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segunda-feira, março 01, 2021

Acredite num amor que está guardado para si como uma herança

 


Numa ideia criadora revivem milhares de noites de amor esquecidas que a enchem de nobreza e de altura. E os que se unem na noite e se enlaçam numa volúpia embaladora, fazem obra séria e acumulam doçuras, força e profundidade para o canto de qualquer poeta que há-de vir, que se erguerá para dizer delícias indizíveis. E convocam o futuro; e se também errarem e se abraçarem às cegas, o futuro vem na mesma, levanta-se um homem novo e, no terreno do acaso que aqui parece realizado, desperta a lei que impele uma semente forte e resistente para o óvulo que se abre ao seu encontro. Não se deixe iludir pelas superfícies; nas profundezas tudo se torna lei. 



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O pequeno texto é um excerto da carta de Rainer Maria Rilke a Franz Kappus datada de 16 de Julho de 1903. Da mesma carta foi extraído o título deste post.

Fotografias feitas hoje cá em casa

Maria Callas interpreta Madame Butterfly de Puccini 

O Segredo de Maria Teresa Horta é dito por Pedro Lamares

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terça-feira, fevereiro 16, 2021

A sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes

 




As coisas não são todas tão apreensíveis e dizíveis como muitas vezes se gostaria de nos fazer crer; a maior parte dos eventos são indizíveis, perfazem-se num espaço que nunca foi tocado por uma palavra, e mais indizíveis do que tudo são as obras de arte, existências secretas cuja vida perdura enquanto a nossa passa.

(...)


Entre dentro de si, Procure o motivo que o faz escrever; examine se ele tem raízes até ao lugar mais fundo do seu coração, confesse a si mesmo se viria a morrer no caso de escrever-lhe ser vedado. Isto antes de mais nada; pergunte-se na hora mais calada da sua noite: tenho de escrever? Escave em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta soar afirmativamente, se o senhor tiver de enfrentar esta questão séria com um forte e simples 'Sim, tenho', então construa a sua vida em função dessa necessidade; a sua vida terá de ser um sinal e um testemunho desse impulso até nas horas mais indiferentes e insignificantes. Então aproxime-se da natureza. Então tente dizer, como se fosse o primeiro homem, o que vê e vive e ama e perde. Não escreva poemas de amor; comece por evitar aquelas formas que são mais correntes e comuns: são as mais difíceis, pois requer uma grande força amadurecida exprimir o que nos é próprio quando já existem acumuladas tantas produções boas e até esplendorosas. Por isso salve-se dos temas gerais para os que lhe oferece a vida de todos os dias; descreva as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros, a fé em qualquer forma de beleza -- descreva tudo isso com sinceridade íntima, tranquila, humilde, e utilize para se exprimir as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos e os objectos das suas recordações. Se o seu dia-a-dia lhe parece pobre, não o lamente; lamente-se a si, diga para consigo que não é suficientemente poeta para convocar as suas riquezas; pois para o criador não existe escassez nem lugar pobre ou indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão cujas paredes não deixassem chegar nenhum dos ruídos do mundo aos seus sentidos -- então não teria ainda e sempre a sua infância, essa riqueza preciosa e principesca, essa câmara dos tesouros da lembrança? Concentre nela a sua atenção. Tente despertar as sensações afundadas desse passado longínquo; a sua personalidade ganhará firmeza, a sua solidão há-de alargar-se e tornar-se uma morada crepuscular e o ruído dos outros passará ao longe. 

(...)

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Num dia suave, solarengo, a anunciar dias melhores, não apenas trabalhei de sol a sol como, depois, antes de jantar, li. E, depois de vários telefonemas de trabalho, a tranquilidade das vozes da família: falei com os meus filhos e com a minha mãe. De dia, a meio da tarde, num pequeno intervalo, andámos no jardim. Os pássaros cantavam, felizes da vida. Fotografei enquanto fazia um telefonema. O telefonema não foi especialmente agradável mas as flores estão tão bonitas que não há arestas afiadas que anulem a sua beleza. E outra coisa: confesso, ao fim do dia já estava com a cabeça noutro sítio. A nossa vida melhora quando conseguimos que a nossa cabeça voe sem freios, por todos os lugares onde o corpo gostaria de estar.

