Substituam "França" por "Portugal" na maioria dos locais e tirem algumas conclusões.
Traduzido do livro de que falei aqui (p.56-7).
«Em França, a esquerda recusa a ideia que há desigualdade entre os empregos públicos e os empregos privados. A ideia de que a sobreprotecção de uns produz desigualdades em detrimento dos segundos é refutada em nome da recusa do nivelamento por baixo. Na Dinamarca, tal dicotomia é considerada como inaceitável porque profundamente injusta. Uma das características do modelo dinamarquês é de assentar sobre o princípio da continuidade das condições de emprego e de trabalho entre o sector público e o sector privado. Não apenas a função pública é mais limitada (4% dos assalariados contra 30% em França), mas tudo é feito para aproximar o funcionamento da função pública do do sector privado (...) Para além disso, a correspondência entre a função e o estatuto (...) não existe no sistema dinamarquês, onde apenas uma reduzida minoria de funcionários beneficia de um emprego protegido. A ideia de que o Estado deve dispor de um grupo de funcionários amplo e protegido para assegurar as suas funções centrais é totalmente estranho à cultura política de um país onde a grandeza do Estado não faz qualquer sentido. Porque não queremos renunciar aos estatutos, mas dado que não estamos em condições de os generalizar, em França, os trabalhadores que beneficiam de um estatuto e outros que a ele não têm acesso são capazes de exercer a mesma função. Este tipo de situação seria simplesmente inaceitável num país escandinavo, dado que isso simbolisaria a desigualdade construída não pelo mercado mas pelo Estado. A regra é por isso aquela do contrato único para todos os empregos, incluindo os públicos. (...) O modelo dinamarquês (...) é ao mesmo tempo muito liberal e muito protector, sendo que o conteúdo desta protecção é muito diferente daquele que atribuimos em França. [Na Dinamarca] protege-se para facilitar e mudança e não para a conter.»
Nota: na Dinamarca, as desigualdades sócio-económicas e escolares são mais baixas, o desemprego mais reduzido, o imposto sobre o rendimento muito mais elevado, os níveis de protecção social mais altos, os indicadores de desenvolvimento social e de capital social superiores, e o PIB per capita mais elevado do que na França.
terça-feira, 19 de junho de 2007
Estado "social-democrata" vs. "corporativo"
Posted by Hugo Mendes at 12:08 12 comments
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quinta-feira, 17 de maio de 2007
Privatização da questão das desigualdades?*
Muito importante o artigo do João Rodrigues hoje no "Público": "A desigualdade salarial é um problema de todos".
Os artigos são pequenos e por isso é sempre difícil seleccionar o que é dito e o que é deixado de fora. Mas talvez valesse o pena o João Rodrigues ter lembrado (fica para outra ocasião) que foi precisamente por a questão das desigualdades ser um problema político e público na Europa pós-1945 que as assimetrias salariais e sociais foram mantidas a níveis historicamente baixos, e que isso em nada colidiu com níveis de crescimento impressionante nos "30 anos gloriosos". Mais: há bons motivos para pensar que eles foram catalizadores do crescimento, e - como o João Rodrigues bem alude, e a citação do Adam Smith no final é deliciosa - não é preciso construir nenhuma teoria muito sofisticada da "motivação no trabalho" para perceber como a questão de quem faz o quê e quanto recebe é central para a forma como os trabalhadores se empenham mais ou menos no que fazem. A produtividade depende em boa medida do consenso laboral e este, por sua vez, depende das percepções de justiça e legitimidade da distribuição de rendimentos e riscos. Os alemães e suecos não são mais produtivos do que os portugueses apenas porque são mais qualificados ou têm mais competências: é porque o ambiente laboral, cujas regras são devidamente definidas de forma partilhada por sindicatos e patronato, é de muito melhor qualidade. Já agora, se correlacionarmos o nível de desigualdades salariais nacionais com as taxas de crescimento mesmo nos últimos 30 anos - já não os "gloriosos", mas os "dolorosos" -, o mais provável é que não obtenhamos nenhuma correlação particular, porque a dispersão de performances nacionais é assinalável e a variação ao longo do tempo também (o modelo americano, elogiado por todos, era dado como defunto há 15 anos, quando era comparado com o Japão, entretanto caído em desgraça; entretanto, a Europa social-democrata - ainda que não tanto a continental nem mediterrânica -, tem-se portado muito bem e mostrado as vantagens comparativas de regimes de produção e bem-estar que permitem um rápido crescimento económico e uma manutenção das desigualdades a níveis baixos, a apesar de estas terem subido um pouco no último quarto de século).
Para mais, a questão a que o João Rodrigues alude no iníco do texto e que se prende com as chorudas compensações que está na moda os gestores do sector privado receberem é daquelas que prova que os salários são boa medida fixados por decisões políticas e não simplesmente pela "produtividade" ou pelo "mercado". Em muitos casos, eu pergunto se essas "decisões" - aqui a mão é bem "visível" - não pertencem ao domínio da cleptocracia. É que o mais comum é essas compensações bilionárias não estarem indexadas a nenhum critério de sucesso empresarial; pelo contrário, elas ocorrem muitas vezes no seguimento desses profissionais terem tido péssimos desempenhos e arrastado as empresas com eles para o fundo. Claro, quem paga são os restantes trabalhadores (e, já agora, os accionistas) e, no limite - porque o trabalhador é cidadão, cônjuge, mãe/pai, etc., fora do perímetro da empresa -, todos nós. E se há socialização dos males, então tem de haver socialização dos bens. E socialização significa politização.
*Publicado também aqui.
Posted by Hugo Mendes at 14:54 4 comments
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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007
O sindicalismo suicida
O presidente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE) manifestou-se hoje preocupado com a possibilidade de o Ministério das Finanças reter os salários dos funcionários públicos com dívidas ao fisco, considerando que a proposta é mais um "ataque à função pública". "É preocupante porque se está a tratar uma vez mais os funcionários públicos como um grupo à parte, um grupo alvo a atacar e a abater", disse à Lusa Bettencourt Picanço, em reacção à notícia de hoje do PÚBLICO.
Quando são os trabalhadores do sector privado com dívidas fiscais, está em causa, afirma-se - e bem -, o incumprimento das obrigações perante o Estado e a falta de civismo elementar. Quando são os funcionários públicos, então já não há nenhum problema em particular - e uma medida como esta é vista como um ataque à função pública. Começa a faltar a paciência para tanta vitimização.
Bettencourt Picanço não compreende que os funcionários públicos são, efectivamente, um grupo à parte: são os únicos cujos salários são pagos pelo Estado - mais concretamente, pelos impostos gerados pelas transacções efectuadas pelos trabalhadores do sector privado (já para não falar das melhores condições contratuais, salariais e outras que muitos funcionários públicos gozam em comparação aos do privado, mas isso fica para outra posta). Nenhum trabalhador, do sector público ou privado, tem mais legitimidade para ter dívidas fiscais; simplesmente, o Estado pode agir sobre os seus funcionários de uma forma - como se propõe agora - que não pode sobre os funcionários do privado, sobre os quais necessita de utilizar outros instrumentos de coacção.
Um bocadinho mais de humildade, respeito e solidariedade por parte dos que falam em nome do sector público não ficava nada mal.
Posted by Hugo Mendes at 16:15 16 comments
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