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terça-feira, maio 31, 2022

Havia dois caminhos e eu escolhi o outro

 


Um título chamou-me a atenção. Fui ler e afinal não era bem o que estava à espera. The big idea: could the greatest works of literature be undiscovered? Only a fraction of the world’s stories have survived. What might we be missing?

Preferia que fosse sobre obras não entregues nas editoras ou obras entregues e rejeitadas. Ou obras perdidas. Obras esquecidas. Obras mal amadas por quem as gerou. Mas não noutros tempos. Agora, ainda. Todos os dias, algures, alguém a acabar uma obra, a sua obra, e depois, pelas voltas e desvoltas da vida, ninguém vir a saber de nada. E, no meio de tantas obras abandonadas pelos tempos, estarem obras primas. Para sempre esquecidas.

Ou músicas. Ou pinturas. Ou fotografias. 

Por vezes acontecem milagres e muito tempo depois, por um acaso que apenas um qualquer deus pode ter inspirado, essas obras perdidas aparecem, ressuscitam. Aconteceu isso com as fotografias de Vivian Maier. Mas é muito raro.

A vida é uma combinação infinita de acasos. O milagre é o que acontece e tudo o que acontece é um milagre. Tudo o resto fica por acontecer.

Bastava, por vezes, um gesto de apoio, bastava um passo dado numa outra direcção, bastava a pequena coisa que não aconteceu naquele momento.

É como os amores. O que aconteceria se, num certo dia, num certo instante, coexistissem no mesmo espaço aqueles que, se isso tivesse acontecido, teriam sido amantes para o resto da vida?

Jamais o saberemos. 

O que sabemos é que a cada fracção de segundo acontecem acasos, acasos, acasos.

Uma vez, há muitos anos, o responsável de uma área da empresa em que eu trabalhava, ia reformar-se. Nos meses anteriores eu tinha trabalhado com um outro que me tinha parecido muito responsável, muito conhecedor. Propus o seu nome e, embora na altura, a decisão não fosse minha, a minha opinião foi tida em atenção. Ocupou, efectivamente, o lugar deixado vago pela reforma do outro senhor, progrediu profissionalmente e foi bastante bem sucedido. Poucos anos depois, soube da vaga de um director daquelas áreas mas numa outra empresa do grupo. Perguntaram-me se recomendava alguém. Voltei a pensar nele. Seria um salto na sua carreira. Falei nisso. O administrador da altura achou bem. Privilegiava-se a rotação entre cargos. Seria dar uma oportunidade a alguém muito responsável. Além disso, ele tinha recebido um curriculum vitae de um jovem que poderia ocupar a vaga e vir a ser uma lufada de ar fresco. Com a luz verde do administrador, falei na oportunidade de um lugar de director àquele tal. Hesitou. Não era ambicioso, preferia viver na sua zona de conforto. Insisti. Não desperdiçasse a oportunidade: a água não passa duas vezes de baixo da mesma ponte, dizia-lhe eu. Ele reticente. Aliciaram-no, incrementaram as condições. Acabou por aceitar. Agradeceu-me muito por mais uma vez me ter lembrado dele. Para o ex-lugar dele foi o tal rapaz novo, vindo de fora, de uma outra realidade, desconhecido de todos. Este rapaz, agora homem feito, por mais uma sucessão de acasos, é agora o pai de alguns dos meus netos. 

Acasos, acasos, acasos. 

Ou as casas em que tenho vivido -- outros acasos. Nunca quis casas feitas de novo. Sempre preferimos casas existentes. Mas, com as nossas exigências, nunca descobríamos o que nos agradasse. Quando andávamos à procura de uma casa no campo, vimos dezenas, ao longo de anos. Ao fim de semana íamos à procura de casas ou quintinhas. Tenho ideia que ainda não havia as remax, era, century 21 e etc. O que estava à venda tinha uma tabuleta e a gente ia a passar, via o número de telefone e ligava. Até que num fim de semana de chuva, não fomos, estava mau tempo para andarmos à procura. Então, estava em casa a ver o Expresso e, às tantas, vi um anúncio. Não era nada do que pretendíamos nem era minimamente nos lugares onde até então tínhamos andado a ver. Zero. Mas bateu-me uma daquelas intuições que me chegam com carácter de urgência. Telefonei. Perguntei se podíamos ir ver nesse dia. Fomos. E imediatamente nos apaixonámos. Todos. Os miúdos numa alegria. Os papéis da casa e do terreno não estavam em ordem, uma confusão, nem certidões nem registos, a maior barafunda. Quase queriam convencer-nos a desistir. Mas não desistimos. É o nosso querido heaven. Se não tivesse estado mau tempo e eu não me tivesse posto a ver os anúncios, provavelmente a história tivesse sido outra.

