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sábado, 17 de novembro de 2007

A gripe pneumónica: porquê o silêncio?

Retomando a pneumónica de 1918/19, o silêncio que sobre ela se abateu em todo o mundo (tanto por parte dos seus contemporâneos como por estudiosos) foi uma perplexidade recorrente no colóquio específico ontem findo.
José Sobral preconizou que as suas vítimas teriam sido remetidas para o espaço da memória familiar, enquanto as vítimas da I Grande Mundial teriam sido lembradas pelos Estados (dias comemorativos, monumentos, placas, etc.), por se tratar do reconhecimento pela participação num esforço colectivo de índole nacional. David Killingray aludiu a outros silenciados pela academia até há pouco tempo: os pobres, as mulheres, os negros, etc.. Estas são linhas explicativas pertinentes.
Quanto ao caso português, na minha comunicação procurei alertar para o contexto político, social, cultural e científico, em particular para a conturbada conjuntura político-social então vivida. Aquelas limitaram grandemente a reflexão e combate à epidemia. A situação económico-social dos desfavorecidos era então grave: elevada subnutrição e más condições de vida facilitaram muito a difusão do vírus e o seu efeito mortal. É verdade que este tipo de doença teria um alcance interclassista, mas as assimétricas condições de vida ter-lhe-ão conferido um efeito classista. Não há muitos dados sobre isto, mas da minha pesquisa em dezenas de livros de memórias e de estudo, e na Internet, apenas consegui detectar algumas vítimas das classes médias e alta. Esta situação terá sido extensiva a outros contextos em que a maioria da população vivia em piores condições de vida: p. e., Espanha, América Latina, África do Sul, Índia e China.
Na altura, o deficiente sistema de saúde pública pouco pôde fazer. Eram poucos os hospitais, médicos e enfermeiros, não havia vacina (ainda não há...); a maioria das pessoas faleceram em suas casas, incluindo pessoas como o pintor Amadeu de Sousa Cardoso (que ainda mudou de casa, mas sem sorte). Era uma morte privada, distante dos outros e evitada por estes. A situação agravou-se com o não fecho atempado de fronteiras (a doença veio para Portugal via Espanha) e a desmobilização de milhares de soldados para as suas terras (ao arrepio das directivas da Direcção Geral de Saúde), espalhando a doença por todo o país. O governo sidonista aumentou os preços dos produtos agrícolas, agravando o acesso a bens de 1.ª necessidade. A partir daqui pouco se pôde fazer, a não ser informar sobre medidas preventivas, que nem chegavam a todo o lado, e algum auxílio social (reforço oficial da «sopa dos pobres», apoio da sociedade civil). A impotência foi, por isso, a nota dominante.
Por outro lado, a doença foi limitada no tempo e com breves picos fulminantes, tendo em Portugal atingido picos em Outubro/ Novembro e, com menor impacto, em Janeiro e Abril/ Maio. Ora, esta efemeridade dificultou a sua assimilação.
A própria imprensa foi condicionada pela censura política (instaurada pelo Presidente da República Sidónio Pais em Abril de 1918) e pela actividade do reputado epidemologista Ricardo Jorge que, em regulares notas informativas emanadas da Direcção Geral de Saúde, relativizava a situação ("surto conhecido e transitório"; ainda assim foram 14 meses e c.100 mil mortes). Ademais, a imprensa de referência era então dominada pela agenda político-partidária do establishment e pouco sensível à agenda social. A doença afectou sobretudo a população entre os 15 e os 40 anos: o sistema político e intelectual gerontocrático não foi afectado.
A impotência (dos médicos, políticos e da população), a relativa efemeridade da doença, a gerontocracia, a conjugação com a epidemia do tifo, a grande conflitualidade política e social (com repressão da oposição republicana anti-sidonista e do sindicalismo, as greves e o assassinato de Sidónio), o recolhimento junto da Igreja, a resignação e o avanço de ideias messiânicas (que Sidónio encarnou), a selecção histórica feita posteriormente pela ditadura (valorizando Sidónio e um certo país político, mas olvidando o país social e o resto), foram terreno fértil para o esquecimento, primeiro, e o silenciamento, depois. Eis um quadro que aqui deixo para reflexão. Pode não explicar tudo, mas ajuda a compreender o contexto.
Nb: imagem de mendigo pedindo esmola na beira da estrada (s.d., fotógrafo não identificado, AFML).

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

As outras globalizações: a gripe pneumónica de 1918/19

Em 1918 eclodiu uma devastadora gripe pneumónica, que rapidamente se tornou planetária. Esta pandemia foi das piores da História da humanidade: em 14 meses tirou a vida a c. de 40 milhões de pessoas, mais do dobro dos vitimados da I Guerra Mundial e c. de 1/3 da mortandade causada pela peste em 6 séculos. O médico Ricardo Jorge chamou-lhe então o "maior flagelo epidémico dos tempos modernos". Em Portugal levou entre 70 a 100 mil vidas.
No entanto, esta gripe permaneceu grandemente esquecida, tanto pelos seus contemporâneos como pelos estudiosos.
Agora esse olvido está sendo resgatado, e para isso irá contribuir o Colóquio Internacional «Olhares sobre a Pneumónica», uma iniciativa conjunta ICS e ISCTE que decorre amanhã e depois na sala polivalente do ICS-UL. Vão lá estar historiadores, antropólogos, sociólogos, médicos, etc.. Toda a informação sobre o evento está disponível aqui. Eu também falarei, amanhã de manhã. Aproveitem!
Nb: na imagem, brigada da Cruz Vermelha Portuguesa no terreno, [1918] (Arq.º Histórico da CVP).