela lhe perguntasse o que se passava para ela lhe dizer que nada, mas, depois, perante o olhar interrogador da mãe, confessar que andava sem rumo. Mas a mãe atalhou o devaneio: que devia ter comido alguma coisa que lhe tinha caído mal, que não ia jantar, só beber chá. Benedita ainda lhe perguntou se queria que ela lá fosse mas Iolanda disse que não, que estava quase a ir meter-se na cama, que ficava bem.

Benedita ficou triste. Pensou que sentir-se carente seria aquilo. Depois, a recordação da irmã. Tão diferente a irmã, tão, tão diferente. Depois de mil aventuras, tinha ido para Barcelona. Pensou, com um sorriso no pensamento, que, àquela hora, andaria ela envolta na bandeira da Catalunha, mais independentista que o mais independentista dos catalães. Como estranhas, pareciam nada ter a ver uma com a outra. Nunca se telefonavam. Viria, talvez, passar o Natal. Contudo, a verdade é que Benedita sentia falta da leveza de espírito e da alegria da irmã. Sempre que pensava nela, recriminava-a: insconsciente, irresponsável. E, no entanto, tanto que gostava de ter herdado um pouco dessa alegre leviandade.

Os avós moram longe. Nunca foram próximos. São pessoas simpáticas mas as afinidades são poucas. Do pai pouco se lembra. 

A verdade é que Benedita tem poucos amigos. De resto, também prefere ficar sozinha, deitada, de olhos fechados, ouvindo palavras na sua cabeça, ouvindo dizer poesia na internet, música, divagações assim.


Outras vezes põe-se à janela a ouvir os pássaros nas árvores ao fim da tarde, ou, mais esporadicamente, vai ao cinema. Não vai muito às aulas nem dedica muito tempo ao estudo. Chama-na da agência para trabalhos e ela vai. Cada vez é mais requisitada e cada vez lhe pagam melhor. Mas é-lhe indiferente. Na verdade, quase tudo lhe é indiferente.

Uma vez, na agência, disseram-lhe que devia mostrar mais empenho. Não percebeu. Não quer mostrar mais empenho, não quer arranjar mais trabalhos, já tem que lhe cheguem. E sabe que, quando a objectiva aponta na sua direcção, alguma coisa acontece porque o seu corpo ganha vida de uma forma que a transcende e os resultados são surpreendentes. Não precisa de se preparar, muito menos de se esforçar. Não quer saber e, talvez por isso, o desconhecimento de si transparece através da sua inocente e total entrega. 

Estava nestes pensamentos, enroscada no sofá, as pernas já tapadas com uma manta, quando o telefone tocou.
Meninha. 'Olhe, Beny, desculpe aquilo lá mas não gostei do avanço daquele abusado.' 
Benedita, seca: 'Não pareceu que não gostasse. Vi-a toda enlevada, fazendo pose, feita romântica'.  
Mas Meninha: 'Sabe, Beny, de início estava gostando sim, sempre sonhei de ser diva, mulher desejada, sempre sonhei que alguém ia descobrir meus méritos, minhas seduções ocultas. Seu Filipe leva tanto jeito, tira imagem mais linda das mulheres que fotografa, já estava me vendo feita primeira página. Mas depois ele veio com aquela proposta, não gostei, muito abusado, não sei se a querer tirar casquinha ou quê'.  
Benedita, quase sorrindo: 'Querer fotografar um corpo não significa que queira tirar casquinha. Um corpo é uma superfície onde a luz se reflecte, um bom campo de exposição. Mil vezes que fui fotografada e nunca nenhum fotógrafo pôs as mãos em mim. O que eles sentem ou pensam ou não quero saber'.  
Meninha: 'Disso eu não sei, não. Só sei que ver meu corpo não é qualquer um que vê. E quis lhe dizer isto porque sei que Filipe para si é especial, bem vejo como sua indiferença é mais forte com ele que com outros, bem vejo como ele se redobra no olhar para lhe pôr ainda mais linda. Não quero estragar essa coisa que vocês fingem que não é coisa.' 
Benedita, então, diz: 'Quer vir jantar comigo, Meninha? Peço um sushi. Quer?' 
Meninha diz: 'Mas depois faz tarde para voltar aqui pr'a espelunca... É perigoso. Nem Zezinho me ia querer atravessando o pedaço aí pela noite. Acho melhor não, Beny. Mas valeu. Obrigada'.  
Mas Benedita resolve o dilema: 'Pode dormir cá, Meninha'.  
Meninha hesita, há intimidades que não gosta de partilhar.  
Mas Benedita insiste: 'Vá, Meninha, venha, venha contar histórias de quando era menininha, conte-me de sua mãe, de seu pai, de seus irmãos'.  
Mas Meninha: 'Ui... isso não, Beny. Tempos tristes. Nem sabe o que isso é. Isso não. Posso contar de outras coisas mas desse tempo eu não vou contar, não.' 
Beny concorda: 'Venha na mesma.'
E logo se pôs a arrumar a sala, e logo encomendou sushi e logo procurou lençóis e mantas e logo viu se tinha chá e sumos. E foi numa ansiedade que esperou que Meninha chegasse.