E poderia continuar. E se dei exemplos meus foi apenas por facilidade. Qualquer pessoa terá os seus infinitos acasos. Mil caminhos, infinitos caminhos. E nós vamos por um. O que teria sido a nossa vida se tivéssemos escolhido qualquer outro nunca o saberemos. 

Devemos sentir-nos agradecidos pelo que temos. Mas devemos estar atentos, disponíveis. Nunca há apenas um caminho. 

[O que não sei é se somos nós que escolhemos o caminho ou se, de certa maneira, é o caminho que nos escolhe a nós -- mas isso já seriam outros quinhentos (como agora soe dizer-se).]


The Road Not Taken, by Robert Frost 



Fotografias de Vivian Maier na companhia de Nina Simone com Mr. Bojangles
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Desejo-vos um dia bom
Acasos felizes. Paz.

domingo, março 22, 2020

Havia uma estrada e fomos por outra





Este ritmo e esta maneira de viver não estão nos meus hábitos. Passei, sem mentalização prévia e sem preparação psicológica, do meu ritmo de sol a sol, de horas de trânsito, de muita gente permanentemente à minha volta, de visitas à e da família ao fim de semana, do carinho naturalmente expresso, para este regime de clausura, só os dois e todos os outros à distância. 

Durante a semana foi uma aflição, trabalho e stress em excesso. Entretanto, alguns a queixarem-se que deveríamos retomar os trabalhos noutra área. Ainda não estou a ver bem como mas já marquei uma videoconferência para segunda-feira. Trabalho que me farto e há sempre alguém a querer mais. Lembrei-me tarde demais que me esqueci de ligar a três pessoas com quem tinha obrigação de estar mais próxima. Lembrei-me também tarde demais que deveria ter enviado um mail ou feito um telefonema a uma pessoa a quem despachei a grande velocidade e à bruta num dos dias de maior confusão. Esgotei-me durante a semana que passou e receio a que aí vem. Tenho que perceber que, se calhar, este vai ser agora o meu novo normal. E não gosto. Estou em minha casa, apetece-me passear ou descansar, e não consigo. E isso faz com que me sinta ainda mais cansada e desalentada.

Faz-me muita impressão estar aqui, neste lugar que sempre esteve associado a férias, fim de semana e lazer, e não o usufruir como tal.


Este sábado acordei tarde, o meu corpo recarregou baterias. Mas acordei com o som de mails e mensagens a chegar. Até à hora de almoço estive com isso. Não me apetecia mas teve que ser. Tenho arrumações para fazer mas durante a semana não consegui lá chegar e hoje não tive disposição. O tempo não me rende, parece que ando meio desorientada. Andei pelo campo, soube-me bem, mas já eram horas de pôr o almoço ao lume. 

Depois de almoço peguei numa mantinha, no livro, na máquina fotográfica e no telemóvel e reclinei-me na espreguiçadeira. Estava frio. Pus-me a ler e, de quando em quando, fotografava. Reparei que a estrelícia já quase desabrochou. Estar aqui, nesta altura, todos os dias, permite-me assistir a uma coisa a que nunca tinha assistido: a chegada da primavera, em tempo real. Num dia há umas florzinhas a despontar nos marmeleiros, no dia seguinte já há mais, há pequenos frutos a adivinhar-se, um milagre em permanente devir.

À medida que a tarde avançava, entre esquivos raios de sol, pingos de chuva e páginas de boa escrita, ocorreu-me que isto, se me abstrair de tudo o resto, tem o seu lado bom.


Depois, fechei os olhos e comecei a fazer respirações a ver se me ajeitava na meditação. Contudo, a minha mente levou-me para outros lugares, lugares desconhecidos, lugares que nem consigo imaginar. Levou-me até seres sem rosto, sem nome. Levou-me até palavras que me chegam de longe, bálsamos, consolos. Inspirava, devagar, um, dois, três, quatro, cinco, seis, depois expirava, devagar, um, dois, três, quatro, cinco, seis. De novo, inspirar, um, dois, três, quatro, cinco, seis. Uma tranquilidade, o som dos passarinhos, a luz coada pela chuva ligeira, uma rola a voar e a pousar ali perto. Eu já a olhar, esquecida que deveria ter os olhos fechados. 