Os textos são excertos de Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria Rilke. Estas fotografias, como é bom de ver, foram feitas aqui em casa. E agora, despudoradamente, fizeram-se acompanhar por Glenn Gould a interpretar Bach (Goldberg Aria).

Para terminar, para fazer a vontade ao LF (comentário no post mais abaixo): 

I'll go on - Rainier Maria Rilke

Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te.
Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te.
E embora sem pés caminharei para ti.
E já sem boca poderei ainda convocar-te.
Arranca-me os braços: continuarei abraçando-te
com o meu coração como com a mão.
Arranca-me o coração: ficará o cérebro,
E se o cérebro me incendiares também por fim,
Hei-de então levar-te no meu sangue


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Desejo-vos um feliz dia de ex-Carnaval
Saúde. Alegria. Risos.

segunda-feira, fevereiro 15, 2021

Aquele que se dilacera nas coisas e em seguida se consome nelas. O anjo despedaçado.

 


... Ah, os poemas são tão pouca coisa quando os escrevemos cedo. Devia-se esperar e acumular sentido e doçura ao longo de toda uma vida, e esta ser tão longa quanto possível, e então, mesmo no fim dela, talvez se pudesse escrever dez linhas que fossem boas. Pois os versos não são sentimentos (esses têm-se cedo que baste) -- são experiências. Por causa de um verso tem de se ver muitas cidades, pessoas e coisas, tem de se conhecer os animais, tem de se sentir como os pássaros voam e de saber os gestos com que as pequenas flores se abrem pela manhã. Tem de se poder voltar com o pensamento a caminhos de regiões desconhecidas, a encontros inesperados e a despedidas, que se viam a vir, -- a dias da infância ainda por decifrar, aos pais que tinham de sentir-se magoados quando davam uma alegria a um filho e ela não era entendida (ficava para outro --), a doenças infantis que tão estranhamente surgiam com tantas transformações profundas e graves, a dias em espaços silenciosos e reservados e a manhãs junto ao mar, sobretudo junto ao mar, a mares, a noites de viagem que se elevam tão alto por ali fora e voavam com todas as estrelas, -- e ainda não é bastante que se possa pensar nisso tudo. Tem de ter-se lembranças de muitas noites de amor, cada uma diferente das restantes, de gritos de trabalhos de parto e de mulheres que dão à luz, leves, brancas, adormecidas, e se fecham. Mas também se tem de se ter estado junto dos moribundos, de se ter ficado sentado ao pé dos mortos, no quarto, com a janela aberta e os ruídos intermitentes. E também não chega que se tenha lembranças. Tem de se poder esquecê-las se forem muitas e tem de se ter a paciência de esperar que elas regressem. Porque as própria recordações ainda não são nada. Só quando se tornam sangue em nós, e olhar e gestos, já sem nome e impossíveis de distinguir de nós mesmos, só então pode acontecer que, numa hora muito rara, desponte no meio delas a primeira palavra de um verso e delas se desprenda.


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Diz Pierre Mertens de Rilke, l'ange dechiré: (...) Rilke parece que se dilacera nas coisas e em seguida se consome nelas. Não é um génio dado, é um génio obtido, um génio adquirido, um génio lentamente elaborado em que o trabalho da vida finalmente coabitou com um estranho e lancinante trabalho de luto. Foi aí que, nele, o anjo se despedaçou.



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Estive a ler. Uma cadeira branca ao sol. Os pássaros a cantarem. 

Pelo meio fui apanhar uma laranja que comi logo ali, doce, doce, sumarenta, e uma tangerina para levar para o jantar e um pouco de hortelã para perfumar a sopa.

Fotografei as flores, cozinhei, caminhei, li.

Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke, tradução, prefácio e notas de Vasco Graça Moura.



E foi deste livro que, ao som de The Poet Acts de Philip Glass, na interpretação de Katia Labèque, extraí os dois excertos que acima transcrevi, de um dos quais respiguei o título deste post. Lendo aquelas palavras não pude deixar de pensar num outro anjo despedaçado; mas há pensamentos que não são para aqui chamados.

