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sábado, 3 de junho de 2017

O caso Andreas von Richthofen e a esquerda brasileira


"A construção do pós-guerra foi uma coisa fantástica. Daquela tragédia saímos para um momento em que foi possível preservar a liberdade melhorando as condições da igualdade. Ser de esquerda quer dizer isso, queremos liberdade com igualdade. Não queremos tropelias e totalitarismo" (Luiz Gonzaga Belluzzo - Unicamp/31 de maio de 2017).



Os irmãos Richthofen, Andreas e Suzane (Foto: Reprodução)

Ao escrever estas curtas impressões, esclareço que minha preocupação, aqui, não tem a ver com filtros do senso comum. A premissa é que escrevo pensando em algo "más allá", mas sempre dentro da esquerda brasileira.

Dito isso, quero dizer que a esquerda brasileira tem que evoluir muito para ser transformadora. Penso no mestre Pier Paolo Pasolini.

Uso para esta modesta análise impressionista o caso Andreas von Richthofen. Como era de se esperar, após vir a público a informação de que Andreas -- o irmão de Suzane, condenada por ser a autora intelectual do assassinato dos pais em 2002 -- foi encontrado em condições precárias e com "sinais de uso de drogas", não tardaram as abordagens simplistas e, eu diria, espiritual e filosoficamente limítrofes, sobre o caso, por parte da nossa nobre esquerda.

Uma dessas abordagens, típicas, diz o seguinte: "é fácil ter compaixão e empatia pelo Andreas. Bem nascido, loirinho, frequentou os melhores colégios e vivemos, todos, a sua dor. Vimos a destruição da sua família. Solidarizamos a dor dele, quando teve os pais assassinados. Difícil mesmo é enxergar humanidade e ter compaixão e empatia com o viciado que parece vindo de outro mundo. Que é analfabeto. Que sempre morou na rua e que já passou pela cadeia algumas vezes". 

É o que diz Marcelo Feller, advogado criminal.

Data venia, é o mesmo tipo de argumentação que encara um atentado como o de Paris em 2015, ou o de Manchester, no mês passado, com afirmações do tipo: é fácil lamentar as mortes de Paris, mas difícil mesmo é enxergar a humanidade dos assassinados nas periferias de São Paulo etc etc etc.

É como se a pessoa "bem nascida, loirinha", abençoada por ter frequentado "os melhores colégios", fosse destituída de humanidade. É um argumento filosoficamente indefensável. Um argumento que, no limite, justificaria os atentados de Paris de 2015.

Ambos, Andreas e o menino pobre da periferia, merecem a mesma compaixão. A dor de ambos dói igualmente, na alma. Mas na alma deles. A dor é espiritual e física, e existencial. 

Se ser humanista é ser antiquado, eu sou antiquado. A questão de Andreas estar ou não na Cracolândia não importa.

A esquerda, da qual eu faço parte, precisa ir além do materialismo e do determinismo.

É óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, que o país, e particularmente São Paulo, estão submetidos a políticas higienistas e fascistas. Voltamos décadas no tempo. Sofremos um golpe (que, aliás, foi conseguido de maneira tão fácil que chega a ser deprimente ser brasileiro na atual conjuntura - mas isso é outro assunto).

E não é isso que discuto aqui. Aqui, parto do pressuposto de que o fascismo é incabível no século XXI. Mas, repito: a esquerda brasileira precisa ir além do materialismo e do determinismo.

A esquerda brasileira deveria ler Nietzsche, Dostoiévski, Sartre e Baudelaire, para interpretar a história sob perspectivas menos materialistas e deterministas. Perspectivas que possam superar as abordagens fáceis. Entender o sofrimento de Raskólnikov (o protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski) da mesma maneira que entende o sofrimento dos perseguidos pelo higienismo fascista de João Doria. São dimensões diferentes. Mas dimensões que precisam ser compreendidas como paralelas. 

A esquerda brasileira precisa se desvencilhar de seus moralismos e ir "más allá", se quiser transformar este pobre Brasil em algo digno de ser chamado de uma nação.

