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sábado, 1 de agosto de 2009

Ler Ryszard Kapuscinski, em "O Outro"

O Outro (Porto: Campo das Letras, 2009), de Ryszard Kapuscinski (1932-2007), reúne um conjunto de seis conferências (cinco datadas de 2004 e uma de 1990) sobre isso mesmo: o Outro, nas imagens e relações que mantemos com ele e na forma como pelo Outro somos definidos ou nos ajudamos a identificar.
No saber que partilha com o leitor, Kapuscinski usa uma linguagem simples e acessível, transparente, forjada na prática da escrita jornalística, na reportagem. A primeira prova do respeito pelo Outro dá-a ele próprio quase no início do texto da primeira conferência (na ordem de publicação, que não na cronológica, uma vez que a ordem por que surgem os textos não segue a linha do tempo em que foram apresentados) ao escrever sobre a autoria do género jornalístico que lhe era mais caro: “Cada reportagem tem vários autores e só um costume mais generalizado determina que assinemos o texto com um só nome. Na realidade, é provavelmente o género literário de escrita mais colectivo, criado por dezenas de pessoas, nossas interlocutoras, encontradas pelos caminhos do mundo, que nos contam histórias da sua vida, da sua comunidade, de acontecimentos que presenciaram ou ouviram falar a outros. Esses Outros, muitas vezes pessoas desconhecidas, não só são para nós uma das fontes mais ricas de conhecimento do mundo, como também nos facilitam o trabalho de várias maneiras, viabilizando contactos, hospedando-nos nas suas casas, ou mesmo salvando-nos a vida.”
O princípio de que Kapuscinski parte para reflectir sobre o Outro é o de um olhar para uma pessoa que se define por duas marcas – o ser humano, “como qualquer um de nós”, e o ser influenciado por características culturais, raciais e de pensamento. Se este princípio é verdadeiro, também não é menos verdade que ele nem sempre foi praticado e a história da forma como os Europeus têm olhado o Outro ao longo dos tempos, por exemplo, prova isso, porque nem sempre esse olhar envolveu a tentativa de compreensão do Outro.
Os textos de Kapuscinski ajudam a reflectir sobre questões fortes de hoje, como as migrações, o “narcisismo das culturas”, a multiculturalidade, a hibridação, a identidade, os nacionalismos, as ideologias, a ética, o diálogo. Pelo caminho, vão sendo chamadas pistas da cultura clássica, da literatura, da antropologia, da filosofia (não esquecendo as contribuições de Lévinas e de Tischner) e da experiência do autor.
As reflexões apresentadas deixam-nos perante alguns dos paradoxos em que vivemos, qual seja o da “aldeia global” como sinal de afastamento e de indiferença ou da “globalização” como sintoma de superficialidade – “a essência de uma aldeia está na proximidade; todos se conhecem, convivem e partilham da mesma sorte. Contudo, isto não se aplica à sociedade do nosso planeta, que se assemelha mais a uma multidão anónima nalgum grande aeroporto – uma multidão de pessoas a correr, indiferentes e desconhecidas.”
Na última conferência que integra o livro, datada do início de Outubro de 2004 e proferida em Cracóvia, significativamente intitulada “O encontro com o Outro como desafio do século XXI”, há reflexões que podem apontar para uma solução: perante um mundo que, “potencialmente, dá muito” (mas onde “escolher um percurso com atalhos não leva a parte nenhuma”), é necessário que todos “dêem provas de que se tratam a si mesmos a sério”, situação que passa por aquela que foi uma das aprendizagens de Kapuscinski – “a experiência de viver durante anos entre longínquos Outros ensinou-me que só a afabilidade com a outra parte permite despertar nela o sentido da humanidade”. Afinal, a força do diálogo como motor para um olhar diferente sobre o Outro e sobre o Eu, sobre Nós. Uma utopia, talvez. Nada fácil, mas urgente.
Passos que ficam
1. "O mundo, para mim, sempre foi uma grande Torre de Babel. Mas uma torre onde Deus misturou não só línguas, mas também culturas, costumes, paixões e interesses, e onde criou, como habitante, um ser ambivalente que une em si um eu e um não-eu, ele próprio e o Outro, o seu Outro e o estranho.”
2. "A multidão é protagonista única do teatro do mundo, caracterizando-se pelo anonimato, a impersonalidade, a falta de identidade e a ausência de rosto.”
3. "O homem sempre usufruiu de três possibilidades (…) e, quando se encontrava com o Outro, podia: optar pela guerra, separar-se erguendo um muro, ou estimular o diálogo.”
4. "Faz-nos falta um elo importante; o elo que falta é o indivíduo, retirado da multidão, um homem concreto, um Eu concreto e um Outro concreto, porque, de acordo, com o pensamento dos filósofos do diálogo, o Eu só pode existir como um ser determinado em relação ao Outro, quando este surgir no horizonte da minha existência, atribuindo-me sentido e estabelecendo o meu papel.”