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Já agora, para não ser só prosa:

You who never arrived 
de Rainer Maria Rilke

You who never arrived
in my arms, Beloved, who were lost
from the start
(...)


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Desejo-vos uma semana feliz a começar já por esta segunda-feira.
Saúde. Alegria. Ânimo.

sexta-feira, maio 20, 2016

Pois em lugar algum se vê um imortal já no céu...


O tempo corre em plena luz do dia tão secretamente
como o ladrão na noite.

Cravar o olhar no tempo, gritar até que o
medo o petrifique: redenção ou catástrofe?





Com uma certa indolência, deitada no sofá, o computador em cima de mim enquanto leio, deixo passar o tempo devagar. Que ele nunca passe apressado, roubando partes de mim. Quero-me mortal, sim, degustadora de tempo, amante do fluir que, um dia, me há-de levar para o lugar do nunca.

Sem pressa, dizia, vagueio pelas páginas dos livros, pelos ecrãs. Procuro o que me pareça coisa rara.
Mas não é fácil. Penso que há tanta, tanta gente que escreve que me parece provável que, tal como eu escrevo anonimamente, algumas das pessoas com quem lido diariamente, também o façam.
Talvez a blogosfera não seja formada por um grupo restrito de pessoas que não passa sem escrever nas, sim, por uma amostra da sociedade. É que, ao ler alguns blogues, detecto uma cópia da futilidade que encontro no dia a dia, mais do que a necessidade de escrever. Para já, nunca descubro blogues por mim, sou pouco mais do que blog-excluída. Contudo, volta e meia vou atrás de alguns comentadores que vejo noutros blogs. E fico perplexa. Como daquelas ondas baixas que, junto à rebentação, trazem toda a espécie de lixo que o oceano cospe, assim alguns blogues: insinuam, maldizem, atacam-se uns aos outros ou copiam-se  ou comentam as vacuidades que outros já comentaram. Cansa-me isso e interrogo-me: porque escrevem? Mas vejo pouco mais que a ponta de um imenso iceberg de palavras que se propagam pelos ares: instagram, facebook, twitter, blogues, blogues, blogues. Por cabo ou pelos ares, o planeta deve estar saturado desta imensa cacafonia que por aí circula. E eu, que para aqui estou a falar, contribuo para isso.

Mas o que penso de muitos blogs, penso também de livros. Entro numa Fnac e são prateleiras e estantes cheias de lixarada. As montras da Bertrand a mesma coisa: lixo, lixo, lixo. Muita cor, muita palavra vazia.

No meu dia a dia a mesma coisa: pessoas que só falam de trabalho e que, com ar enfático, dizem que nem deram por ser feriado ou fim de semana. É frequente eu receber mails de trabalho ao sábado, ao domingo. E geralmente nunca é nada de urgente, tudo coisas que, sem problemas, poderiam ser enviadas durante a semana, em horário normal. Porque, mesmo aos dias de semana, é frequente receber mails de trabalho às onze da noite, quando não depois da meia noite.

Acho uma tristeza. São estas pessoas que se vangloriam, como se se lamentassem, que não têm tempo para ler, para passear, para ficar a olhar o mar.

Hoje voltaram a dizer-me que sou desalinhada. Sou. E nem consigo disfarçar. Afirmo-me como sou mesmo que veja uns pares de olhos espantados presos às extravagâncias que digo.

Se ouço toda a gente a dizer que fez e aconteceu, que reviu, validou, e etc, e tudo isto à noite, toda a gente a enviar cenas uns para os outros, eu digo 'a essa hora estava eu a ver as luzes sobre o rio e a ouvir Arvo Pärt'. Silêncio. Para já devem pensar: quem diabo será esse e, de resto, a que propósito vem isso? E já falo no belo do Arvo porque é muito conhecido. Um dia destes ainda digo que, em vez de mails que pouco acrescentam, prefiro ouvir monjas beneditinas. Presumo que a incompreensão seja ainda mais perfeita.

