“O Estado é laico no Brasil, mas teme a Deus e a força de suas igrejas”
ENTREVISTA
Atualmente diretor de conteúdo da Fabrika Filmes, de Brasília, Gabriel Priolli é jornalista, professor, apresentador e diretor de televisão. Foi membro do Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, do Conselho Superior do Cinema (Ministério da Cultura) e do Comitê Consultivo do Sistema Brasileiro de TV Digital (Ministério das Comunicações).
Entre outras atividades, Priolli foi editor do Jornal Nacional, implantou e dirigiu o Canal Universitário de São Paulo e comandou a TV PUC (SP), da universidade onde lecionou por vários anos.
Começou como repórter na TV Cultura de São Paulo, emissora onde dirigiu o programa "Vitrine". Gabriel Priolli ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo na categoria Informação Cultural em 1988. Ele não está otimista quanto às perspectivas da TV brasileira e à democratização da mídia no país. Leia a entrevista e veja por quê.
Por Eduardo Maretti
Fatos Etc: O parágrafo 5° do artigo 220 da Constituição Brasileira prevê: "Os meios de comunicação social não podem (...) ser objeto de monopólio ou oligopólio". Apesar das inúmeras propostas tiradas da Conferência Nacional de Comunicação, a regulamentação dos artigos 220 a 223 não parece próxima, seja pela pressão e poder dos meios de comunicação, seja pelo “corpo mole” evidente do governo. É possível ser otimista diante desse quadro? Uma solução tipo Ley de Medios argentina é uma utopia no Brasil?
Gabriel Priolli: – Não é possível ser otimista, quando o assunto é regulação de mídia no Brasil. Esse é um setor praticamente sem controle, com uma legislação defasada e parcial, mas com um poder político imenso. Não apenas porque a mídia manipula a opinião pública à sua vontade, constrangendo governos, mas também porque controla o parlamento, já que 20% dos parlamentares e quase todas as lideranças expressivas são ligados a meios de comunicação. Raramente são aprovados decretos, leis, normas ou portarias que contrariem os interesses da mídia. Quando acontece, os autores são demonizados como "censores" e as medidas acabam neutralizadas, revistas ou inteiramente revogadas. A boa regulamentação, para a mídia brasileira, é regulamentação nenhuma. Dessa forma, é uma completa utopia imaginar que possamos ter algo avançado e moderno como a Ley de Medios argentina.
Sobre a democratização das verbas publicitárias, houve avanços no governo Lula. Mas é evidente certo desinteresse em uma ampla reformulação, até porque o governo, entidades públicas e políticos (e já ouvi lideranças petistas admitirem isso) preferem pagar o preço da poderosa oposição midiática mas continuar desfrutando do espaço publicitário dos grandes meios. Qual seria um ponto de equilibrio aceitável no rumo da tal democratização?
O aceitável é que todos os veículos, independente de seu porte, tenham acesso às verbas publicitárias públicas. O Governo Lula caminhou bastante nessa direção, mas ainda há muito por fazer. Essa é uma área que precisa de uma "política afirmativa", semelhante à política de democratização racial, que favorece etnias historicamente prejudicadas. A grande mídia acha que a verba publicitária estatal deve ser partilhada por critério de audiência e circulação, isto é, do número de consumidores de cada veículo. Isso garante a ela a parte do leão, deixando migalhas aos veículos pequenos. Eu penso que eles devem ser incentivados pelo Estado, para que possam se qualificar e desenvolver. Mas sob estrito controle público, para que esse processo não se transforme em cooptação, compra de noticiário e opinião favorável.
Como encara o crescimento do espaço de programas e “canais de aluguel” religiosos na TV brasileira, considerando-se que, constitucionalmente, a TV é uma concessão pública e o Brasil, em tese, um estado laico?
Como mais um desrespeito ao interesse público e à democracia no país. As religiões são abusivamente privilegiadas e não apenas nas concessões de canais de TV. O Estado é laico no Brasil, mas teme a Deus e a força de suas igrejas. Procura ser bem obediente a eles, para não ter problemas.
Sendo ex-membro do Conselho Superior do Cinema (Ministério da Cultura), qual sua avaliação da gestão da ministra Ana de Hollanda, criticada por grande parte do setor cultural do país?
Não vejo um projeto claro de ação, nesta gestão do MinC. Não vejo a ministra se pronunciar publicamente em nenhum assunto relevante, nem se apresentar ao debate das inúmeras questões que envolvem a cultura e a comunicação. Não a vi reclamar do corte de orçamento que teve, nem reivindicar mais recursos. Em contrapartida, vejo retrocesso em quase todos os programas implementados nas gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Vejo descuido com projetos e políticas democratizantes. Vejo ampla insatisfação, de vários segmentos da cultura. Não posso ter, dessa forma, uma avaliação favorável de Ana de Hollanda.
Você, que conhece bem a TV Cultura, vê alguma perspectiva para a emissora?
Apenas quando acabar a gestão de João Sayad e dependendo de quem o substituir. Mas não são muito boas as perspectivas, em princípio. Com o PSDB no governo de São Paulo, a televisão pública paulista nunca terá muito incentivo. O partido deixou claro, no combate ferrenho que fez e faz à TV Brasil no plano federal, que é contrário ao uso de recursos públicos no financiamento de canais de TV. Acredita que o modelo comercial-privado é suficiente para o país. Logo, a TV Cultura será mantida à míngua, padecendo de falta de recursos e da impossibilidade de ousar, criar, avançar. Acabar com ela talvez tenha um custo político muito alto. A opção é fazer de conta que ela existe e mantê-la no limbo da irrelevância.
A eterna discussão sobre a necessidade ou não do diploma de jornalista continua, apesar de o STF ter derubado a exigência. Duas propostas de emenda à Constituição voltam a propor a volta da exigência para “resgatar a dignidade dos jornalistas” e “garantir um jornalismo de qualidade”. Entre os argumentos contra, o de que o diploma incentiva a reserva de mercado e a “indústria do canudo” e afronta liberdade de manifestação do pensamento. Qual solução você defende?
Sou totalmente a favor da exigência de diploma universitário específico, para profissionais de jornalismo. A desregulamentação da profissão só interessa ao empresariado, que quer ter flexibilidade total na contratação de mão de obra. Para os jornalistas, o diploma fortalece as conquistas profissionais, preserva o piso salarial, evita o ingresso de oportunistas e desqualificados. Para a sociedade, interessa um jornalismo feito por profissionais bem capacitados, que os cursos superiores de comunicação podem oferecer. Outros profissionais, de outras categorias, podem e devem ter acesso ao jornalismo. Mas na condição de articulistas, comentaristas, especialistas. Como sempre lhes foi assegurado.
O que diria aos jovens que hoje sonham em fazer jornalismo?
Que se preparem para uma carreira profissional difícil, onde os sonhos rapidamente revelam-se ilusões. É uma profissão bonita, digna, apaixonante. Mas as condições em que é exercida, neste país, são muito difíceis. Manter o espírito livre, o pensamento autônomo e a consciência crítica, numa mídia que exige a máxima subserviência de seus funcionários, é uma tarefa hercúlea. Como disse um colega, antigamente a gente apenas trabalhava em jornal. Hoje é preciso ser "filiado" dele, pensar como ele. Isto costuma ser bem doloroso. Para não falar das condições de trabalho, as jornadas abusivas, a precariedade, a insegurança. É preciso muito amor pela profissão, para não desistir no caminho.