Mais de uma hora depois chegou Meninha. Vinha numa produção que só vendo. Benedita teve vontade de rir mas não quis ofender. Apenas disse: 'Toda sexy, Meninha'. E ela: 'Ora, Beny, e logo você para dizer isso. Sexy não. Apenas tentando fazer bonito. Vinha em sua casa, bairro fino, vizinhança chique. É ocasião especial, não quis vir de um jeito qualquer.' 


Beny disse: 'E está muito bem, Meninha. Está chique, sim. E vá, entre logo. Venha. Se quiser, pode descalçar-se. Aí em cima desse salto tão alto, nem o sushi lhe vai saber bem. E bora, vamos jantar. Apetece-me ouvir as suas histórias. Conte-me coisas, Meninha'

Meninha sorriu e, abanando a cabeça, mostrou a sua incompreensão: 'Moça mais linda e mais doce... não se percebe porque não arranja namorado que encha suas medidas com as histórias que você quer... Olhe. Porque não dá bola para Filipe, Beny? O que ele daria pr'a estar aqui contando os troços lá dele'. 

Mas Beny não quer ser amada como acredita que Filipe sabe amar e também não sabe explicar as suas razões. 


Por isso, embrulha-se na resposta: 'Filipe e eu andamos em passo trocado. Convergimos numa vida passada e nos iremos encontrar numa outra vida. Nesta agora ele tem mais para dar do que eu posso aceitar. Mas não sei. A minha vida também anda trocada das minhas palavras. Por isso, não faça perguntas, Meninha, que não sei responder. Conte-me é de seus amores, de seus namorados, de sua vida.'

Meninha, tentando fugir ao tema: 'Não quer deixar isso pr'a lá, Beny? Minha vida é tão sem graça... Zezinho é meu primeiro namorado a sério. Antes, só mesmo coisas sem história. Lhe digo, Beny, uma vida meio sem graça '

Mas Beny sente que não, sente que, ao contrário da sua, a vida de Meninha é cheia de graça. E está doida para descobrir.

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O episódio que acabaram de ler, o quinto, vem na sequência de:
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Primeiro episódio: Wild Rose

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[E sobre a bela luz e sobre as belas cores de Outono in heaven, queiram descer um pouco mais]

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segunda-feira, novembro 06, 2017

Actos falhados, sentimentos desencontrados





Benedita telefona à mãe pela sexta vez e nada. A manhã vai alta e nem consegue sair da cama. Desde que acordou que está a tentar. Já está deveras preocupada. Tem um compromisso, não pode largar tudo e ver o que se passa e isso deixa-a ainda mais inquieta. Também não está a encontrar o número de telefone da nova empregada que vai lá tarde sim, tarde não. Lembrou-se de lhe ligar e pedir que fosse ver se está tudo bem com a mãe. Mas deve estar a fazer confusão com o nome, não o acha. Que preocupação. Quem veja a bela Iolanda sempre tão sorridente não adivinha o problema que ali está. É bem verdade que a passagem de uma vida de glamour com um excesso de solicitações para uma vida quase vazia não deve ser fácil. É também certo que o ver-se sozinha nesta altura da vida, o saber cada filha para seu lado, também não ajuda. E talvez haja alguma carga genética. As depressões sucedem-se. Ou talvez seja sempre a mesma. No outro dia, quando Benedita lá foi, eram duas da tarde e ainda a mãe estava na cama. Levantou-se a custo, o rosto inchado, olhos sem vida, o cabelo a precisar de lavagem. 


