Mostrar mensagens com a etiqueta Doan Ly. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Doan Ly. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, fevereiro 08, 2021

Relato de um domingo normal

 



Não há o que dizer. Mais um dia sem história. 

O círculo foi mais alargado. Parecia que estávamos no campo. Antes de chegarmos a essa periferia cruzámo-nos com um casal de ciclistas e com um casal de caminhantes. Dir-se-ia que andamos por um lugar desolado, de onde as pessoas se evadiram. As janelas estão abertas mas nem vivalma, nem um som. Mesmo os cães andam calados. 

Ao ir para mais longe, passámos por casas por onde geralmente não passamos. Vi uma entrada para o jardim nas traseiras de uma casa que me pareceu muito bonita. Fotografei com o telemóvel para desagrado do meu marido. Mas pouco se via. Em casa, pesquisei no google maps e percebi melhor. Muito bonito. 

Depois estive a ver estas ruas por cima, incluindo a minha casa. Este mundo é cheio de devassa. A tecnologia tudo permite e continuo a achar que os poderes políticos do mundo, ou a consciência dos cidadãos, não sei, deveriam estar mais despertos para os perigos que daqui podem advir. 

Mas eu dizer isto é chover no molhado e, debaixo da crise pandémica que atravessamos, quem é que quer lá saber de temas tão intangíveis? Nem eu sei se ainda quero saber disso... 

Durante o passeio, apanhei uns ramos de mimosas, lindas, macias, perfumadas. Apanhei também umas plumas de uns arbustos espontâneos que encontrei lá pelo meio. Ao apanhar as plumas, como aquilo parece um caniço, cortei-me em dois sítios da mão. Tenho a pele das mãos muito sensível ou, então, deveria ter mais cuidado. 

Tinha posto um jarrão com um arranjo de natal -- ramos de pinheiro, pinhas, flores -- aqui no corredor. E agora ou tirava o jarrão ou arranjava alguma coisa para lá pôr dentro. Não acho um mínimo de graça a jarrões no chão mas este é metálico, parece prata mas não é, discreto embora grandinho, e está num recanto, ao lado de um candeeiro de pé e sob uma aguarela. Então, coloquei lá as mimosas e as plumas e até acho que ficou bem bonito.

Outra coisa que posso contar é que tinha arroz branco no frigorífico, tinha sobrado. Então tirei costeletas do congelador para acompanharem o dito arroz. Pensei fritá-las em azeite com alho e louro. Descongelei-as. Quando o alho estava louro, fui colocar as costeletas. Afinal era entrecosto. Fiz, então, o transbordo da frigideira para um tacho, juntei cebola pois pensei: vou mas é fazer entrecosto com favas. Quando a cebola estava macia e juntei o entrecosto, reparei que era, de facto, entrecosto mas também umas duas ou três costeletas. Lembrei-me: quando congelei costeletas e entrecosto, como cada um deles era demais, retirei um pouco de cada e fiz um terceiro saco onde juntei o resto de entrecosto e o resto de costeletas, talvez para fazer um arroz de carne. Seja como for, tudo para o tacho. Juntei um alho francês (a parte branca), juntei coentros, juntei um restinho de Bacalhoa tinto que já não dava para um copo, juntei um pouco de sal. E tapei. Fui vigiando. Juntei um pouco de água para evitar que se queimasse. Quando estava quase no ponto, fui buscar as favas congeladas. Não havia. Afinal os dois sacos, que eu pensava ser um de favas e outro de ervilhas, eram os dois de ervilhas. Juntei, pois, ervilhas. 

A emoção do dia resume-se a estes insípidos imprevistos.

Há pouco passei pelo MasterChef Brasil, aquele arremedo de MasterChef que não tem ponta por onde se pegue, dá ideia que apanharam na rua pessoas que não fazem a mínima do que é cozinhar e os puseram ali a fazer disparates. Mas vi uma panela de pressão. Em tempos tive uma panela de pressão. Não sei o que lhe aconteceu. Era bem mais antiga do que estas. Fico sempre na dúvida. Será que se justificaria ter uma? Ainda não cheguei a uma conclusão. 

