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sábado, junho 07, 2025

O meu dolce fare niente, o meu pequeno almoço, a overdose biográfica de Herberto Helder servida por João Pedro George e etc.

 

A minha cabeça parece que entrou em férias. O corpo já tinha dado sinais que era o que queria mas a cabeça teimava em meter-se em trabalhos. Mas agora, para além de festejar a ausência de horários, apetece-me não ter maçadas de qualquer espécie. 

Claro que elas aparecem e não há como não enfrentá-las: uma coisa que se avaria e que custa a encontrar quem a arranje, um outro estore elétrico que não funciona, agora este problema da infecção na perna do nosso amicão, afazeres que aguardam que alguém se ocupe deles. Isso acontece independentemente da nossa vontade e, se não formos nós a resolvê-los, não haverá quem mais o faça. Mas depois havia aquilo em que eu sempre fui pródiga: arranjava sempre ocupações com objectivos apertados que me obrigavam a uma disciplina que se sobrepunha à minha vontade (ou necessidade) de descansar.

Agora não. Agora sabe-me bem, cada vez melhor, poder passar a tarde a ler, ao sol ou à sombra, a fotografar, a olhar para a copa das árvores. 

Claro que antes disso fiz uma máquina de roupa, estendi-a, fui ao ginásio, estive a varrer o terraço, a regar os vasos, fiz o almoço, recebi e estive à conversa com uma pessoa que cá veio a casa, etc. Mas, a seguir, por mim está feito! e deixo-me levar pelo prazer de estar na boa, sem mais nada que fazer. Claro também que a seguir aparece o meu marido a dizer que está na hora de irmos fazer a nossa caminhada da tarde e vou e sabe-me lindamente e, uma vez regressada, vou fazer o jantar e depois vamos fazer o tratamento ao nosso fofo, que reage mal e o meu marido tem que o agarrar com força para ele não se virar, e depois vamos todos fazer um passeio nocturno, passeio mais curto, coisa para não mais que meia-hora e que também me soube bem. 

Ou seja, não é que não faça nada. Faço. Mas, pelo meio, permito-me estar descansada sem sentir que estou a ser improdutiva. Quase desde que me conheço que tinha a pancada de fazer coisas que se vissem, que fossem úteis, que ficassem. Agora não. Estou uma ou duas ou três horas na boa e não me sinto mal por isso.

O meu marido também está muito diferente. Está um jardineiro exímio. Anda sempre com a máquina da relva ou com o corta-sebes ou com a roçadora. Antes não tinha o mínimo dos mínimos de apetência para a jardinagem. Zero, zero. Agora, nem tenho que lhe pedir. Pelo contrário, tenho é que pedir que não corte tanto. 

E, como se isso não bastasse, hoje, quando entrei em casa vinda de estar a ler, cheirou-me a bolo. Pasmei. Tinha feito um daqueles simples que se fazem numa tigela, no micro-ondas. Diz que pediu ao chatgpt a receita de um bolo saudável, rápido e simples, que se fizesse no microondas. Fez de alperce com iogurte grego, ovo, mel, uma colher de azeite e flocos de aveia. Estava bom mas com pouco sabor, talvez por estar pouco doce. Então pôs-lhe uma colher de compota por cima, levou-o mais uns segundos ao microondas. Ficou melhor. Depois fez um que improvisou, com cacau em pó, mas deixou-o cozer de mais, ficou rijo, uma bolacha dura. Mas sou de boa boca, como de tudo de bom gosto. Só que não quero alargar-me nos doces. Como nunca faço doces, a cozinha nunca cheira a bolos. Por isso, gostei imenso de sentir aquele cheirinho. O mais parecido que faço são papas de aveia . E ficam boas. O meu marido agora, ao pequeno-almoço, para além de comer uma banana, come uma taça dessas papas.

Já contei como faço mas agora introduzo uma pequena variante: num tachinho ponho água a ferver com uma pitada de sal, um pouco de canela, casca de laranja (ou de limão) e agora tenho juntado também umas três ou quatro tâmaras. E, claro, flocos finos de aveia. Vou mexendo. Quando começa a fazer bolhinhas, mexo bem e deixo estar ali em ebulição controlada durante uns dois ou três minutos. E já está. Solidifica com uma textura de que gostamos. A aveia é muito saudável. Não faço com leite nem ponho açúcar. 

Eu, ao pequeno almoço, como uma laranja e depois preparo um copo de kefir ao qual junto uma colher de sopa cheia dessas papas de aveia, um pouco de mistura de sementes e um pouco de pó de latte dourado que compro no Celeiro (curcuma, gengibre, pimenta, noz moscada). Mexo tudo bem. Adoro. Começo sempre o dia com o prazer de ter um pequeno almoço que me sabe mesmo bem. Remato com café expresso, longo, sem açúcar. O cheirinho bom do café e o prazer de o beber ajudam a que o dia seja inaugurado a preceito. Agora só bebo esse café por dia. 

Quanto à leitura: continuo (e continuarei, nem que seja intercaladamente) com a biografia do Herberto Helder. É daqueles que leio saltando frases de quando em quando. É uma overdose. É como se ele tivesse juntado referências, opiniões, recordações de outras pessoas, documentos, recortes de jornais relacionados, correlacionados e nem por isso e, no fim, tivesse vertido tudo para o livro, tudo, sem edição. Mas ouvi que, no original, era quase o dobro. Uma loucura, portanto. Mas, o que mais me chateia nem é isso: o que mais me incomoda é quando ele, o João Pedro George, volta e meia se pôe a inventar pensamentos para o Herberto Helder, admitindo que é provável que, naquelas circunstâncias, ele tenha pensado aquilo. Ora isso parece-me não apenas estulto como desnecessário, até descabido.