Se a sua fotografia aparecesse assim numa revista ninguém reconheceria nela a bela Iolanda que fazia primeiras páginas e que, até não há muito tempo, aparecia na televisão todos os dias em horário nobre.

Saber a mãe assim preocupa e traz tristeza a Benedita. Parece que, qualquer coisa dentro de si está sempre em alerta, com receio de uma outra recaída, sempre temendo uma má notícia.

Mas, então, toca o telemóvel e Benedita logo descontrai: 'Então, mãe? Já tinha ligado não sei quantas vezes. Onde é que estavas? Já estava preocupada. Bolas! Porque é que não atendes?'

A mãe explica que estava a tomar banho, depois a secar o cabelo; não tinha ouvido. E diz que tem que se despachar para não chegar tarde ao ginásio, que combinou com uma amiga irem, antes, beber um sumo, que já está atrasada. E parece sorrir enquanto fala. Mas mente. Não foi isso. Tinha tomado na véspera à noite uma dose tão forte que agora mal conseguia estar acordada, queria era voltar, o mais depressa possível, para a cama. Tão pedrada estava que nem se dava conta da inquietação da filha, queria apenas acabar a conversa para poder dormir em paz.

Contente por julgar a mãe bem, Benedita ficou instantaneamente mais leve, com vontade de festejar. Num instante toma um banho, apanha o cabelo, veste qualquer coisa.


Na véspera, tinha ficado de passar pela casa-estúdio de Filipe, à hora de almoço, para ver as últimas fotografias, para ajudar na escolha de algumas para o editorial da revista e para ver algumas impressões. Mas, nessa manhã, Filipe ligara-lhe e, num entusiasmo, dissera que tinha recebido uma encomenda para mais um trabalho para uma marca de produtos de maquilhagem, que fosse preparada que aproveitavam e faziam já uma breve sessão para testar umas ideias.

Antes de sair, já toda animada, liga a Meninha: 'Escuta, vou ao Filipe para ver umas provas e para ensaiar uma sessão. Pode vir, Meninha? É uma cena de make up, sem suas mãos não vai ter graça'. Meninha geme: 'Aiii... Tinha prometido ir mais logo dar um jeito na mulher de meu padrinho que eles vão numa tal de vernissage e devo tantos favores pr'a ele... A que horas seria isso, Beny?'. Benedita diz que era logo, logo, que ficariam despachadas num instante, que a seguir Filipe voltaria para as suas patentes, que daria mais que tempo pr'a ir pôr nova a velha. Meninha diz que então sim mas reforça que, logo, logo teria que sair pr'a não deixar pendurada a mulher de seu padrinho.

Quando lá chega, Filipe cumprimenta-a com aquela discrição pudica tão própria dos verdadeiros apaixonados e que bem pode passar por um simples cumprimento profissional. Está desfardado, todo na ganga, aspecto desconstruído, bom para pôr as mãos nele e voltar a construir, pensa, sem mostrar que pensa, Benedita. E mostra a sua admiração: 'Que é isto, Filipe? Não foste trabalhar?'. Filipe está contente: 'Estive a trabalhar em casa. Daqui a nada já me fardo. Vou para o escritório daqui a nada e fico lá até à noite. Pode ser, chefinha...?'

Pouco depois chega Meninha. Vem afobada, tanta pressa que tem. Filipe mostra algum enfado, não estava à espera, pensava que ia ter Beny só para si, mas logo se recompõe e, como se tivesse tido uma ideia, sorri (e sorri com aquele seu ar safado de quem já está a visualizar a cena na qual a sua imaginação ainda só meteu um pé): 'Beny, a tua assistente não quererá participar na sessão? É bonita, tem carisma. Capaz de se tirar muita coisa dela...'