É só isso. Data venia.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Os cátaros, a política, o espiritismo

"Renegar a política é renegar a humanidade"
(Marco Ferreira, por e-mail)



"Quem sabe estudando as razões pelas quais tanto se matou por mera discordância ideológica possamos alcançar mais adiante um estágio evolutivo, em que se discorde tolerantemente."

A frase não é sobre o Brasil de Michel Temer ou sobre alguma ditadura latino-americana. É do livro Os Cátaros e a Heresia Católica, de Hermínio C. Miranda, que estou lendo.

Cátaros (do grego καϑαρός - katharós - "puro" ou "limpo") são um povo cristão que, em torno do ano 1.200, principalmente no sul da França, foi perseguido e exterminado pela Igreja Católica e suas Cruzadas, sob todas as formas de massacres, torturas e execuções, incluindo fogueiras em que se queimavam dezenas de pessoas de todas as idades.

Acusados de hereges, os cátaros foram perseguidos por pregarem um cristianismo não contaminado pela doutrina católico-romana, corrupta, defensora dos interesses terrenos, que destruiu incalculável patrimônio histórico e todo conhecimento (livros, culturas e povos) que de alguma forma ameaçava seu império. O cristianismo dos cátaros seria uma doutrina mais próxima de Cristo, personagem do qual, de resto, pouco se sabe.

Esse Cristo na realidade é uma entidade dual, contraditória - considerando as diferentes versões ou interpretações. As histórias em torno dele expressam posições antagônicas: ao mesmo tempo em que recomenda, a quem levar uma bofetada, oferecer a outra face, ele declara, segundo Mateus (10:34): "Não penseis que vim traz paz à Terra; não vim trazer paz, mas espada".

Qual é o verdadeiro Jesus? O construído por Roma com certeza não é o de Pier Paolo Pasolini, diretor do belíssimo Il Vangelo secondo Matteo (1964), cujo Cristo veio trazer a espada.

Se, de acordo com a igreja romana, Jesus foi concebido por uma mãe virgem, os relatos históricos a que se tem acesso (filtrados por 2 mil anos e quase totalmente apagados pela genocida "Igreja de Pedro") dão margem a interpretações bem menos fantasiosas. Por exemplo: Maria Madalena, mulher reduzida a uma prostituta pela "Tradição", teria sido, na verdade, companheira e amante de Jesus, e inclusive mãe de descendentes seus. Tomé, presumem intérpretes, era irmão de Jesus. Ou, pelo menos, um outro, como diria Borges.

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Papa Gregório IX instituiu a "Santa Inquisição"
"A campanha militar (contra os cátaros) encerrou-se tecnicamente com a tomada de Montségur, em 1244, onde foram queimados vivos mais de 200 cátaros, numa só fogueira gigantesca, que iluminou os céus com as chamas do ódio e deixou espalhadas no chão da história 'as cinzas da liberdade', na expressão que Michel Roquebert colocou no título de um de seus livros", escreve Hermínio C. Miranda.

A "Santa Inquisição" foi instituída pelo "santo" Papa Gregório IX, em 1233, ou seja, 11 anos antes do extermínio definitivo dos cátaros.

Os Cátaros e a Heresia Católica é pois uma interessante abordagem histórica. Como o autor é espírita, sua análise do tema passa por associações que, segundo ele, estranhamente começaram a ser percebidas na Europa, particularmente na Inglaterra, sete séculos depois do extermínio dos cátaros, em meados do século XX. Essas associações apontariam para evidências espiritualistas relacionadas à reencarnação.

Os cátaros também são conhecidos como albigenses, em referência à cidade francesa de Albi, onde se considera que se originou esse movimento.

Ao pesquisar questões relativas aos cátaros, é também muito interessante saber que havia sinais de inegável familiaridade entre esse povo e os Cavaleiros Templários, também perseguidos pela Inquisição de "tenebrosa memória", como diz o autor do livro.