Não é que eu, por vezes, não tenha coisas para tratar fora de horas. Tenho, claro. Mas é a excepção, o frete, não o supremo gozo ou o pratinho de ração diário.

No entanto, volta e meia sou ultrapassada e isso tenho também que confessar. No outro dia, conversando com quem juraria eu ser do mais conservador que à terra deus deitou, confessa ele que agora faz parte de um grupo de teatro amador, que até já participou num espectáculo. Fiquei sem palavras. Perguntei se era coisa a sério, com as pessoas a pagarem bilhetes. Claro que sim!, respondeu-me, Nem nunca tinha ouvido falar em tal grupo de teatro. Dias depois contei aos meus filhos. O meu filho ficou ainda mais passado que eu: foi uma vez, ao engano, ver uma peça. Diz que é do mais surreal, só maluqueiras e palavrões da pesada. Fiquei, de novo, sem palavras.

Por isso, tenho que deixar na minha mente espaço para me surpreender. E tenho, também, que conseguir não fazer juízos precipitados. Mas não é fácil.

Contudo, uma vez que posso escolher, evito tudo o que me parece tóxico, oco, inútil. Vou-me tornando niquenta, pouca coisa me agrada de verdade. Vagueio por aqui e por ali à procura do que me agrade e cada vez é mais raro. Procuro o canto dos índios ou dos pássaros, fontes de água limpa, caminhos silenciosos, a neblina que cobre os rios ou se esconde por entre as árvores, o cheiro do pão quente, a carta que chega, a ausência de disfarces, a generosidade, as palavras puras. De vez em quanto encontro e aí me fixo. Ou, se ando pelas livrarias, escolho livros que me falem do aroma do tempo, do desenho das sombras, da arte de fazer luz, dos enigmas que vivem dentro do nosso corpo, de mistérios que a física há-de um dia descobrir. Coisas assim. Mesmo poesia me vejo aflita para encontrar: não suporto lugares comuns ou versinhos de efeito fácil. Tenho que sentir a fibra e o osso, o sopro e o olhar, a respiração e o toque da pele, o tronco e a raiz, o barro e a pedra, a cor e a doce toada, o bater do coração, a suavidade da mão que se quer carícia, a força do braço que se quer abraço,

Quem, se eu gritasse, me ouviria dentre as ordens dos anjos? e mesmo que um me apertasse de repente contra o coração: 
eu morreria da sua existência mais forte. 
Pois o belo não é senão o começo do terrível, que nós ainda mal podemos suportar, e admiramo-lo tanto porque, impassível, desdenha destruir-nos. 
Todo o anjo é terrível.

[Rainer Maria Rilke]


Porque é que não se inventou nunca
um deus da lentidão?

[Peter Handke]


Aquele que um dia ensinar os homens a voar terá deslocado todas as barreiras; para ele, as próprias barreiras voarão pelos ares, e dará um nome novo à terra, chamando-lhe 'A Leve'

[Friedrich Nietzsche]


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E depois estão vocês aí desse lado. Todos os dias. Ao escrever, por vezes, espreito as estatísticas. Estou a escrever e vocês aí. Neste momento, à uma e dez da manhã, oitenta pessoas partilham o seu tempo comigo. Gostava que sentissem que me sinto grata por sentir a vossa companhia.


Portugal - 50; Brasil -12; Estados Unidos - 5; Alemanha - 4; Arábia Saudita -3; Ucrânia - 2; Bélgica - 1; França - 1; Indonésia - 1;  Irlanda - 1


Mas não são números, são pessoas que lêem as minhas palavras, são vocês, Caros Leitores. E eu sinto-me em dívida. É certo que parte do meu tempo é-vos oferecido, parte da minha vida está convosco. Mas não sei se vos agradeço o suficiente. Podem não acreditar mas, mesmo sem vos conhecer, sinto estima por quem está aí, comigo.

Lembro-me das palavras de Cecília de Meireles.
Tenho amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas pessoas, de tantas gerações!