Benedita não presta atenção. Está concentrada em Meninha: 'Menina! Nunca te vi assim... Mas onde vais, tão chique assim....?'

Meninha senta-se a descansar. Depois diz que veio já vestida toda prosa para dali ir directa para casa do padrinho, que naquela casa tem que entrar toda feita madame que padrinho é homem recto, não quer jeito de desaforo na casa onde a esposa exerce suas virtudes.

Benedita ri. 'Mas é que caprichaste mesmo, ninguém ousará dizer que não vais tu também para a vernissage, mesmo para um baptizado... Menina!'

Filipe olha Meninha com atenção. Depois começa a fotografá-la. Benedita espia o olhar de Filipe, quer perceber se é também olhar guloso, igual ao que faz para si. Mas não consegue perceber. Talvez seja olhar profissional, toda a gente diz que Filipe é um artista, mas Benedita não sabe ser isenta. Disfarça apenas.

A seguir, ela mesma, enquanto Meninha faz olhos cândidos e jeito inocente para a objectiva de Filipe, começa a pintar-se. Mas, talvez inconscientemente, decide exorbitar a ver se Filipe percebe que ela está ali, a ver de Meninha percebe que está ali para a ajudar e não para sobressair.


Mas Filipe e Meninha parecem esquecidos dela. Ele aproxima a lente, deixa que a luz incida no cabelo selvagem da morena, foca-a de lado, aponta ao jeito tímido dela. E ela deixa-se estar, gosta de ver como Filipe se interessa pela sua beleza. 

Espiando num canto, Benedita sente a frialdade da inquietação. Até que, com espanto e incómodo, ouve Filipe a dizer com aquela sua voz que se baixa até se tornar uma indecência: 'Gostava de fotografar o seu corpo. Não quer tirar a blusa?'. 

Benedita sente-se ofendida,  tem vontade de o atacar, mas nada diz. E, então, ouve Meninha dizer com voz ríspida: 'Sou moça de me despir com essa facilidade não, viu? Homem que queira ver meu corpo tem que me conquistar muito, sabia? Não quero saber se isso é trabalho, se é arte, se quê, sei é que meu corpo é especial de mais para ser servido assim, com essa facilidade, viu?'. Põe-se de pé e, decidida, pega na bolsinha e sai batendo a porta.

Benedita, sem pensar, faz o mesmo.

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O episódio que acabaram de ler, o quarto, vem na sequência de:
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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sábado, novembro 04, 2017

Uma wild rose com red carnations nos seios





Esta, hoje, já não é uma cidade do sul, branca e radiosa. Esfriou. Chove. Ouve-se a chuva e está escuro. É bom. 

Fecha os olhos. Deixa que as palavras ocupem todo o espaço que a habita. Como num sonho, as palavras vão sendo desfiadas:
Um pintor que promete um quadro. Um quadro com veludos, ombros macios, paisagens esfumadas e outras abstracções. Um retrato e, olhando bem o fundo dos olhos, vê-se que deles, nascem incompreensíveis flores. Memória de um dia, descendo a escadaria de uma casa antiga, um vestido amarelo com folhos e os folhos ondulando.  E tudo o vento levou. Um labirinto habitado por sombras e ninguém percebe de onde elas vêm. Sussurros, risos e malícias e não se vê ninguém. Livros fechados de onde saem mãos que escrevem elegantes versos. A memória de um sorriso no espelho e não se sabe a quem pertence o sorriso. Uma mesa posta debaixo de um grande pinheiro manso e a toalha a esvoaçar ao de leve com a aragem da tarde. Mil pássaros invisíveis cantando ao fim dessa tarde. Um bilhete de amor encontrado no seio de um livro. Uma mão morena e macia deslizando nos seus seios. Um capuccino bebido devagar numa tarde envolta em neblinas de outono. Uma roseira brava trepando em volta do tronco do pinheiro. Pétalas caídas sobre a caruma. Where the wild roses grow
As palavras vão rolando no seu pensamento. Benedita gosta de estar assim, descansada, entregue ao prazer de ver deslizar palavras sem sequência lógica, sem motivo. Não tenta compreendê-las, muito menos detê-las.

Está em casa. Uma música soando, little girl blue, a chuva caindo e ela nisto, sonhos, suaves delírios.

