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domingo, 30 de abril de 2017

Chappie e a consciência humana num pendrive




Chappie (2015), dirigido por Neill Blomkamp, é um filme interessante. Filme com não poucos erros, mas, como ficção científica, vale a pena ver. Discute coisas aparentemente antagônicas, como alma e inteligência artificial. Tem sequências tocantes que remetem a Freud. Discute a morte.  

Também discute a imortalidade, mas não mais como a imortalidade perseguida por Drácula, o vampiro que precisa de sangue para se manter "vivo", e sim a imortalidade que pode ser armazenada em um pendrive. A consciência pode ser transferida de um corpo biológico para um robô.

Não vou discorrer sobre o filme, pois seria interminável. Mas a ideia de você transferir a consciência humana para um ser bio-robótico é fantástica, embora assustadora. É aparentemente impossível, hoje. Mas, como diria Carlos Drummond, "segunda-feira ninguém sabe o que será".

O filme é de 2015. Então, ele não estará "em breve nos cinemas", como diz o trailer acima, pois já foi exibido nos cinemas há dois anos. 

sábado, 24 de dezembro de 2016

O Natal, segundo Carlos Drummond de Andrade




Organiza o Natal*

Carlos Drummond de Andrade


Marc Chagall, Solitude (1933) - Óleo sobre tela

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade.

*Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

Ainda sobre religiosidade:

Pensata sobre Maria Madalena a partir de uma notícia

Os cátaros, a política, o espiritismo

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Pensamento para sexta-feira [55]
O mosquito drone


Admirável mundo novo

Reprodução

  
Margo Seltzer, professora de ciência da computação na Universidade de Harvard, esteve na semana passada no Fórum Econômico de Davos, na Suíça. Vários sites pelo planeta repercutiram a fala de Seltzer sobre um mundo em que drones-mosquito como esse da foto poderiam, em tese, voar ao redor de você e sugar o seu sangue, mais especificamente seu DNA. Essa notícia não é muito nova, em 2012 ela já circulava. Ou mesmo antes.

“Bem-vindo ao presente. Nós já estamos nesse mundo”, disse a professora novaiorquina.

O pernilongo-drone é um vampiro cibernético.

A notícia sobre essa tecnologia assustadora me remeteu a um poema do nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, a um trecho de seu poema “O Sobrevivente”:

Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.”

terça-feira, 28 de maio de 2013

Essas coisas – Carlos Drummond de Andrade








"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas."

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade sofrer
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Lêdo Ivo (1924-2012)


Morreu o poeta alagoano Lêdo Ivo. Ele estava em Sevilha, na Espanha, com familiares, onde passaria o Natal, quando se sentiu mal, parece que ao jantar num restaurante. Tinha 88 anos. Ele nasceu em Maceió, a 18 de fevereiro de 1924.

Tive contato com Lêdo Ivo entre 2001 e 2002, quando eu organizava o livro Escritores – 43 entrevistas da Revista Submarino (editora Limiar). É que ele era um dos entrevistados. Na ótima entrevista concedida à repórter Camila Claro (então a mais jovem e mais erudita da equipe) ele mencionou que tinha em seu arquivo um poema inédito de Carlos Drummond de Andrade. Durante a organização, conseguimos que ele nos enviasse o poema de Drummond. Chama-se “Greta Garbo”. Está lá, publicado logo após a entrevista dele, na página 130 de Escritores.

Na época do lançamento, liguei para o poeta, conversamos um pouco e anotei seu endereço para enviar-lhe um ou dois exemplares. Graças a isso o livro Escritores está lá na biblioteca da Academia Brasileira de Letras, da qual ele era membro.