As minhas dúvidas também se resumem a este tipo de questões. Não quero saber de onde vim, para onde vou. Quero lá saber disso. Agora se conseguir ter a certeza sobre a vantagem de uma panela de pressão, aí, sim, já ficaria mais esclarecida e apta a tomar uma decisão.

Tento lembrar-me do que foi o meu dia e pouco mais me ocorre. Aconteceu uma coisa mas foi a nível profissional mas foi cena chata de que tive conhecimento à noite. Terei que esclarecer melhor. Seja como for, nada aqui poderei comentar. Se pudesse, seria tema com o qual conseguiria produzir uma série altamente condimentada, cheia de suspense e acção. Como não posso, terei que me ficar pelas cenas da minha vidinha, coisas domésticas, rasinhas.

Não lavei hoje a roupa. Para já, era pouca e, depois, com o tempo que esteve não daria para secar. Não trouxemos a máquina de secar da outra casa. Não estava a funcionar, tinha-se partido a cinta do tambor. Pensei que estar a transportar uma coisa que não sabia se ia conseguir arranjar quem a reparasse quando tinha largueza para estender a roupa ao ar livre não fazia muito sentido. Mas a verdade é que em dias assim, sombrios e de chuva, a roupa não seca. E eu detesto ter roupa estendida muito tempo, não fica com aquele cheirinho bom a roupa lavada de fresco. Há um estendal na cave mas roupa estendida dentro de casa com uma humidade tão pesada como tem estado, não deve ser grande ideia.

Tenho enviado à minha mãe, por mail, vídeos que acho bonitos ou que me deixam a rir a bom rir. E ela tem gostado de ver. Quando falamos ao telefone, de vez em quando desatamos a rir à gargalhada, quase a sufocarmos de tanto riso.

Há bocado estive a ver se descobria outros para lhe enviar. Como ela gosta de costura, de rendas, de coisas assim, procurei aqueles dos ateliers Chanel ou Dior dedicados à haute couture. Fico sempre encantada, rendida à perfeição, à habilidade daquelas mãos delicadas. E apareceu-me um costureiro de que nunca tinha ouvido falar, o libanês Ziad Nakad. Vestidos lindos, de uma leveza, de uma feminilidade encantadora. Mas, de repente, ocorreu-me que deve ser outro sector que está a levar uma pancada daquelas. Quem, neste tempo de peste, vai vestir vestidos lindos desta boa maneira? Onde é que há festas, eventos, casamentos para se poder usar roupas tão laboriosamente imaginadas, costuradas, bordadas? Tudo isto me dá pena. Mais até do que pena: perplexidade. Que fragilidade a nossa para termos ficado assim, tão frágeis, tão derrubados, tão à mercê de uma vírus tão invisível e traiçoeiro...?

Enfim. É para esquecer. E estou mas é no ir.




^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

De novo, fotografias de Doan Ly ao som de Wonderful segundo Lianne La Havas

^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^

Desejo-vos uma boa semana a começar já por esta segunda-feira

domingo, fevereiro 07, 2021

Talvez um buraco habitado pelo vazio

 



Estes dias são muito absurdos. Vivo num lugar que até é agradável mas, estando confinada, tanto poderia estar aqui como noutro lugar qualquer. Quando, no confinamento do ano passado, nos mudámos para o campo também estávamos ali como se o mundo fosse apenas  aquele lugar. Agora também. Saímos para fazer uma caminhada aqui à volta e, de momento, este é o nosso mundo.

Tem estado, por aqui, muito frio, vento, húmido, chuviscoso. Desagradável. Saí para dar uma volta pelo jardim por volta das seis e, pouco depois, tive que reentrar, o frio estava mau, triste, escuro. 

Aos sábados gosto de dormir até mais tarde para pôr o sono em dia. Mas tinha-me esquecido de desligar o despertador pelo que acordei cedo e já não consegui voltar a adormecer. De tarde, reclinei-me no sofá, pensando repor a situação. Contudo, estava a começar o Samba no canal Hollywood, filme que em seu tempo tinha visto no escurinho de uma sala de cinema, e não quis deixar de rever. Por isso, não dormi de tarde a agora ainda estou com sono.