Depois abre os olhos, vê as horas. Filipe não deve tardar. Quer fotografá-la em casa e ela não se importa. É muito louco, ele. Vai para além da loucura normal. É cheio de silêncios mas ela sente que escondem pensamentos perigosos. Tem perversidade na forma como olha. Anda em volta dela como um tigre e tem uma voz que a subverte. Mas ela deixa. Gosta. A mãe teme o que ele possa fazer-lhe mas, no fundo, Benedita sabe que é nela que está o perigo, que, se quiser, Filipe será a sua presa. Mas não quer. Quer apenas deixar-se estar e ele que esvoace em sua volta como um felino voador.

E então ele chega. Logo o seu olhar percorre a beleza de Beny. Quase num desinteresse, ela pergunta-lhe: 'Como foi o dia? Muitas patentes?'. Ele sorriu. 'Um dia trato de registar a patente desta tua beleza'. Para ganhar dinheiro, trata de patentes e propriedade intelectual. Depois, por prazer, fotografa. Fotografia de moda, sobretudo, mas não só. Meteu na cabeça fazer um livro e uma exposição só com fotografias de Beny. Ela não quer saber.

Se um dia Beny quiser apaixonar-se a sério será por alguém igual a Filipe. Não por Filipe porque sente que Filipe é homem demais para ela que é frágil e teme deixar-se conhecer por um homem com um olhar tão intenso quanto ele.

Filipe tira a gravata, pede para se descalçar. Depois começa a olhá-la de vários ângulos. Pega na máquina e deixa-se cair de joelhos. O corpo de Beny tenta-o mas não se aproxima. Ela é bela e etérea demais e ele teme que ela o violente com tanta beleza.

'Estavas a fazer o quê, antes de eu chegar?', pergunta-lhe mas talvez apenas para fazer conversa que o que quer é olhar para ela.

'Estava a ouvir palavras dentro de mim. Mas, agora que chegaste, di-las tu. Diz baixinho, como se me dissesses segredos. Gosto de ouvir a tua voz. Diz o que quiseres. Diz o que te vier à cabeça'.

E Filipe diz e diz cada vez mais baixinho, como numa confissão:
'O teu corpo longínquo. O teu olhar demasiado perigoso. Os teus lábios carnudos que devem saber a ameixas doces. As minhas mãos que sonham com o teu corpo. As saudades que sinto quando estou longe de ti. A vontade que tenho de correr para ti. A curva do teu ombro e a minha mão que nunca pousou nele. O teu cabelo que imagino pesado e que nunca pesei na concha das minhas mãos. O perfume do teu cabelo, da tua nuca, dos teus seios, das tuas pernas e do que se esconde entre elas. Os teus silêncios que não sei desvendar. O teu coração que não sei a quem pertence. Os teus pensamentos que não sei onde estão. As minhas mãos que passeiam sobre as tuas fotos, como se não fossem apenas papel ou um vidro no computador. A tua alma que ainda não aprendi a capturar'.
Depois, vendo que Beny, de olhos enlevados, parece entregue às suas palavras, detém-se. 'O que estou eu para aqui a dizer...?'. Então, atalha bruscamente: 'Despe-te, quero fotografar-te nua'. E espera. Depois: 'Olha assim para mim, quero apanhar esse teu olhar'.

Benedita diz -- e há uma perturbante malícia na sua voz indiferente: 'Ofereço-me toda ao teu olhar mas não quero que fiques com os meus mamilos à tua disposição. Não quero que lhes mexas quando passares as mãos nas fotografias'.

Filipe finge que brinca: 'Não é justo...' mas logo o sorriso se esvai quando a vê, perfeita, inocente, nua. 'Põe-te ao pé dos cravos, vou fazer nascer cravos dos teus seios. Os cravos da paz para que saibas que a ti, oh bela deusa, nunca tentarei conquistar-te pela força'.


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Este capítulo, o terceiro deste folhetim que ainda não faço ideia onde irá parar, vem na sequência de Beny e Meninha numa tarde especialmente quente

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Entretanto, para quem não é dado a folhetins, sugiro o post abaixo: A beleza assombrosa dos pinheiros. Só lá falta mesmo o epitáfio.