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

"A turma", de François Bégaudeau

O filme chegou hoje aos cinemas, o livro já anda por aí a circular há dias (François Bégaudeau. A turma. Col. "Ficção Universal". Trad.: Isabel St. Aubyn. Alfragide: Dom Quixote, 2008). É o tempo de um ano lectivo numa escola pública de Paris, com alunos em que o multiculturalismo é constante. As aulas são de Francês, língua não materna; o professor é francês, os alunos são dos mais diversos cantos e continentes.
A história corre rápida e é construída sobre as histórias do quotidiano, em sequências de diálogos que trazem as cores dos dias (e das aulas). As relações entre alunos ou do professor com os alunos são tensas, com a palavra a denotar a agressividade, o respeito (ou a falta dele), o interesse (ou não) pela escola, a ética, o espírito de turma, a contestação, a relativização de valores, as (des)motivações.
Entre les murs é o título original desta narrativa datada de 2006, agora traduzida para português e agora chegada ao cinema (realização de Laurent Cantet), com “Palma de Ouro” de Cannes neste ano. Dentro dos muros da escola, em que se sucedem as questões e os conselhos disciplinares, as chamadas de atenção, as provocações, em que é fácil ditar a expulsão de um aluno, em que é comum o conflito, perpassam o racismo e o (des)valor do outro, o consumismo, a aculturação, a emigração clandestina, o ambiente suburbano, as hipóteses do futuro da Europa.
Duma ponta à outra da história é o jogo entre duas equipas: de um lado, Souleymane, Khoumba, Djibril, Frida, Dico, Jingbin, Mohammed, Dounia, Sandra, Mezut, Hinda, Amar, Ming, Alyssa, Soumaia, Kevin, Fayad, Hakim e tantos outros, os alunos; do outro, Bastien, Chantal, Claude, Danièle, Élise, Gilles, François, Géraldine, Jacqueline, Jean-Philippe, Julien, Line, Luc, Léopold, Marie, Rachel, Sylvie e Valérie, os professores. E chega-se ao final com a sensação de empate.
Pelo meio, em que muitas personagens são identificadas pelos símbolos que usam (vestuário e ícones) encostados ao nome, há um contínuo saltitar da bola, às vezes forte e brusco, não se sabendo bem onde irá ela pontuar. Dos dois lados se corre por um caminho cada vez mais estreito, ao mesmo tempo que a escola se questiona (a dado passo, uma página é preenchida com 22 perguntas para reflexão na escola, em que a primeira é “quais são os valores da escola republicana e como proceder para que a sociedade os reconheça?” e a última é “como formar, recrutar, avaliar os professores e organizar melhor a sua carreira?”). Chega a ser útil tentar saltar os muros para ver a vida no exterior…
A ironia, que em dado capítulo o professor tenta explicar aos alunos enquanto recurso estilístico, percorre também muitas das conversas, uma ironia que mostra o que a escola também é. E, ironia das ironias, o tempo em que a história decorre traz também à memória um outro jogo em que Portugal entrou… – «“Hakim tu deves saber isto: quando se realiza exactamente o desafio de abertura?” Hakim levantou o nariz do papel, interrompido na contagem das cenas do acto II. “É no sábado. Às dezassete horas. Portugal-Grécia.”» Estava-se, pois, em 2004 e o tal sábado caía em 12 de Junho, em que a selecção portuguesa no “Euro” começaria a esmorecer frente a uma Grécia, perdendo por 2-1… Ironicamente também, a história conclui-se com um jogo de futebol entre turmas.
Frases vivas
Sanções por pontos – “A vantagem do sistema de pontos é a da carta de condução: o aluno sabe quando a sanção se aproxima, o que é um incentivo para se acalmar. O inconveniente é o da carta de condução: enquanto restarem pontos pode prosseguir quase impunemente.”
Respeito – “Um adolescente aprende aos poucos a respeitar os professores por causa das ameaças destes ou receando criar problemas.”
Genética – “Se alguma vez descobrirem que o gene do crime existe, há muitas coisas que vão mudar. Porque quem sabe como proceder para com as pessoas que possuam tal gene? Para já, dos que mataram, diz-se sempre que a culpa foi de algum modo deles, mas também de muitas outras coisas, circunstâncias atenuantes, como se costuma dizer. Acredita-se que não recomeçarão, se forem ajudados. Mas se possuírem o gene, então significará que não têm cura, e então que fazer? Serão sempre presos, ainda antes de cometerem algum crime.”
Poder – “Organizar o caos para construir o poder é apaixonante.”
Saber – “Não é grave não compreender tudo. Ninguém compreende tudo. Mesmo eu, às vezes, só compreendo metade do que digo. (…) O que importa é fazer o máximo possível, e depois se vê.”
Fazer – “Já todos nós fizemos coisas de que nos envergonhámos.”
Aprender – “Só aprende quem quiser aprender, quem estiver inscrito num projecto.”
Mundo – “Todos os homens são mentirosos, inconstantes, falsos, faladores, hipócritas, orgulhosos e cobardes, desdenhosos e sensuais; todas as mulheres são pérfidas, artificiais, vaidosas, curiosas e depravadas; o mundo não passa de um esgoto sem fundo onde as focas mais disformes rastejam e se contorcem em montanhas de imundície, mas há no mundo uma coisa sagrada e sublime, é a união de dois destes seres tão imperfeitos e tão horríveis. Somos muitas vezes traídos no amor, muitas vezes magoados e muitas vezes infelizes; mas amamos, e quando estamos à beira da cova, voltamo-nos para olhar para trás, e pensamos: sofri muitas vezes, enganei-me algumas vezes, mas amei. Fui eu que vivi e não um ser fictício criado pelo meu orgulho e o meu tédio.”