E mais? Que dizer mais? Nem sei bem.

Talvez que os dois aquários da família já fizeram anos e festejámos -- que é como quem diz -- através de videoconferências. Em qualquer das vezes foi aquela complicação do costume para a minha mãe se pôr a bordo. Cantámos os parabéns em coro, a várias vozes, em total desafinação. Por estes tempos, os presentes chegam por correio e os beijinhos são dados por palavras. No outro dia, dizia a um menino pequenino que nos desse uma fatia de bolo. Disse que não podia ser. Dissemos que estendesse a mão que nós agarrávamos o bolo. Ele assim fez com a sua mãozinha. Encolheu os ombros e disse: é um bolo invisível. E o meu coração derreteu-se em ternura. Estão todos mais crescidos. Há muito tempo que não os abraço à vontade. Ultimamente abraçava-os pelas costas, beijava-os na nuca. Será que ainda vão aceitar que eu os puxe para o meu colo e os abrace e os encha de carinhos? Não sei. Se calhar ficam com receio que os contagie. Este vírus é diabólico, sequelas all over mesmo em quem não é directamente infectado.

No outro dia, fartos desta monotonia, resolvemos ligar para um dos restaurantes onde íamos, às vezes, jantar. Não faz entregas aqui, apenas ali perto. É o filho que vai entregar. Resolvemos ir nós lá. Fiquei no carro. Contou o meu marido que o restaurante, antes cheio que nem um ovo, estava (obviamente) vazio. A mulher na cozinha, como sempre esteve, mas sem ajudantes, só ela. Ele cá fora na sala a atender os pedidos (por telefone). E o filho a ver se tinha que ir fazer entregas. Diz o meu marido que estavam de máscara, o senhor com um cabelo muito grande. Não se deve ajeitar a cortar em casa. Nesse dia, uma vez chegados a casa, preparámos um gin, depois refastelámo-nos com um belo jantar que não tive que confeccionar e, no fim, para acompanhar a bela sobremesa que também veio de lá, bebemos uma bela ginja de Óbidos. Ao ver a garrafa, lembrei-me que a comprámos lá, num passeio que lá demos entre o Natal e o Ano Novo de 2019. Passeámos com vagar, subimos e descemos as ruínhas, entrei nas livrarias. Parece que foi há uma eternidade. 

Era, para nós, muito natural passearmos. Agora, mesmo que, dentro de algum tempo seja levantado o confinamento, já teremos adquirido outros hábitos. Já não iremos com a mesma naturalidade a restaurantes, quereremos verificar se estão arejados, se há distanciamento, estaremos atentos às máscaras, teremos receio que alguém tenha tossido e deixado gotículas no lugar ou nas coisas em que vamos mexer. 

Estranho, tudo isto.

Enfim.

No meu jardim reina o silêncio. Mal se ouve algum pássaro. De vez em quando, algum lá bem no alto, muitas vezes ao longe. De todos aqueles que tanto cantavam agora nem um pio. Não sei onde andam. Estarão transidos de frio, sem vontade de alegrias?

Há ainda laranjas nas laranjeiras e são muito, muito doces. E tangerinas. Mas estas caem muito. O jasmim está a ficar florido. Não consigo deixar de lá mergulhar o rosto para aspirar o perfume que é intenso demais para o meu gosto. Ainda assim cheiro. Quero perceber se o perfume vai evoluir.

Uma outra trepadeira, uma que deixou a anterior proprietária espantada pelo que cresceu, está agora a florir, uma flor com uma cor inesperada, muito bonita.