Bem. Isto está uma bela mescla de assuntos... É que estou a ver notícias enquanto escrevo. A macacada entre Trump e Musk é daquelas que há de dar filmes, séries, paródias, dramas, tratados de política, de psicologia, sei lá. Como só me dá para ligar o computador às quinhentas e me ponho a escrever às tantas, já perdida de sono, chego aqui e já me falta o pedal para desarrincar todo o muito que haveria a dizer. A ver se um dia destes tenho a pachorra suficiente para escrever o no blog a meio da tarde para me pronunciar sobre esta desconformidade. Entretanto, partilho um vídeo:

Donald And Elon Attend Couples Therapy


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Os meus limões andam a cair, estão pesados, maduros. Não apenas os aproveito para temperos e etc. como para servirem de modelos fotográficos. As rosas, já se sabe, estão sempre disponíveis para serem amadas, adoram pôr-se a jeito para uma sessão fotográfica
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Olhem, é isto.

Desejo-vos um belo sábado

sexta-feira, junho 06, 2025

Nem Montenegro, nem Trump nem Musk.
Hoje o tema é o meu cãobeludinho fofo que está com um problema aborrecido.

 

Volta e meia trocam-me as voltas. Pensava eu que esta quinta-feira, tirando um compromisso à tarde, teria um dia tranquilo. 

Estava eu ainda a digerir os alertas do Leitor a quem muito agradeço e cheia de receio pelos javalis, sapos, cobras e carraças quando constato que o nosso cãobeludo estava a lamber mais freneticamente do que antes uma qualquer coisa no quadril.

No domingo, tinha chegado da rua desencabrestado, como se tivesse que arrancar qualquer coisa ali naquele quadril. Não vi. O meu marido é que viu e pensou que ele tivesse alguma coisa ali presa no pêlo. Nessa manhã já tinha estado a puxar qualquer coisa de uma pata e tanto puxou e repuxou que acabou por tirar uma daquelas espigas maganas, ditas praganas. Pensámos que, fosse o que fosse, ele acabaria por também conseguir tirar. No domingo tivemos a maltinha toda cá em casa, uma animação, grande movimento e alta algazarra  -- por isso, não deu para lhe prestar grande atenção.

Na segunda-feira vimos que continuava a lamber-se ali. O meu marido disse que o pelo, naquele sítio, estava seco e duro, que, na volta, era outra vez resina. Esfrega-se em todo o lado e brinca com pinhas e, às vezes, fica com resina no pêlo. Demos-lhe banho. O meu marido disse que, se não saísse com o banho, tentava-se cortar ali o pelo. Mas, quando eu estava a lavá-lo, percebi que não era nada no pêlo. Tinha era um inchaço por debaixo. Ficámos intrigados. Pensámos que teria sido picado mas que, tal como acontece connosco, o inchaço acabaria por passar.

Entretanto, com as picardias com os cães do lado, andou sempre por fora, longe da casa, e admitimos que lhe tinha passado. 

Mas começou a comer menos. Nada de especial pois no verão tem sempre menos apetite. 

Só que hoje parecia mais murcho, mais por casa, pouco reguila, e sem tocar na comida.

De tarde, no jardim, o meu marido chamou-me para eu ver pois, com o pêlo molhado por continuar a  lamber-se ali naquele sítio, dava para perceber que havia ali um inchaço encarnado. 

Fui ver e não gostei do (pouco) que vi. Com o pêlo não dava para ver quase nada. Mas aquela pele encarnada e o inchaço causaram-me suspeitas. Fotografei. 

Mostrei a fotografia ao ChatGPT e descrevi o que se passava. Respondeu que poderia ser um abcesso, uma infecção, e que, dado que já estava assim há dias, deveríamos ir ao veterinário o quanto antes.

Claro que fomos. Mesmo que o ChatGPT não tivesse dito para irmos, iríamos pois estávamos a estranhar o sossego dele e não era normal aquele inchaço encarnado. 

Lá fomos. 

É sempre uma tourada. Temos que lhe pôr o açaime e o meu marido tem que o abraçar com toda a força para ele ficar imobilizado quando está na marquesa. Com a máquina, a médica tosquiou aquela parte. Quando vi o que estava por debaixo, fiquei mesmo incomodada. Inchado, já com pus, arroxeado, já com feridas de tanto lamber. Piedermite. Com o pêlo, não se via. Coitadinho. Como não haveria de estar incomodado...? Diz ela que deve ter sido qualquer coisa que o feriu ou picou e que de tanto lamber ali, certamente para se aliviar, a lesão infectou e espalhou a infecção. 

Desinfectou e tratou, deu-lhe uma injecção de antibiótico e outra de anti-inflamatório. E colocou o colar isabelino que ele, coitado, odeia. E agora, durante 7 dias, tem que tomar antibiótico e desinfectar e tratar duas vezes por dia. 

Um pesadelo. Vira-se, mostra os dentes, rosna, salta. Quando ponho o spray, que é frio (e, se calhar, lhe arde), fica possuído. Mesmo com a trela e com o colar, impõe respeito e dificulta muito o tratamento. 

Mas entre idas ao veterinário, à farmácia, tratamentos e outros afazeres, pouco consegui fazer daquilo que tinha pensado. Lá consegui ler o início do 'tijolo' que João Pedro George pariu sobre a vida de Herberto Helder. Provavelmente vai satisfazer alguma da nossa cusquice mas tomara que eu não sinta que estou a violar uma privacidade que o Poeta tanto se esforçou por preservar.

Fiz um vídeo que publiquei numa story lá no Instagram. Só que me distraí e o vídeo tem mais de 1 minuto. Ora ali, só se vê o que 'cabe' em 1 minuto. Por isso, não se ouve a parte em que eu dizia que, no capítulo dos últimos momentos do biografado, achava que o biógrafo inventou para ali umas cenas -- por exemplo, que ele, antes de morrer, olhou para as molduras e pensou nisto ou naquilo, o que, obviamente, é impossível saber -- se calhar para apelar ao sentimento. E isso desagradou-me. Também, no pouco que li, encontro carradas de referências desnecessárias, o que torna a leitura, nesses pontos, enfadonha. Mas estou no princípio. Por isso, não quero já fazer apreciações sobre a qualidade da obra. Até porque, assim como assim, quando acho que tanta conversa sobre a tia, a avó, a bisavó, a casa ou a loja é desnecessária, tenho bom remédio. Sigo adiante.