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sexta-feira, novembro 03, 2017

Beny e Meninha numa tarde especialmente quente





A mãe queixa-se. Tem dores. É da mudança de tempo, diz. Mas, quando vê a filha preocupada, sorri, diz que também não é nada de mais, que já faz parte, que já se habituou. Sabe disfarçar. Sorri como se tivesse vontade de sorrir. Durante muitos anos, sorrir fez parte da sua actividade. O sorriso bonito ficou-lhe colado ao rosto e sempre a parecer um sorriso genuíno. 

A filha vai sentar-se ao seu lado, pergunta-lhe o que fez durante o dia. Iolanda diz que fez a mesma coisa de sempre e a filha diz que o problema dela é esse, o não ter nada que fazer. A mãe protesta: fez muitas coisas. E enumera: foi ao ginásio, leu, foi ao dentista, dormiu a sesta, orientou a rapariga, viu a lista de compras que ela tinha feito, deu-lhe dinheiro e depois orientou a arrumação, viu televisão. A filha diz: 'Mãe, isso não é nada. Quero estar descansada em minha casa e não consigo, sabendo-te aqui nesta fossa. Escreve. Porque não escreves? Arranja uma rotina, como se fosse um trabalho. Deves ter montes de histórias de quando trabalhavas na televisão'. A mãe faz-lhe uma festa ao longo do cabelo: 'Estou bem, não te preocupes.'. Depois acrescentou: 'Olha, se fosse contar as vezes que fui assediada, enchia um livro. Está na ordem do dia. Dizia o nome dos figurões que mexeram ou quiseram mexer. Mas cá ainda eles é que ficavam bem vistos. Não há paciência'. A filha encolheu os ombros. 'Nunca tens paciência para nada. Isso não é bom'. Mas a mãe parecia absorta. Ou desinteresse ou cansaço. Sem ter razões para se sentir cansada, a verdade é que geralmente mal se conseguia mexer, tanto o cansaço.

Depois pareceu acordar: 'Olha lá, tens estudado? Tu nunca descures os estudos, ouviste? E escuta lá, não gosto nada desse Filipe. Tem má fama, tem mau ar. Não gosto nada, nadinha mesmo, de te saber com esse galifão por perto.'

A filha, com aquele ar ausente que talvez tenha herdado da mãe, levanta-se e sossega-a: 'Tenho estudado, sim. E não tenhas receio: sei tomar conta de mim.'.

Beija a mãe. E fica, por uns momentos, a olhá-la. Tão bonita e sempre tão desmotivada, a mãe. Depressões profundas. Não há muito, um susto. No hospital tinha pedido desculpa, que nunca mais. Tristeza, vergonha e dizia que arrependimento. A recuperação tem sido lenta.

Quando ia já a sair da sala, a mãe chamou-a: 'Benedita'. Depois de um silêncio: 'Tens visto a tua irmã?'. Benedita disse: 'Se não estivesse bem, sabia-se, não é...?' e disse tudo.

Quando ia a sair de casa da mãe, tocou-lhe o telemóvel. Era Meninha. 'Ligou, não ligou, Beny? Estou respondendo'. Benedita: 'Sim. Separei umas roupas, lembrei-me que se calhar lhe assentam bem. Posso dar. Já não uso.' Meninha em silêncio, sem querer acreditar. Benedita: 'Se quiser posso levar a sua casa, estou sem nada que fazer'. Meninha aflita: 'Ui... Não venha não que aqui o bicho pega... Lugar mau, Beny, não vem não.' Benedita: 'Gostava de ir. Nunca fui para esses lados. Não incomodo. Posso nem entrar'. Meninha acabou por ceder, deu a morada.

Passado um bom bocado, Benedita tocou à porta de um prédio degradado, num bairro degradado, com pessoas com mau aspecto à porta. Como ninguém respondesse, subiu a pé pelas escadas e bateu à porta.

Meninha abriu. 'A campainha não funciona. Teve que vir na aventura, não foi não?'. Benedita estendeu um saco. Meninha disse: 'Entra Beny, não vai ficar aí na porta, né..?'.