Também fiquei admirada com outra coisa. Ainda não compreendi a dinâmica dos meus novos vizinhos. Dá ideia que é uma comuna de rapaziada. Não consigo descortinar a lógica do grupo. O meu filho diz que deve ser malta que está a formar uma empresa. Espanto-me: iriam alugar uma moradia destas...? O meu marido, para quem nada disto interessa e que goza com a minha curiosidade, para apimentar o mistério fala de outras hipóteses, qualquer delas improvável e estapafúrdia. Mas, dizia eu, estava a sair da sala para um passeio pelo meu jardim, dou de caras com um dos jovens, saindo também da sua, de boné. Devia ir pôr comida nos cães, digo eu. Não sei se anda em casa de boné. Pelos vistos, anda. Sol não há na rua e, em casa, muito menos. Mas, então, ao dar de caras comigo, sorriu abertamente, fez-me adeus com a mão, e disse-me um 'olá, bom dia'. Fiquei muito admirada pois parecem-me sempre muito lá na deles, sempre enfiados em casa, se saem para o alpendre é para estarem na conversa uns com os outros, totalmente alheados em relação à casa do lado. Juraria que nunca antes me tinha visto. E, no entanto, cumprimentou-me com um ar surpreendentemente amistoso.

E eu estar a relatar isto revela bem a falta de assunto que envolve estes meus dias. Nada mais há a relatar. Li, vi televisão, fiz o almoço, fiz um jantar ligeiro, fiz alguns pagamentos, tratei de algumas coisas que, durante a semana, ficam por fazer, fiz os meus telefonemas. O dia correu devagar. Nem é o ser devagar. É a sensação de inutilidade. Parece que estou num buraco inespacial, intemporal. Antes, os meus dias estavam preenchidos de mil coisas para fazer, ia aqui, ia ali, alguém vinha cá, não tinha tempo para mim nem para descansar. Tantas vezes me queixei: gostava de ter um bocado só para mim. Agora é o oposto. O oposto mais oposto que é possível.

Várias vezes ao longo destes dias também me apetece ir passear. Meter-me no carro e ir por aí. Descobrir lugares, olhar pela janela do carro, ter vontade de parar para fotografar, deleitar-me com a beleza que sempre me surpreende. Quando poderei voltar a passear? Íamos passear, íamos descobrir restaurantes, íamos descobrir hotéis. Agora, se formos passear se calhar levamos farnel. Não sei. Parece que não sei pensar nem fazer planos. Parece que acho que não vale a pena fazer planos. E o vazio parece que fica ainda maior.

No outro dia estava a pensar que deveria ter mais uma mesa debaixo do alpendre. O meu marido disse que não, que a mesa que lá está é muito grande, cabemos todos, e ainda temos a mesa desdobrável e mais a outra pequena, redonda, de ferro. Mas eu fiquei a pensar que antes nos encostávamos todos uns aos outros e que, se calhar, nem tão cedo vamos sentir-nos à vontade com essa proximidade. Pelo Natal dividimo-nos por três mesas, distantes umas das outras. Será que, nos próximos tempos, será sempre assim? E sê-lo-á durante tanto tempo que nos esqueçamos que, antes, o normal era estarmos próximos, conversando, rindo, sem receio, descontraídos?

Ao ver o grupo abaixo, um grupo de belas e elegantes mulheres -- todas mulheres Chanel -- conversando em volta de uma grande mesa, todas distantes umas das outras, pensei que vão passar a ser precisas mesas de uma dimensão bem maior do que as anteriores. A vida aos poucos irá distanciar-se do que era, não irá? E todos nos distanciaremos uns dos outros. 

__________________________________________________________________ 

O charme discreto da Casa Chanel, o charme discreto da burguesia

A roundtable conversation hosted by Caroline de Maigret with ambassadors and friends of the House Penélope Cruz, Marion Cotillard, Charlotte Casiraghi, Vanessa Paradis, Alma Jodorowsky, Lily-Rose Depp, Izïa Higelin, Blesnya Minher and Joana Preiss.Filmed after the CHANEL Spring-Summer 2021 Haute Couture show at the Grand Palais in Paris
.

