Há coisas que sabemos que não estão bem. Por exemplo, uma pessoa ir no carro e, esquecida que aquilo é um habitáculo envidraçado, pôr-se a tirar macacos do nariz é do mais embaraçoso e censurável que há. Alguém dizer quaisqueres é muito mau. Dizer há-dem também. Dar puns num local público não é lá muito bem-educado. Comer ruidosas pipocas no cinema é igualmente mau. De cuspir para o chão, então, nem se fala. Roubar creme anti-rugas na farmácia ou chocolate no supermercado, uma vergonha. Entrar à cara podre numa fila de trânsito, muito reprovável. Estacionar em segunda fila, impedindo os outros carros de saírem, é um abuso. Um homem coçar as partes pudibundas em público ou levantar a perna de lado como se estivesse com os pelos púbicos presos no elástico das cuecas também é altamente desagradável, especialmente para quem assiste e tem que fingir que não está a ver.
não pensou no que fazia, quando fez?
quando é que disse?
porque é que disse?
ao pé de quem é que disse?
quando fez?
onde fez?
não viu que não devia fazer?
desde quando faz?
nunca ninguém lhe disse para não fazer?
esqueceu-se? esqueceu-se como...?
Claro que haverá uma ou outra ujm, os desmancha-prazeres desta vida, que dirão que a Assembleia da República não é lugar para inquirir sobre aqueles temas -- mas é certo e sabido que logo saltarão para a arena os que acerrimamente dirão que ora essa, que é ali mesmo, que é bom que saibamos quem são os espertalhões, os relapsos, os trapalhões, os porcalhões, que assim, quando os virmos por aí, já saberemos do que são capazes.
Mas eu -- lamento dizê-lo -- não concordo.
Acho que à política o que é da política, à justiça o que é da justiça, à escola o que é da escola, à psicologia o que é da psicologia. E etc. Acho que quando aceitamos que haja uma entidade que se sinta acima de tudo e de todos e ultrapasse toda a separação de poderes e saberes para que, do alto da sua cátedra, julgue e condene tudo e todos, estamos a abrir a porta a poderes ditatoriais e, talvez sem nos darmos conta, a minar a democracia e, en passant, a estender a passadeira a todos os populismos.
A propósito do que escrevi sobre a inquisidora Mortágua, o Leitor MPDAguiar deixou o seu comentário que eu não apenas agradeço como vou permitir-me repescá-lo para o corpo aqui do blog.
E faço-o por uma razão muito simples: acredito que não basta a gente, segundo os nossos próprios princípios, achar que uma pessoa não agiu da forma mais correcta, seja em que vertente da sua vida for, para aceitarmos que uma qualquer pessoa, sem que nada a autorize a tal, se arme em justiceira, inquisidora, polícia de costumes, e, de forma castigadora, sujeite o outro a interrogatório público, a pressão, a humilhação.
Por exemplo. Um banco é uma instituição financeira, no caso uma empresa privada, que tem gestores. Os gestores respondem em última análise perante os accionistas. A gestão é auditada por entidades independentes. E há depois as entidades reguladoras.
No BES falharam algumas coisas, quiçá algumas bastante graves. Provavelmente falhou a política de crédito, provavelmente falhou a gestão de risco, provavelmente falhou a gestão de topo no seu todo. E falharam as empresas que auditaram as contas e a gestão. Falhou a CMVM e falhou sobretudo o Banco de Portugal. E falhou Cavaco que incentivou à participação popular no aumento de capital numa altura em que os sinais de alarme já tinham disparado. E falhou, de novo, o Banco de Portugal e falhou o Governo de Passos Coelho ao partir para uma suicidária resolução do banco que, mal feita e nunca antes testada, só poderia conduzir ao buraco que se viu.
Os gestores levarem uma empresa para a beira de um precipício não é inédito, acontece quase a toda a hora. Contudo, a quase totalidade das situações de crédito malparado, de incumprimentos, de insolvência, passa à margem da política -- e é natural que assim seja.
Passa para dentro da esfera política quando está em causa um dos grandes pilares financeiros do país e, sobretudo, quando todos os reguladores e poderes que poderiam e deveriam agir estavam entregues a nabos, a totós, a nódoas que nada fizeram e que, quando finalmente agiram, foi para fazer porcaria. E passa quando o poder político chama o zé-povo a tapar o buraco.