Estava de shortinho bem curto, blusa sem mangas, cabelo solto, argolas grandes e baratas. Sentindo-se alvo de atenção, explicou: 'Tá calor, não dá p'ra botar muito agasalho, viu...?'. Benedita atrapalhou-se: 'Nada. Não estava a reparar. Também tenho calor.'

O apartamento era pequeno. Decorado à moda de Meninha, com xailes nas paredes, espelhos, luzes, plumas. Um sofá que se percebia ser velho com uma manta colorida e almofadas com missangas e lantejoulas. 

Benedita pensa na vida difícil de Meninha, vinda de tão longe, uma vida de pobreza e violência e agora cá, lutando, sempre falando num mundo melhor, sempre sonhando. Despeja as roupas no sofá. Meninha olha espantada. 'Tem a certeza, Beny? Tudo para mim?'. Benedita confirma: 'Já não uso. Não sei é se ficam bem a si.'.

Meninha disse: 'Se não ficarem, eu arranjo. Sou boa de costura, comigo não fica prega solta ou bainha pendida'

Beny sorriu, acha graça às expressões dela.

Depois disse: 'Experimenta este, acho que em si vai ficar bonito.' Meninha tímida: 'Logo experimento'

Depois, para mudar de assunto: 'Quer alguma coisa? Água?'. Benedita aceita, diz que está cheia de calor.

Depois de beber a água, volta a insistir: 'Gostava de ver como lhe fica. Não quer experimentar? Despe que eu ajudo depois a vestir. O corpete não é fácil de apertar. Mas deixa que eu aperto. E depois fica lindo com capa plissada, em si deve ficar bonito. Trouxe até colar'.

Meninha já nervosa: 'Então vá, eu visto. Mas vou lá dentro, não leva a mal, Beny, sou de pudores.'

Passado um bocado volta e vem radiosa, cabelo mais amansado, e vem fazendo pose, olhar profundo, andar de gazela dengosa.

'Pode fotografar, Beny? Gostava de ver se levo jeito. Quem sabe fico também com ar de wild rose', pede.

'Vou fotografar uma wild rose no seu habitat, aqui onde as wild roses grow', diz Benedita. Usa o telemóvel e fotografa Meninha. 'Para mostrar ao seu namorado, ele vai gostar de ver. Ajeite as maminhas para ficarem mais salientes'

Meninha meio-sorri. Está com ar de vício, de quem quer. 

Beny sente que há um clima no ar mas pensa que é de ter encarnado a personagem que Meninha olha assim para ela. Começa a sentir mais calor. O ar está quente no pequeno apartamento. Bebe água. Então, Meninha, diz: 'Não tem ar condicionado aqui, não. E janela também não tem vidro duplo. Para refrescar só mesmo despir e passar água fria na pele.'

Sem pensar, Benedita despe-se. Deita-se no sofá. E, com aquele seu ar de corpo do qual a alma se evadiu, diz: 'Deite água em mim, Meninha'


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Nick Cave and the Bad Seeds interpreta The Kindness of Strangers

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Este episódio vem na sequência de Wild Rose

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quinta-feira, novembro 02, 2017

Wild rose


Beny deixa-se estar. Mêninha pinta-lhe os olhos com todos os cuidados, esfuma-os, ajeita-lhe as sobrancelhas, aplica um brilho na pálpebra superior, disfarça-lhe as olheiras. Vai falando enquanto opera os pincéis, uma tagarelice em contínuo, e tanto fala das cores de outono, como passa para os lábios inchados da apresentadora ou para as rosetas salientes da outra, saltando daí para a falta de chuva, e logo para a simpatia do Marcelo (ainda hei-de ter selfie com ele, vai ver --- assegura), depois para o outro que é um mal jeitoso. Beny vai sorrindo, muitas vezes sem saber onde é que perdeu o fio da conversa porque já não está a acompanhar. De vez em quando entreabre os olhos para se ver no espelho, de vez em quando diz que sim ou pois apenas para que Meninha não pense que não está a ligar.

