Foto: PSB
Ontem, ao deitar, abri o livro Nova Antologia Pessoal, de
Jorge Luis Borges, uma obra que há muitos anos, vez ou outra, eu abro, para ler
um texto ao acaso. O que reli ontem (e do qual já não me lembrava) é intitulado "A outra morte". Conta a história de um homem, chamado Pedro Damián, sobre cuja
vida havia um relato de que em certa batalha havia morrido, muito jovem, sem
demonstrar a coragem de um verdadeiro guerreiro. Mas essa versão, de um militar
que presenciara a morte desse soldado, foi depois desmentida por outros fatos,
que estranhamente engendravam uma outra história segundo a qual esse homem
havia encontrado a morte não como um covarde, mas como um bravo. As histórias
se entrelaçam de tal maneira que ambas se confundem com certas verdades que
comprovavam as duas.
A confusão se transforma em uma discussão metafísica sobre o
destino e certas suposições metafísicas sobre o tempo.
O conto de Borges, até porque o li ontem, me veio à mente
hoje, com a trágica morte de Eduardo Campos.
Assim como me ocorreu um pequeno poema que é a epígrafe do meu livreto de
poesia publicado quando eu era muito jovem, Amuletos. A epígrafe é do meu
irmão, Paulo Maretti, e diz:
O destino não mente
Ele desmente
Os corações das pessoas é que mentem
Para o destino que já vem vindo sem saber de nada.
Essas associações são a maneira como recebi a morte de Eduardo
Campos, um jovem líder que, segundo alguns, se antecipou à ordem natural da
política ao lançar-se à presidência da República após romper com o governo de
Dilma, e com Lula, após ter sido ministro da Ciência e Tecnologia do
presidente, como ele, pernambucano, entre 2004 e 2005.
Para além das análises e cálculos políticos a respeito do
que a morte de Campos trará como consequências à eleição, me espanta nessa
morte o aspecto súbito e chocante com que ela chegou nesse dia cinzento, frio e
chuvoso, ceifando uma liderança política importante, num 13 de agosto que é
também a data da morte do avô de Eduardo Campos, Miguel Arraes, um dos mais
importantes líderes da esquerda brasileira no século passado.
Líderes de todas as vertentes políticas, de esquerda e de
direita, alguns com sinceridade, outros com a sórdida máscara da política, lamentaram
a perda. Eu estou entre os primeiros. Lamento sinceramente.
Eduardo Campos era, ou é, muito querido em Pernambuco. Por
certo, não por acaso.
Talvez conseguisse se alçar, no futuro, com reais chances de
suceder um projeto popular com o apoio de Lula e Dilma, se se tivesse mantido
aliado de Lula e Dilma, como um herdeiro legítimo das lutas que seu avô travou
e das que, guardadas as diferenças de tempo e conjunturas políticas, como
presidente, Lula realizou no Brasil. Mas num momento como esse, não são as vãs e
mesquinhas conjecturas políticas aquilo que mais me assombra.
Quis o destino que Eduardo Campos encontrasse,
prematuramente, uma outra morte, enigmática, traiçoeira e implacável, nesse 13
de agosto de 2014.
Quem sou eu para julgar, mais do que um homem, o destino de
um homem que fez muito mais do que eu? O destino que já vinha vindo sem saber
de nada.
PS: tive um único contato com Eduardo Campos. Eu estava
cobrindo, como repórter, um evento do qual ele participou num hotel em São
Paulo, poucos meses atrás. Quando ele chegou, eu estava sozinho à porta do
hotel, e fui até ele para tentar algumas declarações exclusivas. Ele me olhou com
aqueles olhos intensamente azuis e disse que não dava tempo, estava atrasado.
Minutos depois, ao entrar no palco para sua palestra, me viu de longe e fez um
gesto de cumprimento. Eu não retribuí, pensando que estava se dirigindo a outra
pessoa (o que é muito comum em eventos dessa natureza).
Depois, vi que não havia ninguém atrás de mim. E só agora,
ao ouvir relatos inclusive de pessoas de sua terra, segundo as quais era um
homem muito educado, cordial e até doce, como me disse uma pessoa de
Pernambuco, percebo que entre mim e ele ficou um gesto não retribuído, ou um
gesto incompleto, e em mim um pequeno, pequeníssimo e incômodo remorso.