Mas, com isto, não vi tomada de posse nem coisa nenhuma. E, há pouco, ao ver o Eixo do Mal, deu-me a pancada e apenas fui vendo umas por outras. Por isso, não posso pronunciar-me sobre os temas da actualidade política.

Também não faz mal. Sabe-me bem, de quando em quando, dar-me algumas tréguas. Até porque tourada e da boa, à espanhola, é a que está a passar-se entre dois dos mais malucos de que há memória: Trump e Musk. Há pouco, estava a comentar com o meu marido, interrogando-me sobre como poderá um arranca-rabo destes acabar. Ele disse: 'Fazem as pazes.'. Talvez. Parece que meio mundo anda a voar sobre um ninho de cucos.

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Mais uma vez, as duas fotografias que ali acima coloquei foram feitas apenas com recurso à minha inteligência que de artificial tem muito pouco.

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Uma feliz sexta-feira

quarta-feira, junho 08, 2022

Algumas receitas para uma feliz sobrevivência

 

Espero que, muito rapidamente, a indústria avance com processos de electrólise invertida ou de dessalinização ou de formação artificial de nuvens ou o escambau ou o diabo a quatro. Tecnologia e técnicos que saibam da poda há-os por cá. Têm é que ser lançados programas de investimento virados para isto. E tem que ser rápido. Entre o business case, a mobilização do capital, o desenho e projecto da solução, o procurement, a construção, os testes e tudo o que é preciso até que uma fábrica comece a produzir vão anos (ainda mais com a escassez de materiais que há). E há que ter operadores e técnicos de manutenção - e não os há. Ou rapidamente o país aposta intensivamente em escolas técnicas ou arranja maneira de 'importar' gente com esse tipo de formação. Tudo isto leva tempo.

A subida da temperatura média, a seca, o facto de vários dos nossos rios virem de Espanha (e, como seria de esperar, Escassez de água leva Espanha a reduzir caudais dos rios que entram em Portugal) fazem perspectivar que o que, em tempos, parecia um cenário apocalítico longínquo já comece a bater-nos à porta. Temos que interiorizar que sem água não há vida e que, se não há água, temos que fazê-la. Tal como temos que produzir energia a partir dos recursos naturais e renováveis, temos também que produzir água a partir do que há à mão de semear e que, tão cedo, não se esgota.

Espero que consigamos viver em paz, salvar o planeta, salvarmo-nos a nós da insanidade de alguns e vivermos, de forma sustentável (ou sustentada?), com recursos sabiamente geridos. Se é com carne produzida em fábrica de carne a fazer de conta, se é com insectos ou legumes que hoje desconhecemos, se é com algas e outros produtos do fundo do mar, eu não sei. Mas o engenho e a arte têm que se virar rapidamente para a nossa subsistência e para a do terroir que nos coube em sorte.

No meio disto teremos que nos blindar para podermos cuidar dessas premências e não corrermos o risco de, nos entretantos, ser invadidos e destruídos por assassinos tresloucados. O que até há uns três meses nem nos passava da cabeça, afigura-se agora ser de extrema relevância. Um doido varrido pode deitar a perder anos de desenvolvimento e anos de esperança de vida (das pessoas e do planeta).

Casa Do Penedo, 1972, Celorico de Basto

E, last but not least, teremos que continuar a ser felizes e a tentar inebriar-nos com a arte, com a elegância, com a beleza, com a doçura dos bons momentos, com a melodia das palavras, com o voo dos corpos e dos pássaros, com a memória do passado e o sonho no futuro, com a ternura do afecto, com as mil e uma pequenas coisas da natureza.

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No estúdio com Claire Tabouret


Um vestido feito de vidro -- Iris van Herpen


Georgijs Osokins interpreta  Fragile e conciliante do Lamentate de Arvo Pärt 



Um quarto dos poemas é imitação literária / Herberto Helder dito por Fernando Alves



"Petite Mort", Pas de Deux numa coreografia de Jiri Kylian


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As fotografias pertencem a World Beauties And Wonders

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Desejo-vos um dia tão bom quanto possível
Saúde. Imaginação. Vontade. Paz.

domingo, julho 14, 2019

Mulheres nuas a ler.
Ou em topless.
E em grupo.





Há coisas que não percebo. Não estou com isto a dizer que não concordo, digo apenas que não percebo. Talvez porque tantos anos de falta de democracia e fechamento deixam marcas na sociedade, talvez ainda não tenha conseguido libertar-me de ideias que, na volta, só demonstram que sou antiguinha: é que associo o corpo não apenas a um invóluco assexuado dentro do qual se arrumam os órgãos e se esconde a alma mas a isso tudo e mais a um objecto de sedução e desejo, ou seja, tudo menos um objecto assexuado. E isto seja o corpo de uma mulher ou de um homem. Sendo hetero, se estiver ao pé de um belo corpo de homem, não posso deixar de olhar de gosto. E se, por acaso, calhasse estar sentada numa praia ou num parque e, junto a mim, estivesse um grupo de homens nus a ler, eu haveria de me ver grega para não me pôr a olhar à descarada. E mais: haveria de ter que me esforçar muito para não tirar todas as medidas, para não apreciar as posições, os gestos, a graça, a capacidade de malandrice.

Da mesma forma, se, numa tarde, no relvado de um parque ou à beira de um lago, visse um grupo de mulheres nuas, muito me espantaria que nenhum homem prestasse atenção, como se elas não passassem de um normal um bando de patos. 