Desde que acordou que anda com a expressão where the wild roses grow. Não sabia se tinha inventado ou se existia. Enquanto Meninha lhe retoca os lábios, Beny pesquisa no telemóvel. Afinal é nome de canção. Ouve-a para perceber se é daí. Não. Acha que nunca tinha ouvido. Meninha gosta, espreita para ver o que é. O filme é estranho. Beny não gosta. Fecha-o. Mas a frase não lhe sai da cabeça. Where the wild roses grow.


Quando a maquilhagem está pronta, Beny pede a Meninha que verifique se o cabelo está bem. Meninha ri-se: 'Perfeito. Mas haverá alguma coisa em si que não seja perfeito...?'. Beny responde: 'Há. A minha cabeça. Parece que nunca estou de corpo e alma no que estou'. Meninha ri-se de novo: 'Preocupações de quem tem tudo... Olhe, bobagens...Não quer estar de corpo e alma...? Não tem mal. Esteja só de corpo ou só de alma... Não tem mal, não.' Meninha parece só conhecer o lado prático da vida.

Beny levanta-se, olha-se ao espelho. Pede a Meninha: 'Venha comigo, venha ajudar-me na sessão. Venha ajudar-me com a roupa, com o cabelo, a ver se estou bem. Não gosto da assistente do Filipe'. Meninha faz um ar sofredor: 'Ai... Ia sair agora... tenho o namoradinho novo à espera....'. Mas depois resolve: 'Deixe. Já percebi que hoje está jururu. Vou ajudar, sim. Já ligo a Zezinho para que só me espere lá mais para a noite'.

Deslocam-se então para o estúdio. Numa cabine, Beny muda de roupa. O seu corpo fica nu em frente a Meninha mas Beny não se importa. É como se o corpo não fosse seu ou como se o olhar de Meninha fosse tão inocente que não houvesse risco de beliscadura. Meninha olha e diz com ar de espanto: 'Corpo mais lindo, apetece até mexer. Um dia ainda vou ter um corpo quase assim...' Beny não presta atenção. Não quer saber do que dizem do seu corpo. Desde que o seu corpo se formou que o ouve elogiar, já se habituou. 

Tem as peças para vestir penduradas. Veste. Olha-se ao espelho. Meninha ajeita-lhe o cabelo, os adereços, acaricia as sedas, apalpa as rendas. 'Que luxo... Quem dera eu... Ai... será que não emprestam não...? O que eu dava para experimentar...'

Do estúdio, chega uma voz: 'Então Beny, quando é que começamos?'

E então Beny sai da cabine e, com ar indiferente, coloca-se à disposição. Filipe olha-a deslumbrado. Durante uns instantes não diz nada, apenas a olha.

Depois pede-lhe que se sente em cima da bola. A assistente liga a ventoinha. Os cabelos de Beny esvoaçam. E, como sempre acontece, Beny transforma-se na fêmea bela e sedutora que todos conhecem.


Num canto, Meninha observa a sua diva e sonha com o dia em que alguém também a olhará assim. E pensa que vai pedir a Zezinho para logo mais a fotografar. Fará poses iguais, olhará pelo canto do olho, boquinha carente, cabelo solto, salto agulha, bunda tentadora.


Depois Beny vai trocar de roupa. Faz sinal a Meninha. Já na cabine, Beny pede: 'Ajuda-me, Meninha?' Meninha ajuda de bom grado. Sente a pele macia de Beny. Gostava que a sua fosse igual.

Beny pede mais: 'Meninha, gostava de apanhar o cabelo. Ajuda?'. Está nua. Meninha penteia-a, retoca-lhe os lábios. Depois ajuda-a a vestir as transparências pretas que tão tentadoramente contrastam com a pele de leite.


Quando Beny, de novo no estúdio, se deita na cama que Filipe colocou à sua disposição, olha para Meninha como se procurasse uma âncora. Where the wild roses grow. Pensa. Como se de um segredo ou de um mistério se tratasse, em silêncio ouve-se a dizer where the wild roses grow. Meninha não se apercebe dos pensamentos perdidos de Beny, nem tenta percebê-los, já sabe que mulher bonita é assim mesmo, cheia de bobagens. Limita-se a estudar as suas poses. À noite vai pôr-se assim para que Zezinho a veja tão linda quanto Beny.

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