Depois, de vez em quando, um pouco de tristeza por não saber qual o desenlace de tudo, sem saber como este caos se vai reorganizar. Muita apreensão por Itália, a morte à solta sem dar tréguas, tanto tempo decorrido e aquela tragédia, tanta gente a morrer, angústia pelo que se passa também em Espanha, pessoas de idade doentes que ninguém vai buscar nem tratar, mortos que ninguém vai levantar e que nem podem ser velados. O ensaio sobre a cegueira dolorosamente levado à cena.


Tento afastar os pensamentos, tento apenas respirar. Depois reparo que, de longe, já não me chega o som do mar. Era o ruído dos carros que, até há uma semana, passavam na autoestrada que corre lá bem longe  e que, coado pelo ar da distância, me parecia o suave rumorejar das ondas. Agora parece que passou muito tempo, que isso foi numa outra vida. Agora há apenas o silêncio e o canto dos pássaros.

Ao meio dia, estava eu ainda de roda de mails e mensagens com colegas de trabalho, chegou mensagem do meu filho à família dizendo que os números eram bons. Fui ver ao DN. Mais de duzentos infectados e os mortos já em doze. Mas tudo é relativo e nesta luta contra o invisível e microscópico inimigo, até as más notícias podem ser boas notícias.

De noite, ele enviou-me excerto de uma entrevista: uma pancada de mais de 8% no PIB, uma escalada de desemprego. A bruxa da foice não ceifará apenas vidas mas também qualidade de vida a muita gente, se calhar a quase toda a gente. Sendo expectável uma segunda onda de contágio dentro de meses, quando se sair deste isolamento, seremos outros, o mundo será outro, e em muitos aspectos, tudo será irreversivelmente diferente. A prazo haverá reconversão, novos sectores de actividade despontarão, outros retomarão a actividade -- mas tudo será diferente. Talvez esta ruptura, esta fractura, seja importante para a salvação do planeta. Descobrir-nos-emos menos poluidores, menos irracionais. Talvez reaprendamos o respeito pela natureza e pelos outros. Mas, enquanto não reeencontrarmos o equilíbrio, haverá muito desemprego. Presumo que o sector do turismo e o das viagens internacionais sejam dos que mais sofrerão. O sector dos espectáculos ao vivo, seja de que área forem, se calhar também, pelo menos enquanto não aparecer a vacina. Mas é quase certo que a vacina não estará disponível antes de ano e meio. E durante um ano e meio os hábitos mudam, as pessoas desabituam-se.


Ao fim da tarde arrefeceu, a mantinha já não era suficiente. Vim para dentro. Vim com o meu livro, voltei a ler. A inteligência quando aliada ao saber e à estética deslumbram-me. Sinto quase uma inquietação, como se o que leio, de tão inteligente, sábio e belo me sobressaltasse. 

E depois foram os telefonemas, os meus meninos, lindos, irrequietos, risonhos, os meus filhos também nesta sua nova vida, a minha mãe, umas vezes preocupada, outras bem disposta. E depois hora de jantar. E depois sempre isto, aquilo e o outro. E eu a tentar acompanhar mas deixando-me levar. Parece que perdi o meu ritmo, o tempo passa e parece que dele nada fica.

Durante o dia, penso no que leio, penso nas ideias que me ocorrem, penso que vou escrever aqui mais cedo, que vou falar disto e daquilo e depois escrever um mail, mas depois esvai-se-me a vontade, esvaem-se-me as ideias e esvai-se a vontade de dizer tudo o que penso e de desvendar tudo o que queria saber e, ao mesmo tempo, que não, que não quero saber. Por isso, preguiço, entedio-me, hesito, protelo.

Apetece-me não escrever nada, apenas pedir: 'fale-me de si'. E depois ficar a imaginar como será quem generosamente acedesse ao meu pedido e me falasse do si.


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Tenho que tentar adaptar-me melhor a esta situação, tenho que saber assimilar a distância, tenho que arranjar trabalho físico que me canse, tenho que afastar de mim preocupações, tenho que pensar que tudo isto é bom para o futuro dos homens e do planeta. E tenho que me concentrar na beleza das flores, na beleza da luz a iluminar as pequenas folhinhas das videiras, no mistério e beleza de algumas palavras, na paz que se desprende de tantas coisas. 

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Há pouco, antes de começar a escrever, estive a ouvir poemas ditos e a ver a mais alada de todas as criaturas lançando-se em pleno ar. E pensei mais coisas. Mas agora não vou para aqui pôr-me a falar delas. Vou apenas partilhar convosco.





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A todos desejo um bom dia de domingo

segunda-feira, abril 30, 2018

A sorte. O acaso. A beleza. A felicidade.