Mas, lá está, na volta sou eu que sou antiquada. Se calhar por essas e por outras é que não consigo identificar-me com os movimentos feministas. Eu defendo a igualdade de oportunidades, a igualdade de direitos e deveres, entendo que uma mulher não é menos nem mais que um homem. Mas não consigo defender que o corpo de uma mulher seja um objecto assexuado tal como não acho que se um homem olhar com interesse para o corpo de mulher isso é sinónimo de machismo. Não aceitarei se for incorrecto, invasivo, estúpido, abusador. Mas olhar, mostrar interesse, ser simpático e não o esconder caso sinta que há reciprocidade, isso parece-me até saudável da parte de um homem.

E agora poderia dizer que há uma outra coisa que não percebo mas aí já hesito. Creio que já ouviram falar de clubes de leitura exclusivos para mulheres, sendo que elas se põem nuas ou em tronco nu para ler. E hesito porque percebo que se associe a nudez à leitura: um bom livro, quando verdadeiramente nos toca, é como se quisesse fundir-se connosco, como se a nossa disponibilidade para o receber fosse total. Mas isso é a única coisa que consigo perceber porque, de resto, também não percebo nada. Não percebo qual a graça de clubes só para mulheres ou só para homens. Nem percebo a lógica de um grupo de mulheres se juntar, em tronco nu ou todas nuas, para ler. 


Mas também admito que talvez pense isto porque nunca experimentei.
Quem sabe um dia não resolvo fundar o Clube das Leitoras Jeitosas? Traço um roteiro: Parque Eduardo VII, Jardins da Gulbenkian, Jardim Botânico, Jardim da Estrela, Jardim do Palácio de S. Bento, Jardim do Palácio de Belém, etc. Quiçá depois para outras cidades. Castelo Branco. Lousã. Faro. Vila Viçosa. Vila do Conde. Mértola. Sines. Coimbra. Porto. Etc. 
Uma vez por semana num dos Jardins, as Jeitosas todas nuas a lerem. Querendo poderiam ficar apenas em topless e querendo, para além dos livros, poderiam levar também farnel para um lanchinho. 
Mas adiante.

Como nunca me integrei em nenhum clube de leitura, não sei como se processa a escolha dos livros. Sei que há o livro sugerido mas não sei se o processo é rotativo, se uma semana escolhe uma, noutra semana escolhe outra.

E também não sei como se faz se o livro da semana for uma pepineira. Podem os membros exercer a objecção de consciência? Não ficará um clima de má onda entre os membros do clube se alguém, esforçadamente, seleccionar um livro e umas quantas flausinas se puserem a olhar de lado, a torcer o nariz?
[E imagine-se a cena com as flausinas de nariz torcido e com os mamilos em riste. Lindo. Ai, eu, o Valter Hugo Mãe não, pleeeaase, não é a minha praia, amigas -- e os mamilos espevitados, sem conseguirem disfarçar a irritação]
Bem.

Mas há outros tipos de clube: coisa mais discreta, menos (des)sexualizada, tudo mais na base da voz, gente que contribui com a sua leitura. E, de novo, não sei que diga pois estou habituada a ler em silêncio e não sei se esse prazer é substituível pelo da audição. Apenas de vez em quando, geralmente quando vamos de viagem, leio em voz alta para o meu marido. Não é frequente mas já aconteceu. Ele gosta. Fazemos quilómetros naquilo, eu a ler e ele atento a ouvir. Mas gravar? Cada uma ler um capítulo? Depois haverá pachorra para ouvir ler os capítulos que as outras leram? E se umas se armam em declamadoras do D. Maria? E outras, a despropósito, em hot women, dando cabo do lirismo que o autor queria imprimir ao texto?

Ou seja, não percebo.

[No entanto, agora que escrevo isto, há uma situação que percebo: para quem tem dificuldade de visão, ouvir ler é a alternativa possível e aí até será uma iniciativa generosa, a de ler para os outros]

© Mikael Jansson pour Vogue Paris

Mas isto a propósito do artigo Pourquoi les clubs de lecture sont-ils à la mode ? na Vogue francesa.
Portés par des célébrités influentes, des podcasts littéraires et une philosophie militante, ces groupes de discussion vieux du 19ème siècle connaissent une nouvelle vague de popularité. Bienvenue dans les clubs de lecture 2.0. [...]

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Com excepção da última fotografia que é da Vogue, acho que todas as outras se referem a um clube que aparece referido no dito artigo, The Outdoor Co-ed Topless Pulp Fiction Appreciation Society clube que, segundo percebo, defende o direito das mulheres a usar o seu corpo onde quiserem, mesmo que nu e mesmo que em público, como um corpo assexuado -- e isto para lerem onde muito bem lhes apetecer.

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Já agora:
Shakespeare a nu num dia de Tempestade

Members of Outdoor Co-ed Topless Pulp Fiction Appreciation Society put on a production of Shakespeare’s “The Tempest” — and the actors were all female and all nude


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E, já agora, reconheço: há alturas em que sabe mesmo bem ouvir ler.
E eu sinto-me agradecida pela amabilidade de quem me traz belas palavras lidas:

"No sorriso louco das mães" de e por Herberto Helder sobre música de Rodrigo Leão



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E a todos desejo um belo dia de domingo

domingo, outubro 28, 2018

Dia de frio in heaven, com um cogumelo e um faisão mesmo aqui à porta.
E mais uma fantástica reportagem vídeo da Sta UJM passeando por entre poesias e coisas assim.



Muito frio. Ao sol ainda vá mas, ainda assim, se se levanta o vento, logo se infiltra por entre as malhas do meu casaco. Trouxe um de lã macia, grossa e aveludada. Mas foi feito com agulhas ainda mais grossas pelo que ficou solto, leve e, portanto, o ar entra por ele com a maior facilidade. 

Quando chegámos a casa, estava mesmo fria. Como gosto sempre de abrir as janelas para arejar, o meu marido veio logo dizer que nem pensar. E à noite já tivemos que dar uso à salamandra. Muito bom, o calorzinho ameno aqui junto a nós. 