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As palavras do título são da autoria de Friedrich Hölderlin. As do início do post são de Proust. Todas as palavras em itálico são referidas no livro 'O aroma do tempo', Um ensaio filosófico sobre a Arte da Demora, de Byung-Chul Han. As pinturas são da autoria de pintores orientais (que, dado o adiantado da hora, não vou agora repescar).
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Abaixo encontrarão um vídeo surpreendente. A bem da inclusão.

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segunda-feira, novembro 03, 2014

A Rosa do Pixinguinha, flores à beira do Tejo, gaivotas e gatos e o Jardim da Gulbenkian, juntamente com algumas palavras das 'Cartas a um Jovem Poeta' de Rainer Maria Rilke para a Margarida. Tudo a ver se consigo estar à altura do chapéu de rosas que ela me ofereceu.


O post abaixo é dedicado ao humor e eu deveria ter avisado que tem bolinha encarnada no canto mas fica agora aqui o alerta.

Mas isso é a seguir.

Aqui, agora, a conversa é outra.



A propósito de rosas, que entre a Rosa (do Pixinguinha) 
na interpretação de Caetano Veloso



No outro dia, a Margarida, sabendo do meu gosto por chapéus, enviou-me a fotografia que aqui vos mostro e a que deu o nome UJM. Adorei, claro, e tomara que o pudesse usar tal e qual. É caso para dizer: é a minha cara.






É difícil agradecer um presente assim, tão lindo e tão à nossa medida mas, enfim, quem dá o que tem a mais não é obrigado e, portanto, vou ver se consigo retribuir.


Flores para a Margarida aqui da beira do Tejo



Se se agarrar à Natureza, ao que nela há de simples, ao que nela há de pequeno, que mal se vê e tão de repente pode alçar-se ao que é grande e desmedido; se tiver esse amor do ínfimo e procurar sem pretensões ganhar a confiança do que parece pobre como se se pusesse a servi-lo: então tudo se lhe tornará mais fácil, mais unido e de algum modo mais reconciliador, talvez não no entendimento, que fica para trás e surpreendido, mas no imo da sua consciência, lucidez e saber.



Jardim da Gulbenkian ao fim do dia, este domingo



Não indague das respostas que não lhe podem ser dadas porque não as poderia viver. E trata-se de viver tudo. Para já, viva as questões. Talvez viva então a pouco e pouco, sem se dar conta, e um belo dia ainda distante chegue à resposta. Talvez traga consigo a possibilidade de criar e de dar forma como um modo de vida especialmente puro e venturoso; eduque-se para isso - mas aceite o que vier com toda a confiança e só se vier da sua vontade, de qualquer necessidade íntima, e então tome-o para si sem ódio nenhum.



Gaivota à beira Tejo, hesitante entre comer o peixe ou simplesmente apreciar a beleza do rio


Pode lembrar-se de que toda a beleza nos animais e nas plantas é uma forma silenciosa e permanente de amor e desejo e pode ver o animal como vê as plantas, unindo-se e multiplicando-se e crescendo pacientemente, docilmente, não do prazer físico, não do sofrimento físico, curvando-se às necessidades que são maiores do que o prazer e a dor e mais fortes do que a vontade e a resistência. Oh, pudesse o homem o homem receber este segredo, de que a terra está cheia até nas mínimas coisas, com mais humildade, e guardá-lo gravemente e sentir como ele pesa tanto em vez de o tomar com leviandade!



Gato vadio num domingo de Outono




Temos de aceitar a nossa existência tão vasta quanto ela for; e tudo, incluindo o inaudito, deve ser possível nela. Esta é no fundo a única coragem que se nos exige: ser corajoso perante o mais estranho, o mais extraordinário e o mais obscuro que nos possa acontecer. 




Gaivota que escolheu o lago da Gulbenkian como casa



E se tenho ainda mais alguma coisa a dizer-lhe é o seguinte: não creia que quem tenta consolá-lo vive sem esforço sob as palavras simples e tranquilas que a si lhe fazem bem. A vida dele tem muita fadiga e tristeza e fica muito aquém delas. Mas se as coisas fossem diferentes, nunca ele poderia achar essas palavras.

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Excertos não sequenciais de Cartas a um Jovem Poeta de Rainer Maria Rilke, numa tradução de Vasco Graça Moura.


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