E, aí chegados, haveria que perceber o que falhou tão estrondosamente. Era a altura da política agarrar o assunto. Muitas questões sobre as quais reflectir e decidir. Muitas. Infelizmente, aos dias de hoje, grande parte ainda sem resposta.
- Como é que ninguém deu por nada, desde os auditores aos reguladores?
- Os mecanismos que usam são os mais adequados?
- E como é que um grupo de ignorantes encartados chefiados por um desqualificado láparo tem margem de manobra para, na maior leviandade, fazer a resolução de um banco daquela dimensão sem que o regulador os tenha obrigado a pensar duas vezes antes de atirarem tudo o que estava envolvido, e era muito, precipício abaixo?
- Que cenários foram estudados pelo Governo e pelo Banco de Portugal? Que estudos de impacto foram feitos? Mostrem-nos. Ou nem se lembraram de os fazer...? Ou fizeram-nos e estavam todos errados?
Isso, sim, deveria ter sido percebido pelos deputados. E não para causar um festival público mas para ver como impedir que um desastre destes pudesse ter acontecido sem que antes houvesse mecanismos de prevenção que tivessem actuado. Isso, sim, tem que ser percebido.
- Como são feitas as auditorias? Quem audita as auditorias?
- Para que serve o Banco de Portugal se não dá conta de nada? Quem vigia o que faz (ou não faz...) o Banco de Portugal?
- O que foi feito, desde então, para garantir que não volta a acontecer?
Isto é o que interessa. E interessa para que possamos estar descansados de que isto não volta a acontecer.
O resto é puro carnaval. É poeira. É circo pour épater les bourgeois.
Se o banco emprestou dinheiro sem exigir garantias suficientes, a culpa não é do cliente, seja quem for o cliente. Se o cliente deu como garantias bens que não eram sólidos, a responsabilidade é da gestão de crédito e da gestão de risco do banco e das auditorias e dos reguladores que não exerceram as suas funções. Não é um tema político.
(Nota: E caso se suspeite que os fanfarrões que por aí andam e andaram com a boca cheia de empreendedorismo, todos cagões a darem lições de liberalismo, não passam de uns chico-espertos então que a comunicação social faça o seu papel -- a comunicação social, não a Assembleia da República.
E se o cliente, seja ele quem for, faltou às suas obrigações de forma fraudulenta, então estamos perante um caso de polícia e aí a coisa deve passar para o patamar judicial -- não para o político!)
Os deputados estarem a chamar clientes de uma empresa privada é de uma estupidez sem precedentes. Está a entrar-se num registo pidesco. Digo-o com todas as letras: pidesco.
E isso é muito perigoso. E tanto mais perigoso quanto parte da população acha bem que isso aconteça.
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Mas passo, então, à transcrição do comentário do MPDAguiar
Nos termos da lei 5/93 os inquéritos parlamentares têm por função vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração.
Ora, se bem entendi o post da UMJ, ela insurge-se contra o facto de a deputada Mariana Mortágua parecer empenhada em apurar, por exemplo, quanto é que LFV (ou o NV) devia ao BES, e como conseguiu que lhe emprestassem dinheiro (BES sociedade de direito privado, e com accionistas privados, note-se), e que garantias deu, e para que serviu o dinheiro, e porque não pagou ( fazendo-o para mais com uma cara e uns modos de directora de escola primária dos anos 40 a tratar com alunos relapsos) em vez de se empenhar em saber porque razão é que o BES foi objecto de resolução em 2014 (Passos Coelho PM) antes da directiva DRRB.
Isso é que era! e já agora, também seria interessante que a senhora deputada procurasse saber porque razão o então PR se arvorou em garante do BES e da tutela do BP sobre o mesmo, e porque razão causaria alegadamente tanto dano ao sistema financeiro deixar o BES falir (afinal na Islândia faliram diversos bancos e a ilha não se afundou...), e já agora, porque não foi assegurado um mecanismo de controle público sobre determinadas decisões (prémios aos gestores, por o banco "conseguir" ter prejuízos, p.ex.), em contrapartida dos "empréstimos públicos" (Costa dixit).
O estilo Mortáguas/Martins é insofrível, e o único consolo é que de vez em quando levam um banho de humildade quando lhes cai em cima um caso Ricardo Robles, ou um caso Luís Monteiro. Mas não aprendem, pois aquelas cabeças acham que foram ungidas com todas as virtudes e são o reservatório moral, ético e jurídico da nação, sempre prontas a apontar a dedo aqueles que não correspondem a tão altos valores.
MPDAguiar