Ontem estive a ler o livro que tinha começado a ler no carro e do qual estou a gostar muito: Os testamentos traídos de Milan Kundera. É daqueles que estou a ler e a lamentar não ter a capacidade de memorização daquele meu amigo que até desconfio que seja pouco normal (e digo assim para não dizer anormal de todo): memoriza tudo. Tudo. Estamos a conversar e ele lembra-se de passagens de livros e depois di-las. Por vezes são livros que já li e ele diz: 'Lembra-se daquela parte em que ele se insurge e, com uma ironia fantástica, diz que...' (whatever) e eu não me lembro de nada. Até me faz sentir como se estivesse a querer enganá-lo. Este do Kundera dá vontade de memorizar e de transcrever para vos mostrar. Mas, como é bom em contínuo, desisto.


Agora a seguir vou voltar a ele. Já não vou poder deitar-me lá fora, ao sol, a respirar o perfume da figueira. Ou fico aqui ou vou ali para o lado, deitar-me no sofá, talvez com uma mantinha. E talvez deixe que o sono pouse sobre mim. 

De manhã andei a caminhar, a fotografar, a fazer os meus vídeozinhos bucólicos, a limpar a casa, a fazer o almoço. 

Agora, enquanto estava a escrever, reparei num pequeno vulto ali entre as folhas. Fui ver. Era um cogumelo. O primeiro cogumelo de outono. Fui fotografar.

E só surpresas. Estava também agorinha mesmo a colocar aqui a fotografia, diz o meu marido: 'Olha, um faisão'. Ao princípio nem percebi. Ele disse: 'Aqui à porta'. Nem queria acreditar. Era mesmo. Esta sala tem portas de vidro que dão para a rua. Um faisão lindíssimo passeava-se mesmo junto à porta. Rapidamente peguei na máquina mas ele já tinha ido para o pé da fonte. O meu marido disse: 'Se abres a porta, voa'. Mas, para o fotografar, para ter ângulo, tinha mesmo que abrir. Em silêncio. Mas ele ouviu, sobressaltou-se e voou. Grande, pesado, levantou voo e num ápice deixei de vê-lo. Ainda não estou em mim. Um faisão belíssimo aqui. Este meu heaven é habitado por seres muitos misteriosos.

Bem. Vou ler.

Deixo-vos com um dos vídeos de ontem. O meu marido já aqui esteve a gozar por eu, por muito que queira, não conseguir ter uma voz encorpada e lisa. Sai-me sempre esta voz sumida, com graozinho. Uma irritação. Ele diz: 'Mas se é a tua voz, como querias que parecesse outra?'. Olha, desisto. Paciência. Terão é que pôr o som bem alto para perceberem alguma coisa.



segunda-feira, agosto 20, 2018

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.



Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face.





Uma mulher desliza entre o verde que a rodeia. Respira com vagar, aspira os odores, sente os cheiros que a terra exala. Queria ser bicho e esconder-se ali, entre a folhagem, sob a caruma, entre os troncos das árvores. Está calor e sente saudade da frescura e do sereno afago da sombra. Desloca-se sob as árvores, procura abrigos onde o silêncio e o sossego sejam uma boa companhia.


Mesmo que não caminhe, os seus pensamentos vagueiam. Percorre memórias, relembra palavras lidas, imagina rostos, inventa biografias, constrói histórias. Por vezes abre os olhos mas não os foca na proximidade. Procura a lonjura onde se escondem aqueles em quem pensa.

As cigarras subiram para a copa das árvores e não dão tréguas. Inflamadas, agitadas, electrificam o ar quando a mulher o quereria pacificado. Queria o elegante esvoaçar das rolas, o canto alegre dos pássaros. Mas refugiaram-se do calor, procuraram outras paragens. Ou, então, estão apenas indolentes, silenciosos.

Depois volta a fechar os olhos. Os seus pensamentos continuam envoltos em verde, entrelaçados nos arabescos que os jogos de luz desenham. Solitariamente continua a entretecer lembranças, fiapos de conversas, poemas soltos, ecos de acordes longínquos.


Nos muros há poemas. Foi a mulher que os escolheu e ali os quis ter. E há pinturas. E há árvores e flores. E caruma. E a pesada ausência do canto dos pássaros. A mulher caminha e diz, num murmúrio só seu, os poemas que vai lendo.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. 
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.


Não quer muita coisa da vida, esta mulher. Quer apenas a inteireza das frontes inocentes e corajosas, a doçura espontânea dos corações amáveis, o abraço tão longamente esperado, adivinhado, tão desejado. Quer também a verdade das palavras. A verdade sem espelhos enganadores, sem perigosos labirintos. Só a verdade limpa e boa. Não é muito. Mas, se calhar, é.

A mulher caminha. Caminha com os seus passos solitários e silenciosos e com os seus pensamentos secretos. Vai nua, descalça. Assim gosta de andar, o sol e o calor na pele, a transpiração na nuca, no ventre.

- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei. 

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.

Depois ouve uma agitação entre as folhas, o som vivo de um outro ser. Detem-se. Espera. Espera que o silêncio pouse, de novo, sobre os seus passos.

E olha.


O outro ser está também em suspenso, em silêncio. Aguarda. Olha. Uma mulher que quer ser um bicho respira devagar, toda ela imóvel. E junto a si, igualmente imóvel, o outro ser, entre o verde e as folhas enrubescidas, aguarda. Tudo se conjuga nesse instante: a tranquilidade, a perfeição dos momentos únicos e inesperados, a vontade de que nada perturbe o sonho feliz, o silêncio e a paz das nossas existências.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.


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Excerto de O amor em visita de Herberto Helder
Embers de Max Richter
Fotografias feitas este domingo in heaven

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sexta-feira, agosto 03, 2018

Bibliotecas onde se sente a pátria portuguesa





Por algum motivo de que agora não me lembro bem -- mas que tenho ideia que tem a ver com a longa noite fascista -- a palavra pátria não tem conotações lá muito boas. Ou, então, isso é fruto da minha imaginação. Pode ser.