Hoje foi um dia especial para mim por razões cá minhas. O programa não foi exorbitante nem a mim já me entusiasmam os programas exorbitantes: foi simplesmente tranquilo e simples que é aquilo que realmente aprecio e que transforma os meus dias em dias bons.


A Primavera, que anda chuvosa faz-se anunciar aqui, in heaven, através dos cachos de glicínias. São lindas e perfumadas, estas flores. Há alguns anos plantei uns dois ou três pequenos pés. Durante algum tempo não se deu por elas. Mal medravam. Eu regava-as, enchia-me de cuidados, tirando as ervas que despontavam à sua beira não fosse roubarem-lhe os sucos vitais da terra. Contudo, tal como aconteceu em todo o terreno, aconteceu aquele mistério que, até hoje, não consigo explicar. Parece que a terra se transformou e, apesar dos climas extremos que aqui acontecem, e apesar de eu não ser assídua na rega durante os verões de inclemência, a verdade é que os pés de glicínia tomaram o futuro nas suas mãos e desataram a crescer, vigorosos, enleando-se nos gradeamentos e nos portões, galgando alturas, trepando pela azinheira e pelo loendro, como intrépidas aventureiras, como se quisessem ganhar o céu.


Mas não são apenas as glicínias. As flores estão por todo o lado e eu encanto-me como um pássaro, deslizando entre elas. Não canto mas fotografo. Rendo homenagem à graciosidade que nasce da terra, milagres sempre merecedores de devoção. Gostava de ter alma de poeta, gostava de saber destilar a minha emoção e encontrar as exactas e puras palavras que saibam honrar a beleza em estado puro das flores. Mas não tenho esse dom.

Fico com vontade de voltar a pintar, de ter à minha frente uma tela gigante e desatar a lançar cores, a inventar formas e a lançar brilhos e pontos de luz em plena liberdade, sem ter que ser fiel à realidade nem a preocupação de agradar. Mas parei. Talvez um dia recomece. Sinto falta da suprema liberdade que sentia.


Fomos também dar um pequeno passeio. Parámos algumas vezes. Os campos estão lindos. À beira do rio, estes lírios ou orquídeas amarelas são de uma elegância e beleza raras e são-no tanto mais quanto são tão injustamente efémeras. Não há muito, ao passar por aqui, não existiam. E receio que, da próxima vez, já cá não estejam. Mas para o ano, assim o rio vá farto e vivaz como está este ano, cá estarão elas, sílfides etéreas procurando o seu reflexo da superície verde das águas. A natureza ressurge mesmo quando parece que se ocultou para nunca mais. 

Parámos também na curva da estrada, onde a encosta está cheia de papoilas e de malmequeres amarelos. Baixei-me para ver as flores como um pequeno animal as verá.


Crescem pela encosta, recortando-se, lá em cima contra o céu, ondulando ao vento, misturando o seu perfume com o dos pinheiros. Um cenário colorido, uma coreografia que o vento comanda.


Estava muito frio. Choveu muito de tarde mas, por momentos, o sol despontava, iluminando os campos floridos. Vendo as fotografias, parece que o frio não se percebe, parece que o ambiente é apenas solar, aberto aos prazeres calorosos da contemplação emocionada. Mas estava um vento frio e o meu marido, que tinha saído do carro pois tinha deixado de me ver, perdida que andava no meio das flores, começou a chamar-me, que estava muito frio para eu andar por ali.

Mas mais à frente, voltei a pedir que parasse. Uma grande árvore florida, no meio de um campo verde, à beira do rio, ali onde ele ia alto, quase a transbordar.


Pensei que seria capaz de ficar horas, em paz, em frente desta árvore. A música da água que corre, a música do canto dos pássaros, a música do vento nas ramagens das árvores, a tranquilidade do verde pontuado de branco, tudo aquilo me parece a imagem perfeita da consubstanciação dos elementos da natureza, a harmonia abstracta feita matéria.

É preciso tão pouco para eu me sentir feliz. A beleza enche-me de felicidade.



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Penso, por vezes, que o nosso destino resulta da forma como reagimos aos sucessivos acasos que se nos vão deparando, das escolhas que fazemos perante esses acasos -- e que a felicidade reside na sorte que se tem com a escolha dos caminhos e na vontade de ir em frente não pensando, com mágoa ou arrependimento, nos caminhos que vamos deixando para trás.

Mas, enfim, cada um sabe de si e eu não sou dada a filosofar, muito menos sobre temas tão íntimos.


Be happy
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