Estamos realmente entrando em uma escalada autoritária, moralista e obscurantista cujo fim não se pode prever. Na esteira de uma proibição, vem sempre outra, e outra, e outra. Quando os incautos, ingênuos e ignorantes percebem, eles mesmos começam a ser vítimas dos tentáculos do polvo que antes defenderam.
Depois da proibição do fumo, que muita gente apoiou, embora proibir seja sempre o caminho mais perigoso, agora a Assembleia Legislativa de São Paulo se sente à vontade e deve apresentar esta semana um novo projeto, desta vez para proibir a venda e consumo de álcool nos espaços abertos. O projeto é de autoria de Campos Machado (PTB). Se aprovado e sancionado pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), segundo a Agência Estado, “ficarão proibidos a venda e o consumo de bebida alcoólica em ambientes públicos, como praias, calçadas, postos de gasolina e estádios, entre outros lugares”.
E mais: “Como ocorre em províncias canadenses e estados americanos, ainda haverá restrição ao porte de bebida nas ruas. Carregar garrafas só será permitido em público com embalagens que escondam o rótulo”.
Pergunto: estamos caminhando a uma volta ao período da Lei Seca dos anos 1920 dos Estados Unidos, que fomentou a máfia? Até onde vai a hipocrisia dos que querem ver as diferenças e as liberdades individuais proscritas? Você terá que andar escondendo uma latinha de cerveja na praia e na rua como se fosse um criminoso? E de fato será, caro leitor, pois está claro que afrontar uma lei é crime.
A propósito da proibição do fumo, acho que, como já escrevi aqui, “a legislação promove a discriminação das pessoas, incentiva a delação, prejudica o comércio, é inconstitucional e fascista”. No caso da lei do nobre Campos Machado, envereda-se pelo caminho do fascismo com uma sem-cerimônia assustadora.
Livros
A sanha proibitiva e, no fundo, como digo, fascista, não vem só do que chamamos de direita política. O episódio contra a obra de Monteiro Lobato em 2010 já mostrou que a chamada esquerda também tem gosto pela proibição. E de livros. Outro fato, este recentíssimo relativo a obras literárias, mira agora um outro livro. O dicionário Houaiss.
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação na Justiça Federal em Uberlândia (MG) para tirar de circulação o dicionário, por discriminação ao povo cigano.
Ora, qualquer discriminação de cunho racista é abominável. Mas estamos falando de um dicionário, minha gente, pelo amor de Deus. O Houaiss registra várias acepções do termo cigano (como de qualquer outra etnia), entre as quais define expressamente como "pejorativa" esta: "aquele que trapaceia; velhaco, burlador".
O dicionário não está dizendo que o cigano é “velhaco”. Está dizendo que uma de suas acepções, “pejorativa”, é esta.
Concordo com o que diz Paulo Gurgel em seu blog EntreMentes: “o compromisso tácito” de “todo lexicógrafo que se preze” é o de “apresentar o repertório de significados atribuídos a cada palavra e indicar as particularidades de seu uso (‘informal’, ‘antiquado’, ‘chulo’, ‘regional’, etc.). Nosso douto procurador [Cléber Eustáquio Neves, que entrou com a ação contra o dicionário] deveria ter percebido que as informações apresentadas pelo Houaiss — que, desculpem lembrar a obviedade, não é uma enciclopédia — se referem ao termo, e não ao povo cigano. No dia em que registrar os valores depreciativos que certos vocábulos assumiram ao longo do tempo for considerado um crime, nossa língua — ou melhor, nossa civilização terá embarcado numa viagem sem volta para a noite escura da desmemória".
O caminho da proibição que se dissemina na sociedade brasileira – de fundo religioso, moralista, supostamente em prol da saúde ou em defesa do “direito das minorias”, seja qual for – é muito, muito preocupante. Já cansamos de ver na história (e não apenas no século XX) que esse é muitas vezes um caminho sem volta. Apoiado pela má-fé, por interesses obscuros e inconfessáveis ou pela ignorância.
PS (atualizado às 16:31): Logo após a publicação deste post, vi pelo twitter (por @ALuizCosta) que o Dicionário Houaiss divulgou release sobre sua posição a respeito do verbete "cigano", sugerindo uma solução para o problema em tais casos: "Registrar a palavra ou a acepção e dizer claramente, quando é o caso, que ela é pejorativa e preconceituosa". Íntegra aqui.