As pessoas fazem confusão entre Templários e Cruzados. É preciso pesquisar um pouco. Suas histórias se imbricam, mas não se confundem.

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Todavia, as sombras do passado e as farsas da história oficial dos séculos não me afastam da minha própria história. Eu quase poderia dizer que prefiro ler Truman Capote, J. D. Salinger ou Graham Greene, que são mais próximos do que eu sou, embora já estejam velhos. Mas acho melhor não dizer. Nos tempos atuais, já não se sabe o que é velho ou o que é novo.


*Publicado originalmente em 26 de novembro de 2016, à 00:56

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Lembrando Pasolini a partir da excrescência Big Brother Brasil


*Publicado originalmente às 14:18 de 07/02/11



Em 1973, o cineasta e pensador italiano Pier Paolo Pasolini fazia o seguinte comentário sobre a televisão e seu papel culturalmente desagregador e brutalmente destrutivo, analisando a massificação e a padronização da Cultura (e das culturas particulares, seus falares, dialetos e idiossincrasias):

"A responsabilidade da televisão em tudo isso é enorme. Não enquanto meio ‘técnico’, mas enquanto instrumento de poder e poder ela própria. (...) É no espírito da televisão que se manifesta concretamente o espírito do novo poder. (...) O fascismo, no fundo, não foi capaz nem de arranhar a alma do povo italiano: o novo fascismo, através dos novos meios de comunicação e informação (especialmente a televisão) não só a arranhou, mas a dilacerou, violentou, contaminou para sempre." (do livro Os Jovens Infelizes – Antologia de Ensaios Corsários, Editora Brasiliense, 1990.)

Quem leu Pasolini – o grande cineasta diretor de Mamma Roma, Accattone, Salò – os 120 Dias de Sodoma e tantos outros – fica para sempre contaminado por uma irrevogável visão crítica da Cultura, pelo inconformismo e a incapacidade de assistir a certas coisas sem indignar-se.

É com um sentimento de repulsa que escrevo sobre o asqueroso Big Brother Brasil (vulgo BBB), da TV Globo, programa pervertido, boçal e pernicioso ao qual jamais assisti. Dia desses entrei numa padaria para tomar um lanche e eis que a televisão do estabelecimento estava ligada nessa excrescência. Como eu estava morto de fome e a padaria era a única por perto, comi o lanche de costas para a TV. Ao sair, disse à moça responsável pelas “comandas” que da próxima vez que fosse ali nem entraria se a TV estivesse ligada no programa. Ela me olhou em silêncio, com um ar desdenhoso, como se o idiota fosse eu, e não disse nada.

Como temia Pasolini em relação à sua amada Itália, em nosso país a televisão – uma concessão pública, lembremos – transformou a esmagadora maioria dos brasileiros numa massa amorfa, acrítica e incapaz de julgar por si mesma (por favor, não falo de conjunturas meramente eleitorais), incapaz muito menos de preservar sua cultura e suas tradições, as culturas particulares, a criatividade, os falares. Não sei se o próprio Pasolini podia imaginar o quão baixo a televisão chegaria.

E não venham me dizer que o povo é apenas uma vítima. Como dizia Jean-Paul Sartre, “não há vítimas inocentes”.

Leia também: Favoritos do cinema (5): Pasolini

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Favoritos do cinema (5): Pasolini



Reprodução


Pier Paolo Pasolini (1922-1975) é um mestre da geração que teve Buñuel, Godard, Glauber Rocha, Bertolucci, Truffaut, Fellini, Bergman e tantos outros.

Como acontece com Buñuel, é difícil citar apenas um filme de Pasolini para colocá-lo na série Favoritos do cinema, que às vezes publico aqui no blog, que são postagens sobre determinados filmes, e não diretores. Pasolini está entre as exceções.

Não dá para começar a falar do diretor italiano sem citar pelo menos cinco filmes:

- Accattone (1961)
- Mamma Roma (1962)
- Il vangelo secondo Matteo (1964)
- Uccellacci e uccellini (em português, Gaviões e passarinhos, 1966)
- Salò o le 120 giornate di Sodoma (em português, Salò ou os 120 dias de Sodoma, 1975).