Mas eu gosto do conceito pátria. Gosta da minha pátria. Em especial, identifico-me com aquela coisa de a minha pátria ser a língua portuguesa. Essa ideia é daquelas bem paridas: ouvindo isso a gente quase sente vontade de jurar a pés juntos que, pela língua portuguesa, morrerria.

E depois há aqueloutro território: o dos livros. Podia fazer uma casa só com livros: as paredes feitas de livros, uma cama, um banco, uma mesa. Livros. Um caminho feito de livros. Podia viver no meio de livros.

Não sei se uma pessoa se revela através dos livros que possui. Admito que sim.


Já vos contei que, de vez em quando, não tendo especial má impressão de uma pessoa, quase fico a desprezá-la quando me conta, deliciada, a porcaria de livro que anda a ler? A sério. Disfarço, claro. Mas vem uma tal onda de rejeição cá de dentro...

Ou música. Por exemplo, não tinha muito má ideia de uma certa criatura. No outro dia fiz uma viagem com ele. Às tantas, resolve pôr a sua play list. Fogo... Lá uma ou outra que se aproveitava mas, a maioria, uma basbaquice, uma pimbice... E o tipo todo contente. E eu, por dentro, 'és cá um belo basbaque...'

Bem. Falava eu de livros.

A ver se nas férias de verão convenço o meu marido a ir ao Ikea comprar uma estante alta e a levar a estante pequena para o hall dos quartos. Ando nesta luta há séculos... e ele recusa-se. Quer o hall desatranvacado e não quer ir ao Ikea. Mas já não tenho onde pôr os livros. Por exemplo, agora tive cá, até há pouco, três meninos. Os pais foram comprar bicicletas e deixaram-nos cá. As crianças queriam sentar-se no cadeiraozinho pequeno e tiveram que estar a tirar-lhe os livros de cima. Felizmente não quiseram ir para um sofá para onde gostavam de ir e que agora está soterrado por livros. Acho que tantos os livros que nem perceberam que, por debaixo, estava o sofá que era de estimação.


Claro que, se vier a conquistar a estante nova, já sei que vou ter a mesma tentação de sempre: repovoar de novo toda a biblioteca. Enfim, repovoar mais ou menos. Tirar tudo, tudo, para fora e voltar a reordenar, redefinir critérios, arrumar direitinho, à larga, deixar ficar espaço livre para acomodar novos.

Uma coisa que, um dia que tenha tempo para mim, hei-de fazer é andar a conhecer bibliotecas, ver qual a organização, espiar os critérios, deleitar-me com obrasfantásticas, respirar o cheiro bom dos livros.

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Estas três que aqui partilho convosco são três das mais belas bibliotecas do mundo. Conheço as duas situadas em Portugal e confirmo que são especiais, belíssimas. Poderão ver outras em The world's most beautiful libraries – in pictures, artigo do The Guardian -- baseado em In a new Taschen book, the Italian photographer Massimo Listri travels around the world to some of the oldest libraries, revealing a treasure trove of unique and imaginative architecture

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E porque de palavras se fazem os livros e de livros as bibliotecas, aqui vos deixo algumas belas palavras ditas por quem as tão bem sabe dizer e escritas por quem as sabia arrancar da terra e de dentro do corpo


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A 1ª fotografia é da Biblioteca do Covento de Mafra

A 2ª fotografia é o Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro

A 3ª é a Biblioteca Joanina de Coimbra

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Desejo-vos um belo dia

quarta-feira, julho 04, 2018

Svetlana foi ao Porto e é tudo demasiado bonito para ser verdade.
Mas fazer o quê? Um quarto dos poemas também não é imitação literária...?
Portanto, nada como uma bela ménage a trois



Na pintura eu prefiro o que não se sabe o que é, o que não pretende ser bem feitinho. Na fotografia eu prefiro o pormenor indefinível ou o plano quase abstracto ou o prédio que tem uma árvore à frente. Na moda eu prefiro as assimetrias, as peças que se levantam ao passar da aragem, os decotes que quase poderiam ser precipícios. Nos textos eu prefiro os que têm as costuras à vista, os que provocam ou enternecem por razão nenhuma, os que me dão vontade de lhes passar uma rasteira. Nas pessoas eu prefiro as mal comportadas, as imperfeitas, as que procuram os sobressaltos.

E podia continuar.

Por isso, se vejo um poema muito arrumadinho, de uma lisura métrica e uma gramática simétrica, se numa música eu ouço uma melodia muito quadradinha, sem um sopro fora do sítio, se numa pessoa eu sinto pruridos, cuidados e temores e se numa fotografia eu vejo a pretensão da perfeição -- eu viro as costas e sigo noutra direcção. Tudo o que é muito composto, muito bem comportado ou muito perfeito a mim parece-me apenas foleiro. 

Não suporto a mediocridade ou a foleirice, em especial quando aparecem mascaradas de grande coisa.

Nomeadamente.

Estava aqui a ver umas fotografias e os meus olhos bocejavam de tanta perfeição. Até que numa achei o lugar familiarmente bonito. Detive-me. Li: Porto. Portugal.

A opinião manteve-se mas o meu olhar sentiu aquela tolerância generosa que a gente guarda para as pessoas da família por quem não sente empatia mas a quem dedica atenção porque, enfim, família é família -- Portugal é Portugal e eu tenho-o sempre no coração mesmo quando me aparece enroupado in lovely tiles.

Não sei se a Svetlana levou um banho de photoshop ou de outra coisa qualquer nem isso me interessa. O que sei é que há na autora vontade de beleza e isso merece ser louvado. A beleza é fundamental, é vitamina para a alma. Кристина Макеева tem várias fotografias deste género e, reconheço, algumas bonitas.