Lêdo Ivo era assim, solícito, simples, afável, receptivo, bem-humorado. Começou a longa jornada pelas letras muito jovem. “Aos 16 anos, em 1940, ligou-se ao grupo do poeta e ensaísta Willy Levin e participou do I Congresso de Poesia do Recife, a seu lado e de João Cabral de Mello Neto”, nos conta Camila na introdução da entrevista. Nesta, Lêdo Ivo revela muitas histórias de sua geração. Fala de literatura e de bastidores (ótimos bastidores), das gerações de 22 e de 45, de suas relações com os poetas João Cabral, Oswald de Andrade, Drummond e outros. Conta sobre suas divergências com Oswald de Andrade, narra um caso que mostra a vaidade e a ambição do poeta paulista.

Mordaz e bem-humorado, fala de um volume de correspondência trocada entre João Cabral, Drummond e Manuel Bandeira: “...há uma parte desse livro em que Cabral me trata com certa ironia. Ele envia para Drummond uma antologia e diz que ‘os Lêdos Ivos da Espanha também estão presentes nesse volume’. Mas isso é muito engraçado porque, ao mesmo tempo em que ele me ironiza, em 1947 escreve para mim falando mal de Drummond (risos)”.

Sobre a geração de 1922: “certos círculo literários achavam que a poesia só tinha um caminho, quando a poesia tem mão dupla, mão tripla, não é?”

Apesar das divergências, disse sobre Oswald de Andrade: "Existem amizades e inimizades, mas aí vem o tempo e apaga tudo. Tenho muitas saudades de Oswald de Andrade".

Humilde, disse também na entrevista: “o melhor de mim, se é que há algum melhor, são os versos longos, os respiratórios, o poema grande, narrativo. Em minha geração sempre fui considerado uma espécie de ovelha negra, fui expulso da geração de 45 sete vezes! (risos)”.

São muitas as histórias que Lêdo Ivo tinha em sua memória, algumas das quais estão na entrevista de Camila no Escritores. Agora, as histórias que ele contou e as que não contou, leva todas consigo para a escuridão do tempo.


*Publicado originalmente às 13:04 de 23 de dezembro de 2012


sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Lembrando Carlos Drummond de Andrade,
aos 25 anos de sua morte


Hoje faz 25 anos da morte do (para mim) maior poeta brasileiro da nossa história, Carlos Drummond de Andrade, que se foi em 17 de agosto de 1987. Em homenagem a esse gigante da literatura universal, segue um lindo poema dele, que dá título também a um de seus livros. Viva Drummond!


Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.

Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer


esse amanhecer
mais noite que a noite.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Brinde aos 109 anos de Drummond


Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 31/10/1902 - Rio de Janeiro, 17/08/1987), nosso poeta maior, faria 109 anos nesta segunda-feira, 31 de outubro. Abaixo, um de seus mais belos poemas.


Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Leia outros poemas de Drummond:

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Pensamento para sexta-feira: 'Mãos Dadas', de Drummond



Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

(Carlos Drummond de Andrade)


Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(Carlos Drummond de Andrade)

Atualizado às 23:52

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Pensamento para sexta-feira [2] - Carlos Drummond de Andrade - "Para sempre"

Leila – o nome da minha mãe, do Paulo e do Alexandre – significa "Noite" (ou "negra como a noite"), em árabe. A doce Leila adorava as manhãs e os dias de céu azul como o de hoje. "Que dia lindo!", costumava dizer.

Ela estaria feliz nesta semana de alegrias que nos deu nosso Santos Futebol Clube, campeão paulista. Era fã do Mauro Ramos de Oliveira, nosso zagueiro central campeão do mundo, capitão da seleção brasileira.

Tinha outros ídolos também: Roberto Carlos, Tyrone Power, Elizabeth Taylor, Clark Gable e muitos outros. Adorava cinema.

Leila se foi em 4 de fevereiro de 1999, na hora do pôr do sol. Não a verei domingo, dias das mães. Se pudesse, gostaria que ela ouvisse o poema de Drummond:

PARA SEMPRE

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não se apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

(Carlos Drummond de Andrade)


E na voz do próprio poeta: