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domingo, 16 de março de 2008

Dilemas profissionais

Hoje, no P2 do Público, fala-se do arquivo da PIDE. Irene Pimentel, após seis anos de pesquisa naquele arquivo, continua a ter "dúvidas que nasceram daquele percurso: qual o grau de restrição que deveria ser aplicado ao acesso aos documentos? O que deve ser ainda preservado e o que deve ser dado a conhecer? Porque é o arquivista o censor? [alusão ao expurgo dos documentos relativamente aos "dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico..."(*)] Que poder lhes está a ser dado?"
Como arquivista e como historiadora, continuo sem perceber porque é que o legislador decidiu conferir ao arquivista o poder de aceder a dados pessoais, negando-o ao investigador. Não vejo que se possa estabelecer uma hierarquia relativamente à ética profissional de uns e de outros. Além disso, os arquivistas 'expurgadores' não são infalíveis: por vezes, expurgam dados inócuos e deixam passar dados pessoais.
Talvez fosse mais acertado abdicar do expurgo e exigir aos utentes dos arquivos uma declaração em como se comprometem a não publicitar nem utilizar nos seus trabalhos os dados pessoais contidos nos documentos. A violação desse compromisso deveria ser considerada crime e sujeita a sanção penal.
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(*) "Não são comunicáveis os documentos que contenham dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico, bem como os que contenham dados pessoais que não sejam públicos, ou de qualquer índole que possa afectar a segurança das pessoas, a sua honra ou a intimidade da sua vida privada e familiar e a sua própria imagem, salvo se os dados pessoais puderem ser expurgados do documento que os contém, sem perigo de fácil identificação, se houver consentimento unânime dos titulares dos interesses legítimos a salvaguardar ou desde que decorridos 50 anos sobre a data da morte da pessoa a que respeitam os documentos ou, não sendo esta data conhecida, decorridos 75 anos sobre a data dos documentos." (Sublinhado meu. N.º 2, Artigo 17.º, Decreto-Lei n.º 16/93 de 23 de Janeiro (Regime geral dos arquivos e do património arquivístico).

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Tempo de Fantasmas

Apaixonado por Nora Mitrani, O'Neill pretendia juntar-se-lhe em Paris. Um familiar resolveu denunciar essa intenção à PIDE. Foi-lhe negado sair do país e passou a ser vigiado. Dois anos mais tarde esteve preso em Caxias, apenas por ter ido esperar Maria Lamas que regressava de Viena. Apesar de ter feito oposição à ditadura, nunca foi militante de qualquer partido político, nem mesmo a seguir ao 25 de Abril. Era um independente. Ninguém, melhor do que ele, descreveu o nosso país sob a ditadura.

Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill

Poema publicado em 1951 no livro Tempo de Fantasmas.