Mas, pronto, não faz bem o meu género -- e apenas a trago aqui porque se esmerou colocando a Svetlana envolta num padrão de azulejos e mostrando um luso-espaço que é mesmo bonito e, portanto, ok, por esta passa. E, porque hoje estou com o meu coração pacificado (confirmo: já fiz a minha má acção do dia), coloco até uma segunda fotografia da dita Кристина (desta vez a Svetlana estava em Valensole, Provence, França, toda ela cheirando a lavanda)

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Agora gostava mesmo, mesmo, é que ouvissem este belíssimo poema de Herberto Helder lido por Fernando Alves num vídeo do distinto Cine Povero, sobre pintura de Escher

Um quarto dos poemas é imitação literária
(...)
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na 
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
(...)

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E termino com um poema que acabei de receber. O L. envia-mo, desejando-me o melhor e eu, agradecida, partilho-o com todos os meus outros Leitores. Há pessoas simpáticas. É como a Gina que me deixou um comentário tão querido. Muito obrigada.


Inesperada chegas e te anuncias,
Rompes no subterrâneo das madrugadas
Os pedregosos trilhos dos meus dias
Nas rotas sempre inacabadas.
Entreabertas gelosias
Na esperança das luzes coadas,
Que sempre irrradias,
Nessas sonolentas e místicas chegadas
Envoltas nas tuas coqueterias.
Sol nascente,
Anúncio de um maio transbordante
No riso incendiado e quente.
Eterno e incansável navegante
Rasgando nas águas da nascente
O destino de um futuro distante.
No precipício do coração... latente
O redimir de um respirar ofegante,
Submerso no delírio que se pressente,
Exaurido, mas ainda ofertante
Ao prenúncio do astro incandescente.






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Afinal agora é que é, agora é que termino. E termino da melhor maneira. Com uma discreta ménage a trois. Que é como quem diz: com um pas de trois.

Os primeiro-bailarinos do Royal Ballet Edward Watson, Marianela Nuñez and Nehemiah Kish interpretam uma coreografia de Frederick Ashton: Monotones II. Música de Erik Satie. Coisa em bom.


quarta-feira, maio 23, 2018

A atenção comovida, o espaço cuidadoso, o alarme fascinado





Por vezes sinto uma compulsiva necessidade de tomar decisões erradas. Propositadamente. Como se precisasse de seguir um caminho já prevendo que não leva a lado algum. Contudo um péssimo rumo pode dar ir dar a um excelente resultado. A vida a tremer, a hesitar entre as mãos nervosas. Perder-me para me poder encontrar perdido. É lindo. É raro, mas acontece. A dor ainda é um sinal seguro de que estamos vivos, o resto menos.


Gosto de ti assim, quando não projectas as tuas ansiedades como dardos lançados para o coração e para os rins de gente que passa por ti e não imagina quem és. Guardei algumas dessas setas, que fui arrancando do meu corpo, dentro de uma caixa que nunca abri nem voltei a fechar. Como fiz então para guardar a seguinte? Não será hoje que te vou revelar os segredos das caixas que têm as mulheres onde guardam aquilo de que tu, e os outros, desconhecem o valor. Faço-te apenas notar que a relação de uma mulher com uma caixa é essencialmente diversa da relação que um homem pode ter com uma caixa.


De fotografia nada sei, a não ser a inquietante proposta dessa coisa mítica: parar o tempo num pequeno espaço e garantir-lhe uma ambição de eternidade. Mas quem pode garantir não ser ficção o cinetismo da realidade? É dentro de nós que as imagens correm. Mas o caçador chega ao mundo de fora e diz: Pára! -- e tudo pára. Temos um movimento visual escolhido pela atenção comovida, o espaço cuidadoso, o alarme fascinado. Na película impressionada fica a conjunção do sujeito com o objecto, síntese de um lapso da 'história', acabado de nascer e já votado às várias mortes das coisas todas.


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Quem canta I'm a a fool to want you é a extraordinária Angelina Jordan (que, não me canso de dizer, tem agora 12 anos)

Quem aparece nas fotografias é a não menos fantástica Gisele Bündchen. 

Os dois primeiros excertos pertencem ao mesmo livro do qual ontem transcrevi um little bocadinho.

O último é de Herberto Helder e pertence a 'em minúsculas'

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segunda-feira, maio 21, 2018

Porque lavorare stanca, abrandemos.
Fiquemo-nos pelas ligeirezas e pelas pseudo-profundidades.

Faça o teste:
É masculino/a? É feminino/a? Ou... está a meio caminho...?





Estive a passar fotografias para o computador e revi, com este meu encantamento que, racionalmente, chego a pensar que é quase pueril, aquelas múltiplas camadas de muitos verdes, aquelas súbitas flores encarnadas, a luz irrompendo por entre a folhagem, as cores que me trazem a memória dos perfumes quentes do campo ao meio dia.


Penso muitas vezes: será que podia mesmo passar in heaven o resto da minha vida, todos os dias, no meio das árvores, como um bicho, progressivamente melhor adaptada às estações, capaz de andar à chuva, ao sol, ao vento, capaz de distinguir os sinais da natureza, de identificar os sons e os calores, de subir descalça as barreiras de pedra, de comer os frutos e as folhas, de ser aceite pelos outros animais?

Não sei. Penso que teria sempre que intercalar com uma ida até ao mar ou até às margens dos rios, até às livrarias, até às ruas cheias de gente. Depois mergulharia de novo nos acolhedores e perfumados verdes, passando as minhas mãos agradecidas pelas flores, pelos troncos das árvores, pela terra.


Tinha pensado escolher algumas para aqui as ter, imagens capturadas momentos antes do céu enegrecer e soltar rasgadas chispas pelos céus. Talvez a das flores que nascem, rosadas, solares e elegantes, por entre as folhas secas. Ou as que, mais à frente, à sombra, nascem subtis e azuladas entre folhas verdes. Ou outras.