________________________________________

As flores foram fotografadas por Doan Ly

Lá em cima, Trois Gnossiennes por Hans van Manen com Ludmila Pagliero e Hugo Marchand

_________________________________________________________________

Desejo-vos um bom e feliz dia de domingo

quarta-feira, junho 03, 2020

O que não se diz





Somos complicados, difíceis de descodificar. Eu, pelo menos, sou. Especialmente para mim. Por vezes faço coisas para as quais não tenho explicação. Algumas não tenho feito ultimamente. Outras, sim.

Aceitei. Do outro lado ouvi um suspiro. Senti que era de alívio. Depois a voz bem disposta. Quando acrescentei: 'Mas há condições...'. Um ui... e um pré-susto: 'Não...'. Sosseguei-o: 'Nada de transcendente'. Quando lhe disse quais eram as condições, tentou dissuadir-me. Dei luta. Mas a fase que se segue vai ser complicada, a fase de sair de um lado para mergulhar noutro. Isto se não houver obstáculos. O tipo de coisa para a qual não tenho grande apetência. Negociações em que sou o objecto da negociação. Mas, enfim, decidi o que queria: um salto no escuro. Um turbilhão. Podia recuar e ficar mais sossegada. Mas os turbilhões, o desconhecido e as grandes lutas atraem-me. Dizem que tenho punch. Dizem que tenho killer instinct. Talvez. Mas nada como o que já fui. Mas, volta e meia, ainda acorda em mim a vontade de. No outro dia, numa reunião, cilindrei um. Cilindrar é a palavra. Estrebuchou durante uns segundos, depois não teve hipótese. Mas não me arrependo. Se numa organização está meio mundo a querer ir em frente e a ver que o timoneiro os está a arrastar para o fundo do mar, vamos continuar a assistir passivamente? Vamos continuar a estar com paninhos quentes, a deixar que um navio inteiro vá ao fundo para não ferir a susceptibilidade de uma pessoa que, nitidamente, está ali por um absurdo erro de casting que ninguém ousa assumir? Eu acho que não. E acho que não é caso para grandes conversas, basta um sumário chega para lá. 

Mas isto para dizer que sei que, daqui em diante, mil vezes me irei perguntar porque é que me fui meter em tal empreitada. 


Tantas vezes isso aconteceu. É como a montanha russa. Morro de pavor. Grito feita doida. Quando estou lá em cima e parece que vou despenhar-me -- dizer adeus à vida, ser projectada a milhas -- pergunto-me porque me foi meter naquilo. E, no entanto, sabendo disso tudo, vou. Não fui muitas vezes. Mas fui. De cada vez, lá estando, arrependi-me e culpei-me e incompreendi-me. Mas, mesmo antecipadamente sabendo disso, fui.

E agora, de novo, é assim. Não é a primeira vez. Antes fosse. Mas não é. E, no entanto, a vontade, a secreta vontade que tenho, é que acelere. Que comece a subir, que suba até não se saber como será a descida.

Mas isto a nível profissional. A nível pessoal não sou assim. Sou mais de me afastar. Se alguém não me interessa, não perco tempo, não arranjo briga, não faço fofoca, não tento tirar razões. Não, dou um byezinho e fecho a porta. Ou se me apercebo que a pessoa é das tóxicas, das que se fazem amiguinhas, muito lovezinho, muito chamego, muita conversinha, mas que, na primeira curva, nos vão apunhalar pelas costas, que é gente sempre com o saquinho de veneno à espreita de ser derramado, então quero é distância, não gosto de bicho ruim, gente com costela de capeta. Ná. Fecho a porta e aqui não entra mais. E uma vez a porta fechada, para sempre permanecerá fechada, não há force majeure ou act of god que me faça abri-la.

Mas, no passado. Jovem. Coisas de que não me arrependo mas que não compreendo. Incomodam-me especialmente porque não encontro explicação.


Por exemplo, gostava muito do meu namorado. De um muito especial. Gostava muito. E ele de mim. Mas, para mim, aquilo ali era amor desproporcionado, era incondicional de mais. Não gosto que gostem de mim dessa maneira, é responsabilidade a mais. Às escondidas dele andava com vontade de um bocado de mau caminho. Queria contestação, queria luta, mano a mano, corpo a corpo. Não gosto de altar, muito menos de estar nele. Então, um dia, acabei. Acabei. Indiferente ao seu sofrimento, saturada de tanto amor, danada por me perder, acabei com ele. Não quis saber de 'dar tempo', não quis saber de dar explicações. Queria apenas acabar. E acabei.

