Sou um jornalista que fecha o jornal às quintas-feiras. Não só, mas também por isso, às sextas, quando tem a ver, eu publico um pensamento para sexta-feira.
Portanto, tive de encarar os fatos do Realengo como jornalista, o que é uma merda, porque você tem de editar as coisas, ver o que não quer, ler o que machuca, ouvir o que perturba. Antes, de manhã, na padaria onde tomei café, só se falava nisso. “É a globalização”, comentou um cara ao meu lado diante das imagens da TV, como se falasse do resultado de uma partida de futebol da noite anterior. Parece que a banalização da violência tornou as pessoas insensíveis.
E só depois do fechamento do jornal, muitas horas depois, é que li o texto do Flavio Gomes, que me emocionou, e por isso vai abaixo, como pensamento para sexta-feira.
O Pai do Homem - Flavio Gomes
São Paulo - Então...
Depois de ler o que pude, ouvir o rádio e ver a TV, peguei meu carro, era dia de folga, jornalista folga de quinta-feira, fui até a oficina, vi os dois Weber que colocaram no Meianov, ligamos o carro, o motor ficou com um ronco legal, depois descemos lá onde eles fazem funilaria e pintura, a peruinha já está toda raspada, sem motor, descobrimos a cor original. Descobrir a cor original de um carro de 55 anos é algo emocionante para quem gosta deles, dos carros. Foi arrancar o forro do teto e lá estava o azul, Azul Firenze, segundo o amigo das cores, intocada a pintura, uma coisa bacana, ajuda muito na restauração, mesmo que o Azul Firenze não seja lindo, eu tinha a ideia de fazer creme e vinho, ou branco Lotus e azul-marinho. Mas ela era azul, ora bolas, e se nasceu assim, que continue assim. Acho que será azul, e também encontrei o número do chassi, é umas das únicas 173 fabricadas em 1956, creio que o mais correto seja mesmo fazê-la como era quando saiu da fábrica e tal.
Depois fui ao centro da cidade, com um trânsito curiosamente bom, atrás de um emblema e de umas calotas, o trânsito curiosamente bom.
As irrelevâncias nos movem. Tudo que fiz hoje foi irrelevante, ver uns carburadores, descobrir uma cor, procurar uns emblemas e umas calotas. Foi tudo que consegui fazer. Mergulhar na irrelevância e na indiferença.
O rapaz que entrou na escola atirando não se encaixa em nenhum perfil que permita esbravejar. Até onde se sabe, não era traficante, ladrão, fugitivo. Não era militante de nenhum partido, não lutava jiu-jítsu, não era um skinhead, não pertencia a nenhuma torcida organizada. Até onde se sabe, não usava drogas, não bebia, não era pedófilo, não era evangélico, não era muçulmano, não era judeu, não era cristão, não era xiita, não era sunita, não tirava racha na rua, não tinha suásticas tatuadas na pele, não pertencia a nenhuma seita, não era gótico, não era punk, não ouvia Bossa Nova, não usava piercing, não era rico, não era pobre, não era gordo, não era magro, não estava em liberdade condicional, não tinha passagem pela polícia, não vivia no Complexo do Alemão, não era do Jardim Ângela, não morava numa cobertura da Vieira Souto, não era nada. Segundo sua irmã, ele era estranho.
Estranho.
Seu nome era Wellington de Oliveira, um nome bem brasileiro, há milhares de Wellingtons, Washingtons, Andersons. O Brasil tem um estranho fascínio por W e por nomes que terminam em “on”. Wanderson, Jackson, Jobson, Richarlyson. Ele era um Wellington de Oliveira.
Quando não se pode culpar traficantes, fugitivos, ladrões, militantes, lutadores, skinheads, nazistas, torcedores organizados, drogados, cristãos, bêbados, pedófilos, muçulmanos, góticos, magros, evangélicos, rachadores, punks, gordos, xiitas, ricos, pobres, nem o prefeito, nem o governador, nem a presidenta, nem o ministro, nem o secretário, nem a polícia, nem o senador, nem o deputado, nem a diretora da escola, nem o médico, nem o professor, culpamos quem?
Culpamos quem?
Quando não podemos culpar ninguém, chegou a hora de assumir o que somos. Uma espécie fracassada, violenta, agressiva, condenada à extinção. Uma espécie habituada à barbárie, e que não se imagine que “nos transformamos em”. Sempre fomos assim, indecentes, obscenos, há séculos nos matando em guerras, inquisições, pogroms, chacinas, massacres, genocídios, atropelamentos, assassinatos, latrocínios, torturas, execuções. E pragas, pestes, terremotos, incêndios, tsunamis, deslizamentos, enchentes. Um moto-contínuo de mortes, mortes, mortes, e vinganças, vinganças, vinganças, ódio.
A criança é o pai do homem. Guardo um pequeno cartão com essa frase no meu carro, há anos está lá, era o convite da formatura do meu mais velho no pré-primário. Não o guardo como mantra ou guia espiritual. Está lá porque está lá, porque o carro que nos levou à formatura do pré ainda está comigo, e lá ficaram o cartão e a frase. De vez em quando uso o cartão, de papel de alta gramatura, cartolina, talvez, porque quando o vidro sobe levanta uma rebarba da forração da porta, e o cartão serve para colocar a forração no lugar. É um uso banal, irrelevante, coloco o cartão entre o vidro e a forração da porta, e tudo fica no lugar, tudo volta ao seu lugar. Um uso banal e irrelevante, mas que me faz ler essa frase todos os dias, ou, pelo menos, quando preciso colocar a forração da porta no lugar.
A criança é o pai do homem.
Wellington ajudou a nos matar mais um pouco hoje. É um erro, Wellington, matar-nos aos poucos. Da próxima vez, Wellington, mate-nos a nós, direto, sem intermediários.
Mate o homem, Wellington, não seus pais.