Não vou discorrer sobre os filmes citados porque senão passaria a noite escrevendo. Mas qualquer busca no Google fornece informações. Salò, por exemplo, é um filme diante do qual uma pessoa estética e politicamente sensível não passa incólume. A beleza (a arte intrínseca ao filme) e a perversidade (o fascismo) se fundem nessa obra-prima. Costumo dizer sobre Salò que eu não veria de novo, mas foi essencial ter visto.

O Evangelho segundo Mateus
mostra um Cristo assertivo e belo, viril e transgressivo, dando uma conotação subversiva (no sentido mais profundo) à passagem de Mateus do Novo Testamento: “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada” (Mat 10, 34).


Vittorio Cataldi, em Accattone

Todos os filmes acima (entre outros) são belíssimos, no sentido clássico do termo, mas também enquanto linguagem fundadora, inquietante e transgressora, que os anais da história registram como sendo o neorrealismo italiano. Se há esse conceito, Pasolini é seu espírito.

Para contextualizar: Pasolini nasceu em Bolonha (5 de março de 1922) e morreu em Óstia (periferia de Roma, em 2 de novembro de 1975), assassinado aos 53 anos em circunstâncias até hoje não suficientemente esclarecidas. A Itália de Pasolini, é bom lembrar, era um país conturbado, onde as disputas políticas eram permeadas por conflitos armados. Era a época das Brigadas Vermelhas, organização guerrilheira urbana marxista-leninista (e simpática ao maoísmo) que, entre outras ações, sequestrou e executou Aldo Moro, então ex-primeiro-ministro e presidente do partido direitista da todo poderosa Democracia Cristã Italiana.

Sendo erudito, Pasolini conseguiu evitar que o academicismo matasse sua arte. Pelo contrário. Era um artista genial: uniu o clássico (arte) ao contemporâneo (cinema) com desenvoltura. Cristão e comunista, viveu uma relação intensa “de amor e ódio”, como se diz, com duas instituições: a Igreja Católica e o Partido Comunista Italiano, o lendário PCI, que foi pensado, entre outros, por Antonio Gramsci (1891-1937). Pasolini brigou com o PCI e com a igreja, mas não brigou com o marxismo e nem com a arte.

Além do caráter político/estético dos filmes de Pasolini, estes tinham outra virtude: não eram simplesmente “filmes-cabeça”, (apenas) experimentalistas e chatos como A chinesa de Godard, um dos símbolos da chatice no cinema (adoro Godard, devo ressalvar e ressaltar, mas esse é outro post).

Depois que eu postar esta humilde impressão, com certeza lembrarei de outras coisas que poderia ter dito sobre Pasolini, mas não disse.

Por exemplo, me ocorre neste instante o magnífico diálogo entre o grande e velho ator Totó e o jovem Ninetto Davoli em Uccellacci e uccellini, uma alegoria na qual um velho e um jovem (pai e filho?) discutem filosofia (marxista) durante uma viagem a pé, interpelados o tempo todo por um corvo intrometido. Para quem gosta de gossips, consta que Pasolini, que era homossexual, adotou Davoli como seu ator e jovem amante. O mesmo Nineto Davoli trabalhou com Pasolini, entre outros filmes, em Decameron (1971), o primeiro (e melhor) da Trilogia, que se completa com Os contos de Canterbury (1972) e As mil e uma noites (1974).

Però, è finito. Arrivederci. Eu estava devendo um post ao mestre Pasolini. Espero que ele aceite isto como uma medíocre tentativa.


Leia também, da seção Favoritos do cinema
:

Quando explode a vingança (Sergio Leone)

Era uma Vez no Oeste (Sergio Leone)

Fargo (irmãos Coen)

Os Incompreendidos, de François Truffaut


*Publicado originalmente às 02:13 de 14 de dezembro de 2012