Ninguém percebeu: namoro tão bonito. Quem é que vira costas a um tamanho amor? Censurada. Incapaz de explicar. Parecia futilidade, leviandade. Paciência: que parecesse. E senti-me livre, feliz da vida. Dias depois, caí em mim: 'O que é que fui fazer?'. E parecia-me uma estupidez. Pensava: 'Onde é que alguma vez na vida vou arranjar quem goste tanto de mim assim?. E pensava nele, certamente triste. Então, fiz uma coisa completamente absurda, inexplicável. Nessa altura não havia telemóveis. Sou do século passado, já devem ter percebido. E havia, nesses idos, uma coisa que, certamente, já acabou há vários séculos: o telegrama. Ou seja, deu-me um ataque de arrependimento e romantismo -- e enviei-lhe um telegrama, dizendo que o amava e a marcar encontro com ele num certo jardim. Mal o telegrama seguiu, arrependi-me logo: 'Caraças, que é que fui fazer...?'. Mas no dia aprazado lá estava. Quando ele me viu, avançou a rir, feliz, e eu para ele, atormentada com a minha incoerência, mas ele abraçou-me feliz, beijou-me, e eu deixei-me abraçar, deixei-me beijar. E, certamente, retribuí. E, no entanto, desde sempre eu soube que ele não era o que iria tirar-me o chão, impedir-me de estar em qualquer pedestal, desorientar-me, desarmar-me. Lembro-me bem da felicidade dele nesse dia. E eu não é que não estivesse feliz. Se calhar até estava. Mas sabia que, no fundo, no fundo, tudo aquilo era um equívoco e que chegaria o dia em que o faria sofrer a sério, de forma irremediável.


Se recordo isto é porque, na minha cabeça, ficou registado como uma coisa que eu preferia que não tivesse acontecido. E, no entanto, vivi dias bem passados e sei que ele, nesse tempo, foi muito feliz. E depois como saberemos nós o que vai acontecer-nos no futuro? Como saberemos se viremos a lamentar fazê-lo? Quem nos diz que não lamentaríamos mais se não o tivéssemos feito? Como saberemos que o que, para nós, no nosso íntimo, é uma situação dúbia, não é um momento de inesquecível felicidade para outra pessoa? E não será isso mais importante do que a dúvida para sempre a ferroar-nos a consciência? Não sei.

E agora acho que isto são coisas que não interessam para nada. A sinceridade extrema é boa para nós próprios, para a guardarmos para nós. Por vezes podemos partilhá-la. Outras vezes é melhor para toda a gente que guardemos as verdades profundas -- e isso apenas para um dia mais tarde, se quisermos, podermos avaliar, em consciência, se fizemos ou não a melhor escolha.

Amar pode ser, por vezes, à falta de melhor opção, o prazer de nos sentirmos amados, a vontade de que dê certo. E depois pode acontecer que, um dia, surja a oportunidade de darmos um pontapé nisso tudo e irmos à aventura, correr todos os riscos, experimentar o sabor único da sensação de nos estarmos a apaixonar. Mais uma vez. Como se fosse a primeira.
_____________________________________________________________

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

Deliberadamente evito falar do que me sufoca. Alieno-me deixando que os dedos me afastem da asfixia que sinto, que a maioria de nós sente, ao ver os riscos que a democracia corre, ao ver o pouco que os humanos evoluíram, ao ver o que se passa à nossa volta. Deixei que a música e as imagens que a acompanham me levassem pelos caminhos da memória. É um lugar mais seguro que as ruas da realidade.

:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

As fotografias são de Doan Ly e acho que vão bem com Till Brönner -- que me foi dado a conhecer por uma pessoa a quem muito agradeço -- que aqui interpreta When I Fall in Love do album Chattin With Chet

::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::

A todos desejo uma boa quarta-feira.