Mas a indolência tomou conta de mim. Apeteceu-me sentir uma ventoinha fazendo fresco na minha direcção. Liguei-a. Estou bem assim. Entre o meio sono, a meia consciência e a meia preguiça -- que, bem sei, juntas ultrapassam a unidade e está certo pois é como se um véu de macieza me envolvesse e, de certa forma, me moldasse, já fazendo parte de mim -- pus-me a ler um dos livros que agora aqui me acompanha. O acaso guia as minhas mãos que abrem o livro ao acaso e que, a cada vez, me traz uma mensagem que vejo como dirigida a mim.

Transcrevo um pouco:
Lavorare Stanca é o título de um livro. Significa trabalhar cansa.
Mestre José de Almada Negreiros costumava colocar-se nessa convicção de um modo um pouco mais agressivo. Dizia ele que "quem trabalha como uma besta não passa, evidentemente, de uma besta". (...)
O povo meteu num provérbio esta paz de consciência e de corpo: "Não é por muito madrugar que amanhece mais cedo."
O que a população deveria arrojar, em vez de tantos gestos, de tantas obras (que depois se obriga a desarrojar) seria ficar quieta, olhando à volta, ou em frente, que ainda cansa menos. Veria inumeráveis espectáculos que, com tanto entusiasmo trabalhador, lhe passam fora e longe. Veria as estações do ano, por exemplo.(...)

Pois. Tenho pela frente uma semana durante a qual não vou ver as estações do ano e durante a qual trabalharei como uma besta. Chegarei ao fim dos dias exausta, com a sensação de me ter gasto toda em urgências à toa e de nada restar dentro de mim. Talvez, com sorte, sobrem algumas exangues palavras que jogarei ao vento e que, com sorte, se enlaçarão noutras palavras.

Mas isso é durante a semana. Agora, apesar de já ser segunda-feira, ainda me sinto em fim-de-semana. Por isso, vou, uma vez mais, laurear por aí, procurar pequenos nadas que façam prolongar um pouco mais a sensação de descanso e despreocupação.


De novo, o Youtube tem um teste de personalidade para me entreter. Desta vez vai descobrir se sou mais masculina que feminina, se mais feminina que masclina ou se estou in between.

Penso, antes de o fazer: sou mulher da cabeça aos pés. Mas a verdade é que me sinto muito bem entre homens. Quase prefiro estar entre homens do que entre mulheres. No outro dia fui visitar uma empresa. Só homens na reunião e na visita às instalações. Depois fomos almoçar: só homens e eu. Não me senti nem um pouco deslocada. Outro dia, uma reunião, uma larga maioria de homens. No fim, diz o meu congénere alemão: uma surpresa ter do outro lado uma mulher, nestas empresas e nestas funções é muito raro encontrar-se uma mulher. Bem o sei. Mas, nestas situações, o género não é coisa que me ocorra. Sinto-me em casa. Dirigir reuniões, mesmo que complicadas, mesmo que só com homens, não me deixa desconfortável. Por isso, será que tenho um lado masculino que se traveste de mulher?



Então, vamos lá fazer o teste. Escolher decorações, maneiras de fazer a mala antes de viagens, escolher filmes, escolher reacções, escolher cores.  Convém não perder muito tempo, é responder à primeira. Não esquecer que isto não é nem pretende ser rocket science. Quanto muito, caso não se saiba a que eles se referem ou não se conheça o significado de algumas palavras, alguma pesquisa lateral mas, de resto, fazer na boa. Eu fi-lo sempre a abrir, na base do whatever -- que é das melhores bases que há (logo a seguir à decimal).

Depois de terem feito o vosso teste, já vos digo o que me deu.

Atenção: é preciso tomar notas e fazer uma continha no fim. Eu usei o excel mas, para quem não esteja à vontade, um papelinho e um lápis, serve bem.



Pronto. Espero que não tenham tido uma revelação que vos convide a sairem do armário.

Pois bem. No meu caso deu uma coisa que, na volta, se calhar até era expectável. Meio, meio. O que, segundo a explicação, vivo no melhor dos mundos, significando isso que, no trabalho, sou focada e racional como os homens costumam ser e, no resto, apaixono-me e faço coisas espontâneas a toda a hora o que, segundo quem o diz, deve ser coisa de mulher.


E eu o que concluo é que quem elaborou o teste e escreveu as conclusões está mas é cheio de preconceitos e de teias de aranha no sótão. Coisa mais parva e machista, credo. 
Ora vejam bem:
If your masculine and feminine halves take turns driving you, you’ve got the best of both worlds. You can keep your head straight and follow strict logic at work, then fall in love and do something spontaneous the next day.
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O excerto lá em cima é do livro 'em minúsculas' de Herberto Helder.

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E queiram continuar a descer caso queiram saber as vantagens e desvantagens de se dormir nu 

segunda-feira, março 26, 2018

Valtinho, melga confesso, enerva-se com o Herberto Helder



Teve um poema em que dialogava com Herberto Helder. É um deus?
É verdade... O Herberto Helder foi para mim das figuras mais iluminantes do mundo e vivi com a ansiedade de o poder conhecer. Mas o Herberto não era acolhedor. Cheguei a falar com ele por telefone umas duas vezes e até lhe bati à porta - teria uns 26 anos -, e falámos pelo interfone. Não abriu a porta nem me quis receber. Disse que só queria apertar-lhe a mão e ter o privilégio de olhar a cara dele uma única vez; recusou e disse que não desceria nem abriria a porta. Depois disso, disseram-me que estava sempre num café, mas achei que não me competia aproximar mais dele. Foi o que fiz, deixei-me estar. Magoou-me e vai magoar-me a vida toda o facto de ele não ter tido normalidade suficiente para me cumprimentar, mesmo que continue a ser uma personagem divina no meu universo.
O poema não está nesta antologia!
Não está e nem desgosto dele, mas o Herberto Helder enerva-me e por isso não está no livro.

[excerto do artigo: "Herberto Helder enerva-me, por isso não está neste livro", com uma entrevista feita por João Céu e Silva a Valter Hugo Mãe]